“Her”: uma análise do papel da tecnologia na vida dos sujeitos

Letícia Oliveira
7 min readDec 16, 2017

--

O filme “Her” (“Ela”, em português) é uma produção norte americana escrita e dirigida por Spike Jonze que retrata uma história de amor não convencional passada em um futuro tecnológico aparentemente não tão distante. A trama gira em torno do protagonista Theodore Twombly, um escritor de cartas personalizadas — no maior estilo “artesanalmente produzido em série” — que vive uma vida solitária, melancólica e saudosista após o conturbado fim do relacionamento com sua ex-esposa Catherine. No meio de uma tediosa e narcotizante rotina em que se divide entre trabalhar, jogar videogames e interagir com desconhecidas na internet, Theodore, então, se depara com um novo Sistema Operacional de Inteligência Artificial chamado OS1 que promete ser uma consciência virtual compreensiva e interativa para seus usuários. Em um ímpeto de, talvez, amenizar sua solidão e organizar sua vida, ele adquire o sistema e começa a interagir com Samantha — nome que a própria OS se dá –, ganhando uma auxiliar para suas atividades diárias. No entanto, para sua surpresa, ela se revela uma bem humorada, calorosa e complexa entidade e não demora muito para que os dois comecem a criar laços e ela passe a ser uma importante presença na vida dos escritor, com quem ele tem os mais diversos diálogos e reflexões e da qual ele aprecia tanto a companhia e o entusiasmo com a vida. O envolvimento amoroso entre os dois, então, se desenvolve à medida que a figura de Samantha se complexifica enquanto consciência, mostrando, dessa forma, as complicações e os encantos de uma relação — e uma vida — possibilitadas e mediadas pela tecnologia.

Apesar de retratar uma realidade futurista, os esforços dos criadores giraram menos em torno de criar uma atmosfera distópica e super tecnológica — como a maioria das produções sobre o tema — e mais em torno de evidenciar a tecnologia em si e sua relação com os indivíduos em uma sociedade que em muito se assemelha à nossa: a trama se passa em uma Los Angeles marcada pela conectividade, pelo individualismo e pelo intenso fluxo e consumo de informações. É possível, então, observar como vários dramas pós-modernos vão atravessando e contextualizando as histórias dos personagens, de modo a desenvolver neles uma humanidade tangível, perpassada por angústias e dilemas similares aos nossos. Tudo isso com uma beleza e sensibilidade tocantes, diga-se de passagem.

Fazendo, agora, um paralelo com as teorias de Simmel acerca da modernidade, observamos que em “A metrópole e a vida mental”, encontramos várias questões que se relacionam profundamente com a realidade mostrada na sociedade de “Her”. O autor constrói seu raciocínio em cima dos contrastes entre a vida no campo e na cidade e explica que “a base psicológica do tipo metropolitano de individualidade consiste na intensificação dos estímulos nervosos” e como, na sua concepção, essa dinâmica acaba extraindo do homem uma “quantidade diferente de consciência”. Simmel argumenta que o acelerado ritmo de vida das cidades, bem como o fluxo frenético de informações e os estímulos constantes acabam por engendrar nesse indivíduo uma necessidade de auto preservação perante tanta pressão. Em suas palavras, “os problemas mais graves da vida moderna nascem na tentativa do indivíduo de preservar sua autonomia e individualidade em face das esmagadoras forças sociais.” Em resposta a esses processos, então, os sujeitos passam a reagir de diversas formas: com uma maior racionalização da realidade, para proteger seus emocionais; com uma maior impessoalidade, ao mesmo passo em que são indivíduos extremamente voltados para si; com uma atitude blasé — como se estivessem tão saturados que mal fossem capazes de reagir aos estímulos; com uma reserva quanto à sociabilidade que acaba se traduzindo em um individualismo de aversão e estranheza.

Quando nos voltamos, então, para o filme, podemos observar algumas destas características servindo como base para a noção de sociedade que é construída. Em primeiro lugar, temos a aceleração dos ritmos, fluxos e estímulos aos quais os sujeitos são submetidos. A trama não traduz essa realidade em grandes telas brilhantes espalhadas pela cidade massificando propagandas e as sempre últimas notícias do momento, mas, por sua vez, mostra o envolvimento constante dos indivíduos com seus aparelhos celulares, que os fornecem todo tipo de informação ao sinal de um comando de voz. Os personagens são retratados sempre voltados para seus aparelhos, seja no âmbito público ou privado, de modo que a tecnologia, então, acaba aparecendo como uma mediadora entre os indivíduos e suas experiências de vida.

A saturação que todos esses estímulos causam também pode ser observada no filme por meio da atitude blasé dos personagens. Em determinado momento, o protagonista Theodore está no metrô ouvindo as últimas notícias — praticamente todo o contato entre os indivíduos e os aparelhos é feito por comandos e respostas de voz — e sua feição é a de um esgotamento mental. Ele ouve apenas os títulos das manchetes e passa para a próxima, sem demonstrar o mínimo interesse em se aprofundar nelas, a não ser quando uma delas se relaciona à nudez e sexualidade — fotos de uma famosa nua, a única coisa que despertou seu interesse num mar de informações –, que é quando Theodore pega o aparelho para, de fato, visualizar algo. Um pouco adiante, já em casa e na cama, depois de supostamente se divertir jogando videogame, o protagonista é tomado por memórias melancólicas do passado com sua ex-esposa e, em meio à angústia do saudosismo, busca distração e alívio em um site onde é possível se relacionar sexualmente com desconhecidos — o contato vem por voz, como uma ligação, sem imagens nem texto, apenas falado. A interação, portanto, acontece basicamente na mente de quem está dela participando e assim que o sexo acaba, ela também cessa.

Outro ponto que perpassa todo o filme é a individualidade dos sujeitos. Em praticamente todas as cenas em que Theodore está em público, como no seu caminho até em casa, apesar de os habitantes da cidade serem retratados compartilhando os mesmos espaços: o elevador, as ruas, o transporte; praticamente nenhuma interação sequer aparece. Cada indivíduo caminha sozinho, totalmente voltado para si e interagindo única e somente com seu aparelho. Aí está um ponto interessante, pois quando vamos reparar nessas interações, percebemos que elas estão se dando com pessoas que estão do outro lado da linha, ou seja, a sociabilidade dos personagens está totalmente mediada pela tecnologia, de forma que elas optam pelas relações virtuais — no sentido de estarem se dando em um meio que não o físico — em detrimento do contato umas com as outras, num processo que, como Simmel descreve, se assemelha à estranheza e à aversão. Uma multidão de sujeitos solitários em sua própria sociabilidade.

Dadas todas essas questões e a relação que os indivíduos estabelecem com a tecnologia, têm-se, portanto, os aparelhos como mais uma forma de auto preservação dos sujeitos frente a essa realidade. Mais que isso, até, a tecnologia entra como uma forma de preencher esses espaços que foram sendo esvaziados e de mediar a relação dos sujeitos com a própria vida. É nesse ponto, então, que pode-se perceber uma noção de otimização atravessando a vivência e as atuações dos personagens:

1) A tecnologia é apresentada como ferramenta para potencializar as experiências pessoais, como se vê logo em uma das primeiras cenas do filme. Nela, o celular de Theodore faz uma seleção de músicas melancólicas ao pedido do personagem, que queria algo que combinasse com seu estado de espírito. Temos, então, a tecnologia sendo usada como mediadora entre ele e seus próprios sentimentos, fazendo-se presente e talvez até necessária para se experienciar um momento emocional com toda sua potencialidade;

2) É apresentada como uma ferramenta para fazer a manutenção da sociabilidade em um contexto de relações individualizadas, o que se evidencia ao longo de todo o filme com as já mencionadas multidões solitárias, caminhando sozinhas totalmente voltadas para seus aparelhos. A tecnologia, então, é quem proporciona e media as interações desses sujeitos, poupando-os de ter que sair de suas “bolhas”;

3) Também é apresentada como ferramenta otimizadora do tempo, no sentido de levar o indivíduo a aproveitar seu tempo em toda sua potencialidade. É fácil perceber essa noção no filme, uma vez que, poucas vezes veremos os personagens apenas interagindo com pessoas ou simplesmente aproveitando um momento a sós com eles mesmos ou com os espaços que os cercam (no sentido de não haver nenhuma tecnologia mediando tais experiências). As cenas mais comuns são como as de Theodore ouvindo seus e-mails enquanto caminha na rua ou lendo notícias enquanto está no metrô. A tecnologia, portanto, atua aqui como uma mediadora da relação dos sujeitos com o tempo, otimizando-o e inserindo os indivíduos ainda mais na lógica do ritmo super acelerado, do fluxo frenético de informações e dos estímulos incessantes;

4) Por fim, é apresentada como uma alternativa para a otimização das próprias potencialidades dos sujeitos, no sentido de expandir suas possibilidades de ser e atuar no mundo. Essa proposta fica evidente no discurso do comercial do Sistema Operacional de Inteligência Artificial que Theodore adquire, o OS1. A propaganda se dirige ao público com as seguintes indagações: “Quem você é? O que você pode ser? Que possibilidades existem? O que tem lá fora?”. As ideias de explorar as extensões que podem ser “anexadas” aos sujeitos e de expandir e otimizar a concepção de indivíduo ficam notórias e remetem, inclusive, à noção do corpo como máquina de alta performance, a qual precisa sempre acompanhar o ritmo da produção, do fluxo de informações e das atuações na sociedade enquanto sujeito que tem de performar a todo momento.

--

--