Dark Souls — Level Secreto #90 (Transcrição)

Autor: Erick Oliveira

Level Secreto
9 min readDec 1, 2023

Dark Souls foi lançado em setembro de 2011 para Playstation 3, Xbox 360 e PC. Em 2018 teve uma versão remasterizada para PS4, Xbox One e Switch. Dark Souls é um sucessor espiritual do Demon’s Souls que havia sido exclusivo do PS3, ele foi renegado de certa forma pela Sony, o que fez com que o próximo título se tornasse multiplataforma, publicado pela Namco-Bandai.

Demon’s Souls foi um jogo revolucionário, mas foi com Dark Souls que a From Software mudou de patamar enquanto desenvolvedora, popularizando um estilo de experiência de RPG com ação que influenciou bastantes títulos ao longo da década.

Dark Souls inicia com um vídeo em CG da sua história, algo que naturalmente é esquecido pelo jogador ao longo da campanha, pois, a trama desses jogos é desenvolvida de um jeito não convencional. Grande parte da compreensão do enredo vem de prestar muita atenção nos diálogos com NPCs, descrição de itens e a disposição de elementos nos cenários.

É muito fácil ter uma crença de que Dark Souls não tem uma história, por não a contar de modo tão expositivo, e nisso, o jogador ficar envolvido nos aspectos de gameplay. Esse encaixe de fragmentos para termos a visão geral do que está acontecendo vem do diretor Hidetaka Miyazaki. Mais novo, quando ele lia histórias em inglês e diante das palavras que não sabia o significado, substituía por outra para preencher o contexto do que estava lendo. Miyazaki quis trazer essa experiência em forma de videogame.

Mas qual é o enredo de Dark Souls. Na introdução temos a ideia de que existia uma era dos antigos, que no mundo havia árvores colossais onde dragões imortais reinavam. Eis que surge o fogo, com ele a ideia de vida e morte, luz e trevas. Quatro seres adquiriram um grande poder a partir desse evento, sendo que três deles desafiaram os dragões e conseguiram criar uma nova era, a do fogo.

No entanto, o jogo se passa em um período decadente, marcado pela iminente extinção da chama primordial. A humanidade foi afligida por uma maldição, no qual as pessoas ficam constantemente ressuscitando. As vítimas dessa maldição são mortos-vivos que vão perdendo suas consciências nesse processo, tornando-se hollows.

O jogador cria um personagem, algo que vem do Demon’s Souls e é comum em outros jogos da From Software. Independente das escolhas do jogador, esse personagem é um morto-vivo. O jogo começa num lugar que é um asilo que comportam esses seres amaldiçoados, um trecho de gameplay introdutório que serve de tutorial.

Após sair desse asilo, o personagem vai para onde ocorre todo o jogo praticamente, o reino de Lodran, onde as áreas são todas interconectadas, com pouquíssimas exceções. O jogador parte de um lugar, Firelink Shrine, para descobrir os caminhos de sua aventura.

Mas como saber os caminhos? Então, aqui entra o que foi dito antes, o enredo está na atenção a detalhes, como os diálogos com NPCs, mesmo que o que esteja em sua frente pareça genérico e irrelevante. O NPC que está perto da fogueira de Firelink Shrine fala sobre tocar os “sinos do despertar”, um acima de onde os dois estão e outro bem abaixo. Eis o objetivo principal daquele momento em Dark Souls.

A questão é que o jogo exige a atenção em pequenos detalhes, algo que em outras experiências tem uma seta gigante ou elemento em destaque no mapa apontando o objetivo para o jogador. Os NPCs dos jogos da From Software têm todo um jeito especial de falar, sendo meio crípticos, possuindo uma fala trágica, com um pesar sobre aquele mundo, fora aqueles que debocham do seu personagem.

O que ocorre em Dark Souls é que, mesmo que essa informação passe completamente batido, o jogador vai passando pelos cenários, apanhando e vencendo os inimigos e chefes, e, eventualmente, os sinos serão tocados e novas áreas estarão disponíveis. O instinto de jogador faz com que tudo aquilo se desenvolva, ainda que o contexto seja pouco assimilado. Alguma coisa tá de fato se desenrolando e é possível interpretar uma ou outra coisa.

O importante desse aspecto vago de Dark Souls, é que a jornada do jogador dá a substância ao que está acontecendo, os desafios do jogo meio que escreve essa narrativa com linhas tortas. Na minha primeira experiência com os títulos da From Software, a minha imaginação foi preenchendo o que eu vivia ali, todas as dificuldades e conquistas formaram os capítulos dessa história.

Construía um vínculo com aquele mundo. Vou até além, estava ali descobrindo uma das maiores conexões que tive com um videogame, sobretudo, porque a minha ignorância era algo fundamental para que as engrenagens funcionassem e o senso de descoberta fosse algo espontâneo.

Posteriormente quando fui sabendo mais da história de Dark Souls, principalmente quando fui pesquisando na internet, veio todo uma camada para aquela aventura que vivenciei com o controle da mão. Saber onde tudo se encaixa, o real sentido das ações que fiz no jogo, foi tipo atingir o sétimo sentido, um arrebatamento, uma realização muito satisfatória.

Assim, uma das sensações mais prazerosas que o ser humano pode sentir é de assimilar processos de coisas se encaixando, de um significado sendo montado como um quebra-cabeça. O fator interativo dos videogames favorece e muito essa sensação, que no fundo é uma experiência de aprendizado.

É devido ao brilhantismo disso que me chateia a ideia de que Dark Souls, ou os jogos da From no geral, não tem uma história. Isso só é limitar o que entendemos por história e narrativa, suas diversas possibilidades. No geral, nessa maré de discussões de videogames que vemos por aí, nada vai para lugar nenhum. Uma hora dizem que classificar as coisas é uma perda de tempo, porque senão tudo fica muito chato. Outra hora tem que ter um conceito bem rígido para coisas diferentes.

Deixando esse pequeno desabafo de lado, o grande mérito narrativo que Dark Souls deixou evidente é a importância da jornada do jogador para o plano geral da trama. Como as regras formais de jogo, o uso delas em cada contexto dita as situações que vão definindo o percurso da experiência. Em certos momentos há cutscenes, mas, o que desenvolve esse mundo é a maneira que o jogador interage e assimila cada elemento.

Em Dark Souls, como foi falando antes, o jogador cria o seu personagem, escolhendo uma classe para ele. Isso alterna as estatísticas iniciais dos atributos, como os equipamentos que são coletados primeiro durante a parte do tutorial.

Uma mecânica muito importante introduzida aqui é o Estus Flask, o principal recurso de cura. No Demon’s Souls, o jogador coletava itens que enchiam a vida, de menos a mais quantidade nas variações existentes. O Estus Flask tem uma quantidade fixa de 5 vezes que pode ser usado. Esse número pode aumentar depois.

Quando o jogador senta na fogueira, que são os pontos de checkpoint, a quantidade de Estus se recupera, mas, os inimigos retornam. Isso é uma forma de Dark Souls dizer que é possível passar por esse trecho com essa quantidade de recursos. O trecho de uma fogueira a outra foi toda pensada para que o jogador pudesse cometer 5 erros, por assim dizer. O balanceamento existe a partir dessa lógica.

Dentro desse contexto, o que exigido em Dark Souls é saber lidar com os perigos: quem são os inimigos de uma área, como eles se comportam, como estão dispostos pelos cenários. Um detalhe que me encantou rapidamente é como que Dark Souls comunica o que eu errei, passei adotar isso como um critério para me interessar por jogos no futuro, até mesmo valorizar melhor isso em experiências passadas nos videogames.

Isso não é subjetivo, vem de como os inimigos se comportam como o nosso personagem, as regras são compartilhadas, desde a movimentação até as vulnerabilidades que podem valer para ambas as partes. Desse princípio que vem a noção de a evolução nos títulos da From Software vem do aprendizado do jogador, enquanto o aprimoramento de níveis e estatísticas atuam de modo secundário.

Assim como há o cuidado em prestar atenção nos fragmentos de enredo, no combate também seria o caso de estar atento a cada passo do seu personagem. Afinal de contas, estamos em um mundo hostil e decadente.

O reino de Lodran são essas áreas interconectas e tem os pontos para salvar o progresso que são as fogueiras. Esses checkpoints não estão separados como em Demon’s Souls, que só surgiam após derrotar um chefe depois de um percurso sofrido. Mas, ainda sim, são longos e desafiadores trajetos, felizmente contando com alguns atalhos que dão alívio ao jogador. Fora isso, há uma satisfação diante dessa interconexão dos cenários ser cada vez mais aparente, mais que isso, de isso tudo ter um sentido na noção especial nesse reino.

O level design é tão bem desenvolvido, que muita gente, erroneamente, classifica o primeiro Dark Souls como um metroidvania, sendo que esse desbloqueio de novas áreas não é feito por novas habilidades que o seu personagem adquire.

Sobre isso de interconexão do mundo, isso é algo que Dark Souls desenvolveu melhor que os outros títulos da From Software. Um fator que ajuda nisso é indiferença do jogo em relação ao jogador. Em Firelink Shrine é possível ir para outros lugares ao invés do objetivo principal, fica muito fácil se meter nos locais mais aleatórios, que só mais adiante o jogador está pronto para lidar.

É óbvio que na minha primeira jogatina fui para o cemitério, segui para as catacumbas, conseguia aos trancos e barrancos matar alguns esqueletos, mas, eles voltavam, e, ué? Acho que não é esse caminho hein?

Decidi, portanto, descer o elevador abaixo de Firelink Shrine. Foi uma longa descida e parei em New Londo Ruins, parecia um cenário final de qualquer jogo, mas, queria explorar né? Eis que surgiam uns fantasmas que não recebiam nenhum dos meus golpes. Acho que não é esse caminho hein?

Descendo o mesmo elevador tem uma porta, ela pode aberta com uma chave mestra. Felizmente, posso começar com esse item, acessando um caminho ainda mais alternativo. Mas, existe um dragão zumbi e também outros dragões aqui. Acho que não é esse caminho hein?

Não preciso seguir até o fim do desfiladeiro, tem um caminho na caverna. Mas, surge um ogro bem forte e adiante tem Blighttown. Acho que não é esse caminho hein? Melhor seguirmos o caminho fácil mesmo né?

Adoro essas experiências de verdade. Principalmente quando mais adiante retornamos e entendemos onde as coisas se conectam, onde na estrutura “padrão” de Dark Souls, essas áreas se encaixam.

Havia falado que o jogador escolhia as classes e assim o seu personagem possuía algumas características iniciais. Mas, no decorrer do jogo, é possível dinamizá-lo a partir do investimento para evoluir atributos, na coleta dos inúmeros equipamentos, assim como nos seus aprimoramentos, cujo requisitos são diferentes minérios. Além disso, temos as magias e os milagres, que são executados por uma quantidade de tentativas e não por uma barra de MP, algo que havia em Demon’s Souls e retornou no Dark Souls III e está também presente em Elden Ring.

Aqui temos a humanidade, item que faz nosso personagem deixar de ser um morto-vivo e se tornar humano. A partir desse ponto é possível realizar algumas coisas, principalmente, usufruir das ferramentas de jogar online.

Um outro aspecto que o primeiro Dark Souls é único, algo que talvez cause essa impressão dele ser o mais difícil de todos, é que só em certo ponto do jogo é possível se transportar entre fogueiras. Nisso, existe a tensão de estar descobrindo uma área, indo a fundo e não ter a garantia de voltar, de retornar facilmente para uma zona familiar. Isso é algo que, sinceramente, sinto falta na série, que atua reforçando nessa sensação de explorar um lugar desconhecido e hostil.

Dark Souls causou um grande impacto na indústria, na questão de seu modo de conduzir uma narrativa, da dificuldade elevada comparada a tendência dos títulos da época. Na verdade, o que Dark Souls fez e que deixou de legado, simplesmente foi entregar uma experiência em que o jogador se sentia mais envolvido com que estava interagindo. Vivíamos um período em que os grandes jogos intervinham de maneira excessiva na condução do jogador, deixando-o até meio alienado aquela experiência.

Dark Souls foi conquistando fãs fervorosos ao longo dos anos, boa parte deles interessados pelo murmurinho de ser um título muito mais difícil que a média. A impressão que tenho e que costumo ouvir é que: Dark Souls muda o jeito de uma pessoa enxergar os videogames, de deixar mal-acostumado, mais exigente com os demais jogos.

Não é à toa que os admiradores dos títulos da From Software são encarados como pessoas muito chatas, que querem convencer os demais a jogarem um Dark Souls como se tivessem pregando uma palavra sagrada. Diante até de alguns termos que falei ao longo do podcast, da minha experiência pessoal, essa analogia faz um certo sentido.

Naturalmente nós queremos compartilhar algo bom para quem gostamos, e ficamos chateados quando o outro não tem o mesmo envolvimento ou apreço. Queremos que mais gente sinta a emoção de superar um chefe difícil, de descobrir uma nova área interessante, ou até vivenciar o estresse com situações que pareçam injustas.

No fim, Dark Souls não é só sobre vivenciar um mundo fantasioso em que descobrimos como ele funciona. Dark Souls fala muito da nossa disposição em se meter em situações até mesmo desconfortáveis, tudo para seguirmos em algo que achamos interessante, que possamos ter realizações relevantes. Isso tudo, de certa forma, acaba resumindo a nossa vivência como jogadores e nosso afeto pelos videogames.

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Level Secreto

Transcrições dos episódios do podcast Level Secreto.