Ser escritora e ser mulher

renata correa
5 min readNov 17, 2015

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Era uma vez uma poeta muito promissora. Uma moça bonita, de cabelos dourados e um sorriso contagiante. Seu nome era Joyce. Ela conheceu um escritor talentoso e jovem e também muito promissor. Eles se admiravam, trabalhavam juntos, e tentavam essa coisa viscosa e difícil que é viver de arte.

Em algum momento eles se casaram, tiveram quatro filhos e foram muito felizes. Ela desistiu de escrever para apoiá-lo. Fez a comida, lavou as cuecas, criou as crianças. Ele escreveu o livro favorito da minha juventude — Pergunte ao pó — teve uma carreira de altos e baixos como roteirista em Hollywood e teve uma produção extensa como autor. Na biografia do John Fante, Joyce Fante é uma nota de rodapé, a mulher abnegada que datilografou “Sonhos de Buker Hill” quando o marido ficou cego em decorrência da diabetes.

Eu também sou roteirista e escritora, ninguém além de mim faz meu jantar e já perdi a conta de quantos filmes eu vi onde um homem brilhante tinha uma esposa, ficante, peguete, pretendente, namorada, amante ou tico tico no fubá que quando o bicho pegava, quando ele duvidava de si mesmo, quando as trevas pareciam se abater sobre o talento e as nuvens escureciam o horizonte daquele jovem promissor, ela estava lá. Ela segurava a nuca do homem, olhava nos olhos dele e dizia que ia dar tudo certo. Que ele era o cara, e que bastava acreditar em si mesmo. Ela cuidava do mundo doméstico para que esse homem pudesse ter um chão sólido para pisar quando voltasse da guerra horrenda que é tentar sobreviver através do seu intelecto. Ela transava com ele para aplacar a sua angústia. Ela o amava e quando ela o amava, ele tinha forças para continuar.

Tirando em As Horas, onde o marido da Virginia Wolf é a encarnação da benevolência no planeta terra, não lembro de cabeça assim, outra dramaturgia de fôlego, na cultura pop que mostre essa relação se invertendo. E não achem que é coisa da ficção — é da vida real mesmo. A vida imita a arte, a arte imita a vida, etc etc.

Alguns pares de anos atrás eu ainda trabalhava como assistente de direção em um programa de entrevistas sobre cinema. Fazia pesquisa, pauta e entrevistava pelo Brasil diretores, fotógrafos, roteiristas, diretores de arte, produtores, atores. Era muito legal, eu conhecia gente bacana, e adorava saber, afinal, como aquelas pessoas chegaram naquele lugar dourado que eu aspirava. Eu nem vou falar da abissal diferença da quantidade entre homens e mulheres nessas posição. Acho que para cada dez entrevistados tínhamos duas mulheres, se muito. Mas isso fica para outro texto. O que me impressionou foi a narrativa delas. E o quanto todas as histórias tinham um componente em comum: uma solidão. É claro que homens que criam também possuem o seu naco de solidão no mundo, mas a solidão delas era diferente. Não era a solidão feliz de ter escolhido algo, mas a solidão de ter abandonado algo.

Certa vez em uma dessas entrevistas, fui até a casa de um roteirista bem sucedido, premiado, bem quisto e gente finíssima. Ele me recebeu no seu apartamento num bairro descolado e rico de São Paulo. A entrevista foi no escritório com paredes coberta por livros em prateleiras de madeira sólida. Invejei sua cadeira macia e ergonômica, o suporte que ele usava para o laptop de última geração em cima de uma mesa centenária que pousava em um chão de mármore. Vi seus filhos pequenos, louros, lindos e educadíssimos, brincando e correndo pela casa, e sua esposa os retirando para que o papai pudesse dar uma entrevista. Ao mesmo tempo em que eu gravava a história de superação daquele homem que saiu de uma periferia violenta e hoje usava calças bem cortadas e não escrevia nem o próprio nome antes que números cheios de zero à direita caíssem na sua conta, eu ouvia a esposa e a babá na cozinha, organizando o dia dos pequenos, a hora que a van da escola os buscaria, o cardápio do jantar, que horas levá-los para natação. As duas histórias, a do roteirista (sendo gravada com câmera e iluminação para posteridade) que teve que superar muitas dificuldades para chegar onde chegou e da esposa (invadindo sorrateiramente por debaixo da porta) tecendo ali o fio da rotina para que ele caminhasse bem, ficaram ali se entrelaçando na minha cabeça, montando essa teia comum que se repete todos os dias desde o início dos tempos.

Eu não vou aqui problematizar a escolha individual de ninguém. Tenho muitos amigos escritores, diretores e produtores que vivem exatamente assim: dedicam-se integralmente a essa tarefa árdua que é o processo artístico e têm relações felizes com mulheres que os amam e apoiam nessa empreitada. Também não vou problematizar individualmente as escolhas dessas mulheres.

Mas eu vou sim problematizar o porquê dessa história se repetir tanto.

Quantas escritoras, diretoras, dramaturgas, artistas plásticas, fotógrafas possuem esse privilégio? Poucas, muito poucas. Quantas de nós temos o direito de trancar a porta do escritório sem antes lavar a louça, preparar a comida, e colocar as crias para dormir? A madrugada é amiga da mãe-artista. Às vezes, a única amiga.

Eu particularmente nunca tive isso. E não acho que seja uma coincidência, que eu e minhas amigas que possuem produção artística também não tenham: o cara segurando a nuca, olhando no olho e falando: vai lá amor, vai mudar o mundo que eu pego o rojão desse banheiro sujo, dessa fralda cagada. Claro, estou falando de um recorte muito específico, a produção artística. Mas o quanto essas relações não se repetem também em qualquer outro trabalho qualificado como ser uma cirurgiã, gerente de uma grande empresa, acadêmica, cientista? Quantas mulheres talentosas não se tornam grandes apoiadoras de homens talentosos e quantas mulheres talentosas estão se fodendo e virando nos trinta com jornadas estafantes para estarem nos lugares onde elas merecem estar?

E não achem que essa é uma coisa que se estabelece só através das relações amorosas de afeto. Dia desses recebi um texto tristíssimo sobre a irmã do Mozart, uma musicista excepcionalmente talentosa, muitas vezes considerada melhor que o irmão e que foi retirada pelos pais da vida artística para aprender a ser uma boa esposa, enquanto os recursos da família foram voltados para fazer com que Mozart fosse Mozart. O próprio músico dizia que a irmã compunha dez vezes melhor do que ele. E o mundo, infelizmente, nunca vai ouvir o que Mozart ouviu e o deixou tão maravilhado.

Depois de ler esse texto fiquei imaginando o quanto a gente têm deixado de ver, ouvir, sentir, observar por conta desse contexto. O quanto estamos perdendo em diversidade de olhar pro mundo ao deixar que mulheres de talento não tenham condições objetivas e materiais para se expressar. O quanto que essas escolhas, essas desistências não são mediadas por um meio inóspito para mulheres artistas, um meio que nos diz que vamos fracassar e que é melhor investir num cavalo com mais chances de ultrapassar a linha de chegada. Isso por que eu nem fiz o recorte da mulher negra, da mulher lésbica, bissexual, trans, periférica. Senão é sentar e chorar.

Perdem as mulheres, claro. Mas principalmente perde o mundo. Que fica menos colorido em representações, em potência e em frescor proporcionado por um olhar não majoritário.

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