Immortality — Level Secreto #69

Roteiro: Erick Oliveira

Level Secreto
7 min readNov 29, 2022

Immortality foi lançado em agosto de 2022 para PC, Xbox Series S/X e dispositivos móveis. É um título dirigido por Sam Barlow que havia sido responsável por Her Story, jogo de 2015 que recebeu muito destaque pela forma de lidar com sua narrativa. O jogador pesquisava palavras e partir delas tinha acesso a um número limitado de cenas em que essa palavra era falada. O enredo iria sendo montado como um quebra-cabeça, uma jornada pessoal onde o jogador buscava conectar os trechos de vídeos que ia assistindo, construído o contexto daquela trama e também as teorias.

Her Story entrega um enredo de maneira envolvente e inesquecível pela sua maneira de manusear as regras apresentadas. O mais interessante é esse primor, mesmo sendo produzido com uma série de limitações. Em resumo, Her Story é o jogador assistindo vários vídeos de uma mesma mulher, numa mesma sala.

O próximo jogo do Sam Barlow foi o Telling Lies, lançado em 2019. Ele ampliou essa fórmula, tendo um enredo com mais personagens aparecendo nos vídeos, uma produção mais requintada na interface do jogo, só que o mais não é sinônimo de melhor.

O que mata o Telling Lies é a falta do fluxo de manter a curiosidade do jogador, se podemos dizer dessa forma. Na maioria dos vídeos, é um personagem conversando com outro, então o jogador tá testemunhando a metade do que tá acontecendo, precisando encaixar a outra parte da conversa. Os vídeos são mais longos que do Her Story, de mais ou menos 9 minutos, sendo que a média do título anterior era de 2 a 3 minutos.

No mecanismo de busca de Telling Lies, você pesquisa uma palavra e os vídeos começam a partir do momento em que ela é pronunciada pelo personagem na tela. Portanto, é comum começar vídeos pela metade, faltando um contexto de início. E o modo de avançar e retornar a reprodução dos vídeos é muito lenta.

Pode-se dizer que não era a intenção de sua proposta ficar voltando ao início de cada vídeo, mas o grande atrativo desse jogo, como do Her Story, é tudo aquilo sendo construído pela curiosidade do jogador, o que ele decide ver, independente do motivo que tenha ou do que o jogo pede para ele. Por isso que digo que seria a falta de fluxo da curiosidade, pois o que o Telling Lies faz ao longo de sua experiência é colocar barreiras, chegar perto do esclarecimento da trama é mais trabalhoso do que intrigante.

Fora isso, considero o enredo do jogo menos cativante, é mais disperso, não existe um gancho inicial tão forte quanto em Her Story, que a primeira palavra que está na barra de pesquisa é “murder”, assassinato. Enquanto no Telling Lies é “love”, amor, que não tem o mesmo impacto para atiçar a curiosidade. O comum é encontrar jogadores que demoraram a se interessar no enredo do jogo ou que elogiam mais a interpretação dos atores do que o roteiro em si.

Feita toda essa retrospectiva. Não é estranho o pé atrás que tinha com o anuncio do Immortality, quando havia apenas uma premissa. Como seria o jogo em si, o que ele faria? Ia ampliar a fórmula do Her Story, o que o Telling Lies tentou fazer e não agradou como se esperava, ou partir para algo diferente, e se isso era algo positivo. Será que o novo título de Sam Barlow conseguiria entregar com qualidade uma trama interativa e criativa onde o jogador se sentiria cativado a solucionar mais um mistério?

Marissa Marcel fez três filmes, mas nenhum deles se quer foi lançado. Ela estava à beira do sucesso em Hollywood, era linda, jovem e talentosa, foi selecionada entre milhares de atrizes para estrelar seu primeiro filme em 1968, de um famoso diretor na época. Ambrosio é uma adaptação de um romance gótico do século XVIII, a trama envolve um padre católico considerado um santo em sua região, a ponto de fazer com que uma devota se infiltre no monastério, disfarçada de monge, que é a personagem interpretada pela Marissa Marcel. Ambrosio trabalha com uma mistura de símbolos religiosos e com bastante apelo sexual. Aqui vemos o uso de paletas de cores vibrantes, uso de efeitos especiais que hoje em dia parecem toscos, cenários que eram pinturas que trabalham com perspectivas de profundidade, e no caso da atuação, algo mais dramático e exagerado.

O segundo filme da cronologia é o Minsky, de 1970. A trama é um investigador em Nova York que vai atrás do assassino de um artista, onde a principal suspeita é a sua musa, interpretada pela Marisa Marcel. O Minsky já é uma outra linguagem, mais noir. E após um acidente no set de filmagens, o trabalho foi cancelado e Marissa Marcel desapareceu por muito tempo.

Two Of Everything ou Um Par para Tudo foi o terceiro e último filme da atriz, isso em 1999. A obra tem um visual mais contemporâneo, tanto na resolução de tela quanto na qualidade da imagem. Marissa interpreta o papel de uma estrela pop chamada Maria, assim como atua como a dublê Heather. A história gira em torno de Maria sendo assassinada e sua dublê parte em busca de vingança. Só que na verdade não foi a verdadeira Maria que morreu.

Após Two Of Everything foi que Marissa Marcel teve seu desaparecimento definitivo e que vai mover a trama de Immortality. O jogador age como uma pessoa que descobriu um depósito com a gravação dos 3 filmes, digitalizando os trechos dos vídeos e, a partir de um programa de computador, fuçar todo esse material para resolver o mistério de Marissa Marcel quanto outros que podem ser notados ao longo do jogo.

O jogador não assiste todos os filmes na íntegra. Na grade de seleção das cenas, é possível colocar uma ordem cronológica das filmagens quanto da história em si das três obras. Há as cenas de leitura de roteiro, quanto os ensaios e as cenas que iria pro corte final dos filmes, além de bastidores, entrevistas, etc.

Nos vídeos, é possível avançar e retornar, lenta ou rapidamente, ou volta para o início ou ir direto para o final de uma vez, isso já soluciona um problema que teve o Telling Lies, além de não ter tantas cenas longas. Ao pausar uma cena, o jogador pode clicar em alguma pessoa ou objeto se um ícone de olho destacar esse elemento na tela. Então, por exemplo, se o rosto da Marissa Marcel é clicado, o jogador vai para outra cena com a atriz, considerando a expressão que ela tá, o ângulo da cabeça. No caso de objetos, não é exatamente o mesmo objeto, uma luminária leva a outra luminária, mesmo que seja de um outro tipo.

Portanto Immortality é isso, existe uma fluidez nessa exploração de cenas, a curiosidade é todo tempo instigada. O único problema que vejo nessa gameplay é sentir uma falta de agência, de sentir a ausência do controle do que virá na próxima cena, o que era diferente ao pesquisar uma palavra no Her Story, por exemplo. Acho que é por me sentir um pouco deslocado nesse sentido, que não considero Immortality o meu jogo favorito do Sam Barlow.

Na história dos videogames é sem dúvida o melhor uso de FMV já aplicado. Full Motion Video são filmagens incorporadas em jogos, muito mais associadas a gravações com atores reais. É um nível de produção alto, existe essa expertise de pegar esses trechos de leitura de roteiro e ensaios para completar o enredo e economizar um pouco nos gastos da produção do jogo.

Grande parte das pistas de Immortality ocorre nos bastidores. Alguns segundos após o diretor cortar a cena, podem revelar bastante coisa na relação entre os atores, de algo estranho que possa estar rolando naquela convivência. Outra coisa interessante é notar alguns símbolos que se repetem nos três filmes que ajudam a criar as teorias sobre as temáticas abordadas, em especial nas camadas escondidas do jogo.

Immortality talvez seja uma das melhores obras para mostrar o quanto videogame é complexo, no sentido de incorporar outras mídias e linguagens. Além da jornada jogável de investigação de entender a trama, o jogo é um museu de referências cinematográficas, uma homenagem a essa mídia, uma coleção de inspirações que construíram todo esse quebra-cabeça em forma de videogame.

A história dessa indústria está ligada ao esforço físico, emocional e intelectual que envolve um set de filmagem e além dele. Immortality, então, fala do lado obscuro para viver para sempre na tela.

São inúmeros casos de atrizes que passaram por episódios de abuso e assédio para que se tornassem estrelas. Além disso, muitas são deixadas de lado com o avanço da idade, estigmatizadas.

Sam Barlow conversou com muitas pessoas na produção de filmes dos anos 80 e 90. Ele ficou interessado nas femmes fatales: mulheres de atitude, que conduzem o enredo com elevada de expressão sexual que é negado à maioria das personagens femininas. Ainda assim, ao mesmo tempo, a figura da femme fatale alimenta um arquétipo: serem criadas para ser objeto de desejo.

Immortality é a história do controle da imagem feminina. Seja ela uma figura de culto, que ainda assim, serve como tentação para os homens puros de coração em Ambrosio.

Seja ela a musa inspiradora: a modelo perfeita de mulher esculpida e controlada pelo artista, como em Minsky.

Ou, seja ela a estrela das massas: que precisa estar perfeita em tela, esconder todas as imperfeições e vender uma fantasia de si mesma, como em Two Of Everything.

Immortality é essa trajetória do feminino enquanto imagem no culto, na arte e na mídia. E nada mais simbólico que um videogame conseguir traduzir tudo isso em uma única experiência.

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