Fallout 3 — Level Secreto #76 (Transcrição)

Autor: Erick Oliveira

Level Secreto
10 min readJul 29, 2023

Fallout 3 foi lançado em outubro de 2008 para PC, Playstation 3 e Xbox 360. Esse título marca a modernização da franquia, nos moldes de um The Elder Scrolls num pós-apocalipse nuclear. A experiência jogável que Fallout 3 introduz se estende até a atualidade, com altos e baixos, conquistando fãs e também quem não gosta, sobretudo aqueles que admiram o primeiro e o segundo jogo da franquia, e se sentem órfãos do que era feito no início.

A questão é que Fallout surgiu com uma gameplay mais estratégica com a visão de cima. O grande trunfo era justamente o fator RPG mais acentuado, de haver uma interpretação do papel do personagem que o jogador controlava. A complexidade dos sistemas, mesmo com suas limitações técnicas, permitia o senso de agência, das ações e escolhas interferirem nesse mundo e na jornada do personagem, em especial, numa noção de imprevisibilidade das consequências diante das variáveis maneiras que se pode lidar os desafios que se apresentam.

Essa grande mudança do Fallout 3 se deve a falência da Interplay Entertainment, que passou os direitos da franquia para a Bethesda. O estúdio Black Isle, que fez os dois primeiros Fallout, nessa época estava desenvolvendo uma possível sequência, com o nome provisório de Van Buren, no estilo de RPG que estavam acostumados a fazer. Quando a Bethesda assumiu o controle da propriedade intelectual, eles começaram a fazer um Fallout 3 do zero, tornando-se o jogo que foi lançado em 2008.

Os funcionários da Black Isle formaram nesse período a Obsidian Entertainment, que felizmente continua na ativa até hoje, só que nas mãos da Microsoft. Um dos jogos que o estúdio fez foi o Fallout New Vegas, de 2010, ele tem a mesma pegada do 3, mas há indícios de que elementos que foram feitos no projeto Van Buren foram incorporados nesse jogo.

Bem, falei bem resumidamente do que gerou essa mudança da franquia, só que é bom falar também o que é Fallout, como funciona esse mundo.

Os jogos são ambientados nos Estados Unidos, com uma estética de anos 50, pós-segunda guerra mundial. Apesar dos avanços científicos, o estilo dos aparatos tecnológicos se mantinha os mesmos, além disso, algumas questões socio culturais também se estenderam por mais tempo. Por isso que o século XXI aqui é diferente do que nós vivemos, ainda havia temores como uma ameaça nuclear, o que acabou de fato ocorrendo.

Diante de tanta disputa política pela falta de recursos, em outubro de 2077 ocorreu a Grande Guerra, causada especialmente pelo conflito entre Estados Unidos e China, mas, que resultou em uma reação em cadeia na devastação nuclear do mundo, no colapso das estruturas sociais e governamentais. Tudo isso em apenas 2 horas.

A Grande Guerra foi um evento ridiculamente curto, mas suas consequências se arrastaram por centenas de anos a frente. Como em Fallout a gente explora os Estados Unidos, vimos como o país se tornou um grande deserto, com a radiação ainda presente. Esse cenário ocasiona a miséria, fome e doenças na vida dos que sobreviveram, além da aparição dos monstros mutantes que encontramos nos jogos.

Nos Estados Unidos, alguns grupos de pessoas conseguiram alcançar a segurança nos vaults, que são abrigos subterrâneos. Apesar desses ambientes serem seguros diante da vida hostil que se encontra na superfície, além da questão do confinamento, poucos desses abrigos serviam ao propósito de dar segurança a essa população.

Muitos desses vaults tinham objetivos perversos, uma parte secreta do governo estadunidense usou cada um desses abrigos como um modo de experimento social. O que era para ser um projeto de salvar a humanidade, escondia uma série de câmaras de testes, que inseriam grupos de pessoas nos mais variados cenários, a fim de entender como eles se comportariam.

Em Fallout 3, o personagem principal é criado pelo jogador: um ou uma adolescente que cresceu no Vault 101 e partiu para superfície na busca de seu pai desaparecido. O jogador explora um território conhecido como Capital Wasteland, uma área que antes era Washington DC, a capital dos Estados Unidos. Em meio a conhecer o mundo da superfície, lidando com histórias em cada canto, o grande objetivo da trama de Fallout 3 é conseguir tornar realidade um modo de produzir uma grande quantidade de água potável para a região, livre dos efeitos da radiação. Em meio a isso seu personagem acaba num confronto entre duas facções que são recorrentes em Fallout: a Brotherhood Of Steel e a Enclave.

A Brotherhood Of Steel, ou irmandade de aço em uma tradução livre, é o grupo mais presente na franquia, tanto é que a armadura icônica, que a gente costuma ver, são deles. A Brotherhood Of Steel é uma ordem militar que surgiu após a Grande Guerra e tem o objetivo de preservar a tecnologia avançada que havia até então, regulando o seu uso.

Eles têm uma influência no território que era os Estados Unidos, e a Brotherhood of Steel que a gente encontra em Fallout 3 é um grupo que separou da sede principal, do sul da Califórnia. Inicialmente eles foram a costa leste numa missão de recuperar tecnologias na antiga capital do país, nisso, descobriram uma arma interessante que fez com que se estabelecessem no lugar. Somado isso, surgiu um ímpeto de lidar com uma espécie de super mutantes que descobriram na região.

A outra facção importante aqui é a Enclave, que se autoproclama a continuação dos Estados Unidos, originado de uma parte secreta do governo pré-guerra. Se lembram quando falei do propósito perverso dos vaults? Então, é esse mesmo pessoal, eles foram permanecendo ao longo dos anos, são originados de figuras políticas, militares e corporativas de alto escalão.

A Enclave ficou em isolamento após a Grande Guerra, e nisso, acabou despertando um sentimento ultranacionalista, a ponto de enxergarem os habitantes da superfície como não americanos, e sim, mutantes inferiores, adequados apenas ao trabalho escravo ou mesmo serem logo exterminados. A Enclave que é encontrada em Capital Wasteland é um grupo remanescente que saiu da costa leste após os eventos de Fallout 2.

Beleza, introduzi a trama e o cenário que o jogador encontra em Fallout 3. Agora é o momento de falar da gameplay, que é diferente do início da franquia, mesmo com um esforço de tentar preservar as características de RPG.

Fallout tem a introdução do seu personagem nascendo, passando por momentos de sua infância, e isso é o modo do jogador criar seu personagem. Aqui somos apresentados a um sistema comum na série, o “SPECIAL”, cada letra significa um atributo, que traduzido seria: força, percepção, resistência, carisma, inteligência, agilidade e sorte. A maneira de distribuir os pontos no “SPECIAL” vai servir de base do seu personagem do início ao fim do jogo.

As skills e os perks também são elementos dos primeiros Fallout. As skills são habilidades aprendidas pelo personagem, que o jogador vai colocando pontos a cada evolução de level. As skills podem melhorar ao ler livros, completar missões e vestir determinados equipamentos. Os perks são vantagens que seu personagem pode desbloquear a cada subida de level, alguns estão disponíveis de acordo os atributos que o jogador colocou no “SPECIAL”. Há perks que o personagem adquire ao completar missões.

Fallout 3 introduz “Pip-Boy 3000”, é um aparelho feito pré-guerra que o personagem tem no braço. Ele atua como um banco de dados para informações que o jogador deseja consultar, como status do personagem, o “SPECIAL”, as skills e os perks que acabei de mencionar, o inventário, mapa, missões, notas, rádio, etc.

A grande diferença da experiência dos Fallout da Bethesda é, justamente, o combate, que é tempo real, lembrando mais um jogo de tiro. Mesmo com essa mudança, existe um elemento na gameplay que tenta colocar um caráter estratégico nesse combate que é o “V.A.T.S”, um sistema assistido de alvo. Ao ser utilizado, o tempo é pausado e o jogador pode escolher partes do inimigo que quer causar dano, com variações na porcentagem de acerto. Ataques com o “V.A.T.S” custa pontos de ação, que depois de usados vão sendo recuperados com o tempo.

Quando o jogador define seus alvos e aciona o “V.A.T.S”, o jogo vai mostrar o ataque em câmera lenta, esses são os momentos que a violência de Fallout 3 tem seu destaque. Apesar do jogador ganhar uma vantagem no combate com essa mecânica, usar o “V.A.T.S” faz com que as armas percam suas durabilidades. Portanto, é necessário fazer um equilíbrio entre o combate normal e essa ferramenta facilitadora.

No jogo é possível formar party, ou seja, alguns personagens podem acompanhar o jogador, alguns temporariamente até completar missões específicas, e podem ficar para sempre, a não ser que morram de algum modo. Um personagem se junta ou não a seu grupo dependendo do seu “karma”, podendo ser bom ou ruim, de acordo com suas ações no mundo. Mas há companheiros que se juntam a seu personagem independentemente disso.

Por falar em sistema de “karma”, esse seria seu status perante o mundo de Fallout 3, que muda a forma dos NPCs interagirem com seu personagem, seja de acordo com as regiões ou com as facções presentes em Capital Wasteland. De acordo com sua conduta, seu personagem pode ser emboscado por um grupo de inimigos em momentos aleatórios. No geral, há uma divisão entre bom, neutro e mau, e cada um desses perfis, com variações de títulos recebidos, permite que o jogador possa ter alguns efeitos e acesso a alguns lugares.

Em resumo, Fallout 3 é esse jogo que você monta um personagem, sai de um ambiente confinado e explora um mundo em ruínas, com suas organizações sociais próprias, com os perigos que surgiram a partir dos efeitos radioativos da guerra, tudo isso norteado por um objetivo de encontrar o seu pai. Ao longo do jogo, o seu personagem vai tomando decisões importantes e modificando aquele contexto, tornando-se uma figura importante.

O fator de ação que se tornou mais presente aqui, fez com que Fallout 3 atraísse a atenção de um público mais mainstream. Diante da complexidade de seu mundo e sistemas, Fallout 3 foi considerado um jogo ousado para a época.

O que é bastante criticado a partir daqui na série, tem muito a ver com o roteiro, no que diz respeito a resposta do mundo as ações do jogador. Sendo a grande questão nesse Fallout, em particular, um direcionamento do jogo aos seus desfechos, como um maniqueísmo das principais fracções rivais. Diante do que falei anteriormente, é muito mais fácil ficar do lado do Brotherhood Of Steel do que a Enclave, que é um grupo claramente fascista.

Agora entro em uma questão de como que alguém pode ser apresentado a um jogo desse. Existe a pessoa que teve o seu primeiro contato com Fallout, e tem aquela que já possuiu uma bagagem de experiências com os títulos da Interplay, ou algo similar como um Planescape Torment, Baldur’s Gate, etc.

Digo isso pelo seguinte: joguei Fallout 3 depois do Breath Of The Wild, ou seja, 10 anos depois de seu lançamento. Vale ressaltar que não gosto de Skyrim, já havia tentado jogar umas três vezes e nunca clicou. Porém, pelo meu gosto de pós-apocalipse nuclear, e já gostando da premissa da série, queria dar uma chance para Fallout.

Diante de tudo isso, comprei essa história, realmente me senti imerso nesse mundo. Todo o direcionamento inicial de sair do Vault e ter contato com essa superfície, sem saber o que encontrar, foi muito engajante. Havia um sentido norteador da aventura, mas cada desvio consistia em conhecer mais desse mundo, saber como sobreviver nele através da mais simples coleta de recursos, fora a maneira que a evolução do personagem acontece.

Não mencionei Breath Of Wild à toa, com isso, dá para ter uma noção de que o sarrafo estava lá em cima. No quesito exploração, temia muito que o Fallout 3 apresentasse as coisas que acabaram deixando esse gênero de mundo aberto tão enfadonho para mim. Em geral, o fato desses jogos parecerem mais tarefas a serem completadas do que, de fato, entregarem um senso de descoberta.

Um pequeno detalhe que Fallout 3 me encantou, é que, por mais que o jogo me informe o nome de um lugar no mapa, ele não dizia o que tal local significava em gameplay. Esse ponto podia ser qualquer coisa, eu só iria descobrir quando entrasse lá.

Uma fábrica abandonada poderia ser um acampamento de bandidos, poderia apresentar uma nova criatura, poderia ter uma nova arma, poderia ser um lugar interessante em lore, ou, simplesmente, não podia ter nada. Mas, haveria um senso de descoberta.

No caso dos jogos de mundo aberto que nos acostumamos, cada área tem um ícone que representa um tipo de atividade ou recompensa padronizada que o jogador vai encontrar. Isso mata a materialidade do mundo que nós estamos interagindo, deixando muito clara a sua artificialidade. O irônico disso, é que é tão comum esses jogos gigantes serem vendidos como algo imersivo, principalmente através dos gráficos e de sua escala. Só que a padronização é tão aparente, que logo o vínculo que poderíamos ter com tamanho trabalho de elaboração desse mundo, acaba despertando zero sentimentos.

Então, no caso de Fallout 3, mesmo que ele tenha essas críticas que mencionei, da resposta do mundo não ser tão boa, para mim acabou ficando no meio termo e consegui me jogar nesse mundo. Algo que não aconteceu no New Vegas, por exemplo, e mencionar isso vai deixar algumas pessoas que estão lendo chateadas.

Mas, me sentir solto demais em um jogo, com um proposito norteador de trama ser algo tão pouco impositivo, faz pensar que o mundo é um playground para testar como meus atributos e escolhas vão se relacionar com as coisas, um laboratório que vou experimentando causas e consequências.

Isso tudo obviamente entra na questão de gosto, que têm a ver com nossas bagagens de experiência, na alfabetização com gêneros de jogos, com linguagem audiovisual, ou, simplesmente, é algo que surge do nada e nos cativa por acharmos “daora”.

Fallout 3 é um jogo me ensinou um pouco mais o que me faz gostar de determinados jogos em vez de outros, por mais que sejam melhores. Isso é importante até para se livrar de um sentimento de culpa de não conseguir gostar de obras aclamadas. Dito tudo isso, não tem como menosprezar as horas que passei explorando esse mundo pós-apocalíptico, com essa história que no fim pode ser tão engessada, mas a jornada acabou sendo significativa.

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Level Secreto

Transcrições dos episódios do podcast Level Secreto.