APRENDIZADOS DE UM CABELO ROSA

Letícia Ange Pozza
5 min readSep 7, 2016

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06.09.2016

Sempre quis ter cabelo rosa — tento pintar o cabelo de cores consideradas “diferentes” desde que a minha primeira mesada permitiu isso. Eu tinha 12 anos e queria pintar as pontas do cabelo de azul. Afinal, se algo desse errado, era só cortar as pontas fora. A tentativa não deu certo: as pontas ficaram cinzas e o azul não pegou. Mais tarde, descobri os segredos do descolorante para o meu cabelo, e foi só alegria: aos 13 pintei de vermelho, azul e roxo. Isso tudo, obviamente, escondido e manchando a parede do banheiro de papel crepom, deixando minha mãe bem maluca.

Ao longo dos anos (e se for pensar exatamente quando isso aconteceu eu não consigo me lembrar), fui criando um senso de que se eu quisesse ser uma boa profissional, eu deveria ter cabelo das cores tradicionais: castanho, moreno ou loiro. Afinal, ruivo iria parecer falso demais e não me cairia bem. Além dos namorados babacas que não me deixavam ter cabelo loiro pois “eu chamaria atenção na rua e os outros não podem ficar olhando o que é meu”, tinha o mundo profissional que dizia que “eu era bonitinha demais pra ser levada a sério, imagina se eu pintasse o cabelo de cor diferente”.

Como comecei a trabalhar e estudar cedo, eu fui adotando esse ar “corporativo”, como se ele fosse uma entidade suprema ou uma religião que todas as pessoas acabam aderindo em algum ponto da vida. Fui ensinada na escola, na faculdade e no trabalho que me vestir, me portar e falar de forma “corporativa”(olha ela aí de novo) era a melhor forma para que eu me destacasse como uma profissional, e, consequentemente, fosse levada a sério.

E por muito tempo eu acreditei que funcionava, que era isso que me fazia ter um bom currículo e uma boa reputação de mercado. Posso dizer que me comportar de determinada maneira, aprender a falar em público e com pessoas de níveis hierárquicos muito altos de forma eloqüente e com os jargões necessários, foram competências necessárias para que eu me desse bem e me destacasse em entrevistas e reuniões de negócios. Ou ao menos, foi que sempre acreditei: 1) se vista bem; 2) aprenda sobre o universo daquela pessoa e incorpore ele; 3) quando a oportunidade surgir e você ganhar confiança, mostre quem você é através do seu trabalho; 4) repita 1 e 2.

Era quase como se eu vestisse uma máscara para mostrar que eu era capaz de incorporar aquelas convenções sociais e ainda ser uma boa profissional. Era eternamente um trabalho duplo, um modus operandi que me permitia aplicar os conhecimentos de negócios que eu havia estudado. Mas, definitivamente, não refletia o que eu pensava ou como eu me sentia: no fundo eu me sentia falsa, repreendida e sem identidade própria. Um eterno conflito entre quem sou versus o que eu quero ser.

E o mais engraçado é que, ainda passando por esse processo todos os dias, eu ouvi coisas como:

“Letícia, usando essa calça você não é feminina o suficiente”; “você parece frágil com essas suas unhas rosas”; “você desafia a autoridade demais para sua idade, onde já se viu questionar a solução que estamos passando para o cliente?”; “mas você é a mulher que mais ganha dentro desse departamento, isso não é o suficiente?”; “cuidado para não falar sobre sexo dessa forma, você pode ser mal interpretada”; “você é criativa demais para essa empresa, cuidado para não ser demitida por dar ideias demais”, “legal esse vestido colorido, mas não te esqueças que eu te contratei pois tu pareces uma pessoa respeitável e de negócios”.

Não há necessidade nenhuma em dizer que sempre tive chefes homens, ou mulheres, que tentavam impressionar outros chefes homens.

Então, eu me dei conta de que por mais que eu usasse essa identidade, eu sempre seria julgada pela minha aparência e não pelas minhas competências.

Independente do quão corporativa eu fosse, o problema daquelas pessoas não era a minha aparência, eram questões muito maiores que isso. Eu estava sendo julgada e discriminada pelo meu gênero e não só pela forma com que eu me vestia ou pela cor do meu cabelo. Que independente do meu cargo, da minha posição, do status, do conhecimento ou poder aquisitivo, minhas capacidades sempre seriam avaliadas em segundo plano. Corporativa ou não, o meu esforço para convencer aquelas pessoas de que eu era uma boa profissional e de que sou, sim, valiosa para a equipe, seria sempre o mesmo.

E, nesse momento, eu me dei conta de que eu estava olhando para isso de forma errada. Fodam-se roupas, foda-se cor de cabelo, foda-se postura ou linguagem: eu podia ser o que eu quisesse. E, livre da sensação de ser julgada pelas roupas, pela forma como me expresso e pela cor do meu cabelo, eu finalmente pintei o cabelo de rosa. E pela primeira vez, eu me senti livre, aos 27 anos, para ser quem eu sempre quis ser, da cor que eu queria ter. E pra mim foi incrível, uma experiência transformadora, fisicamente e emocionalmente.

Mas o que eu não imaginava é que, com o cabelo rosa, eu finalmente daria um motivo explícito para as pessoas demonstrarem o machismo delas em relação mim. Hoje, não falam mais “a menina bonitinha demais”, “novinha demais”, “pretensiosa demais pra idade dela”, “questionadora, curiosa ou criativa demais”, questões que não eram feedbacks ou algo no que eu pudesse trabalhar como competência. Finalmente, é “não serve, pois ela tem cabelo rosa”.

E isso ainda não me define como profissional, mas ao menos explicita a incapacidade daquela pessoa de perceber meu potencial como profissional. E me deixa claro que, com aquela pessoa, eu não quero e não preciso trabalhar, pois ela não merece meu respeito, esforço e meu trabalho.

Não vou dizer que ainda não dói. Dói demais e ainda estou aprendendo a lidar com o processo. Mas é de um empoderamento indescritível. Eu finalmente sei. Sei por que não me querem numa palestra e preferem que outro homem menos preparado ocupe meu lugar. Sei por que as pessoas me olham na rua (e velhinhos encaram e balançam a cabeça negativamente). Sei por que eu sou confundida como aluna e não professora (e por que riem da minha cara ou fazem piada de mal gosto quando digo que dou aula).

É um saber muito reconfortante. Pois me permite ser e não parecer.

Hoje me identifico com o rosa. Mas não sei qual a cor de amanhã ou da próxima semana. Sou muito feliz por representar uma empresa que me entende, me incentiva e me respeita pelo que sou, e não pela cor do meu cabelo. Uma empresa que junto a mim levanta a bandeira dessa imagem que fica tão clara do machismo no mundo corporativo. E espero que essa imagem que fica tão clara pra gente, possa ser refletido de volta para eles quando alguém questionar “mas a gente não quer trabalhar com ela por causa de um cabelo rosa?”. Que esses aprendizado sejam deles, tanto quanto meus.

Nenhum cabelo foi danificado durante a execução dessa postagem.

Obs.: um adendo bem importante que me lembraram de incluir: as crianças. Pintar o cabelo de rosa me fez ser uma sensação entre meninos e meninas com menos de 10 anos. E o mais legal é que deles eu nunca vi questionamento ou julgamento: é uma surpresa genuína e positiva. Me alegra pensar que posso ser um exemplo de uma pessoa mais velha com o cabelo colorido que mostre a eles que podemos ser o que quisermos. Só tenho dó das mães e dos pais depois, que tem que ficar ouvindo "Mãe, eu também quero o cabelo rosa!" :P

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