The Forgotten City — Level Secreto #100 (Transcrição)

Autor: Erick Oliveira

Level Secreto
9 min readJan 26, 2024

The Forgotten City foi lançado em julho de 2021 para PC, Playstation 4 e 5, consoles XBOX, uma versão em nuvem para Switch e o Stadia. O jogo inicialmente foi um mod, uma modificação do Skyrim lançado em 2015. A partir desse projeto, o desenvolvedor e escritor Nick Pearce contratou algumas pessoas para formar o estúdio Modern Storyteller, para assim transformar esse mod em um jogo completo. The Forgotten City foi desenvolvido com uma nova roupagem, recursos adicionais, dublagem profissional, novas mecânicas e uma trilha sonora original, o roteiro dobrou de tamanho.

Mas, ok, como começar a falar desse que é o episódio número 100 do Level Secreto?

Nossa jornada começa após o nosso personagem ser resgatado por uma mulher, que nos retirou do rio Tibre, na Itália. Ela pede em seguida que o jogador procure por um amigo, que desapareceu enquanto investigava as ruínas próximas. Então, já controlando o personagem, andamos por esse local abandonado, percebemos a presença de estátuas de ouro, bem conservadas em meio a esse lugar arruinado e numas poses estranhas. De repente, nos deparamos com uma estátua vestindo roupas modernas, tratando-se da pessoa que a moça nos pediu para encontrar. No entanto, ele está enforcado. Num registro, descreveu que ficou entusiasmado em encontrar uma cidade romana antiga, mas algo o abalou, e passando a vida inteira procurando uma saída dali sem sucesso, decidiu tomar a decisão de tirar a própria vida.

Seguindo adiante, atravessamos um portal e paramos em um outro tempo. A mesma cidade romana, só que não mais as ruínas, ela aparenta estar em sua forma gloriosa. Logo encontramos um personagem, o Galerius, indicando que estamos realmente no passado. Ele estranha um pouco a sua presença, mas esse lance de surgir gente do nada nesse lugar parece algo corriqueiro. Portanto o Galerius se presta a esse papel de apresentar um pouco essa cidade, na intenção de leva-lo ao magistrado, o líder dessa comunidade, que faz esse papel de passar informações importantes do lugar para aqueles que acabaram de chegar.

Esse magistrado fala que nessa vila só existe uma regra, a lei de ouro, a única coisa que não pode ser quebrada. Mas o que é essa lei? Ninguém sabe. Pode ser roubar, matar, mentir talvez, só que única certeza é todos deverão sofrer pelo pecado de um só, isso é um recado deixado por quem estava nessa vila anteriormente. Nisso, o magistrado fala que por mais que esses habitantes tenham se juntado de maneira aleatória naquele local, essa lei meio que os condicionou a viver em uma sociedade pacífica e próspera. Fica claro aqui também que essa punição tem a ver as estátuas de ouro, ou seja, pessoas foram amaldiçoadas por esse pecado.

E aí que habita uma grande discussão de The Forgotten City, o que é pecado, afinal? É o que nós conhecemos da cultura cristã? A gente se depara com personagens que de, alguma forma, tentam garantir seus interesses testando qual o limite da regra de ouro. A gente explora uma cidade romana, cujo o império passou por uma interferência do cristianismo, sendo que na sua base tem a influencia da cultura grega. Portanto, a gente ao longo do jogo lida com pontos de vistas diferentes sobre conceitos que a humanidade construiu.

O magistrado desconfia que naquele mesmo dia, alguém vai quebrar a lei de ouro e acabar com essa prosperidade que ele mencionou. O seu personagem acaba sendo atribuído da tarefa de investigar quem poderia fazer isso. As pessoas se sentiriam mais à vontade para conversar com um novato do que o magistrado, ou alguém que claramente represente um poder político ali. Isso porque você vai compreendendo que alguns habitantes estão duvidando que essa tal lei existe, porque até agora não aconteceu nada, será que tudo isso não é um pânico artificial criado pelo magistrado, para que assim ele consiga ter poder nesse lugar? Através do medo.

Em meio a todos esses dilemas, o jogador vai descobrindo cada vez mais esse local, interage com as pessoas e tenta desvendar os mistérios que habitam nessa cidade perdida.

Em algum momento essa regra de ouro é quebrada, sendo o momento em que The Forgotten City apresenta o loop temporal. O jogador pode recomeçar aquele mesmo dia, várias e várias vezes. O personagem consegue lembrar de tudo que aconteceu, além disso, o jogo facilita alguns aspectos práticos, como manter os itens carregados, por exemplo. Os outros personagens têm suas memórias resetadas, mas ao invés de ter de repetir algumas situações, como todo o processo do Galerius te apresentar a cidade do zero, o jogo prefere apostar numa praticidade a partir da autonomia do jogador, ao invés de se prender a um realismo excessivo. The Forgotten City desprende de uma coerência narrativa para evitar uma experiência truncada de jogo, ainda haja situações estranhas. Por exemplo de chegar com um habitante já desenrolando um assunto que foi descoberto no meio de uma quest, e esse personagem emenda o papo, sendo que ele não faz ideia de quem é você, só que o jogo dá um jeito de seguir sua progressão. Esse fator não interfere na genialidade do enredo, do que está sendo proposto aqui enquanto mensagem.

O título tem essa pegada de walking simulator, adventure, gêneros de jogos em que desafios envolvem a exploração, resolução de quebra-cabeças, diálogos com os personagens. Resolver as situações serve para destravar os acontecimentos nesse ciclo de loops temporais. Mas em certo momento, The Forgotten City se revela também um jogo com elementos de ação e plataforma.

The Forgotten City aborda temas para se pensar, já foi mencionado a questão do pecado, que também entra no campo da fé, como cada cultura e crença constrói conceitos abstratos sobre a realidade e transforma em leis. Falei algumas vezes no Level Secreto que por mais que a mensagem não seja uma novidade, que seja possível apontar obras que abordem esse tema com mais profundidade, The Forgotten City é mais um caso de como o videogame traz uma outra perspectiva de um assunto. Como o caráter lúdico influencia para uma assimilação diferente de algo que até pareça senso comum.

A regra, e o que fazemos com ela, é a cerne do jogo, algo que está entranhado em sua narrativa. Afinal, o que é o jogo se não o nosso impulso de construir conceitos abstratos sobre uma realidade. The Forgotten City brinca com a moral nos videogames, sentimos medo de desempenhar determinadas ações por conta da lei de ouro, dessa punição além da nossa compreensão. Enquanto jogadores, nós somos adestrados a cumprir as regras, no caso de experiências narrativas é o que destrava a progressão inclusive. No entanto, a gente tem esse senso de rebeldia, de fazer algo proibido para saciar determinados impulsos.

Vou aproveitar esse episódio que é o último Level Secreto para falar de um assunto bem cabeçudo. A escolha do The Forgotten City foi justamente porque ele se encaixa com esse tema: a forma que, como espécie, nós seres humanos usamos o jogo para trapacear a finitude da vida. Olha só o nível da parada, até aproveito para dizer que se você for uma pessoa sensível para falar de morte, fim do universo, esses assuntos, fica o aviso de gatilhos.

Quando estava fazendo minha dissertação de mestrado, precisava condensar uma ideia, o que nos leva ao interesse de jogar? Aí lendo uns autores e pegando da minha vivência pessoal e de outras pessoas, vieram dois motivos principais: a vontade de estarmos em uma realidade mais simplificada e é de o jogo ser uma atividade que nos garante realizações a partir de nosso poder de influência, de percebermos isso mais claramente. Portanto, o jogo nos permite controlar o caos da vida, a gente tem a ilusão de eliminar a entropia, os padrões se tornam mais palatáveis.

No jogo temos uma sensação de controle, a segurança do espaço artificial e a possibilidade de repetir as ações. Então, no caso por exemplo do The Forgotten City, a gente tem o loop temporal, vai experimentando, falhando, vendo as possibilidades de mudar aquele ciclo vicioso. A gente até fica imerso naquele mundo, os personagens podem parecer humanos, mas no final, nós somos os protagonistas e tudo se move é de acordo com nossas escolhas. Aquela ideia de cidade e de população, tudo atende aos nossos desejos em meio aquele desafio proposto, emergindo o prazer da sensação de controle.

E é nisso que reside um dos grandes méritos de The Forgotten City. Para quem gosta de estudar storytelling nos videogames, esse jogo é uma aula, porque nesse ciclo de loopings temporais, as descobertas levam a revelações de cair o queixo, tem momentos aqui muito surpreendentes. Mesmo aprendendo suas dinâmicas, quando nos acomodamos nessa sensação de controle, o roteiro continuamente confunde as nossas expectativas. Aí entramos naquela dualidade, a gente gosta de se adequar as regras, performar através delas de modo eficiente, porém, adoramos a casualidade, o caos nos forçando a tomar atitudes que exercitam nossa criatividade.

A grande revelação de The Forgotten City tem muito a ver com a criação de regras artificiais que nos auxilia a lidar com a realidade incerta. Com isso, a gente pode encontrar um conforto nesses ciclos intermináveis e até mesmo conseguir subjugar outros indivíduos. De algum modo, as vezes somos condicionados a permanecer vivendo em desconfortos corriqueiros, porque nos é cômodo saber o que esperar de tudo. Estar disposto a ressignificar a realidade é lidar com o incerto e isso nos causa medo, uma paralisia de querer permanecer no estágio anterior.

Mas o que isso tudo tem a ver com trapacear a finitude da vida?

Então, partindo do pensamento mais cético que a gente tem, do puro suco da realidade crua, a vida não tem sentido, isso é criado por nós mesmos, cada indivíduo, sociedade, cultura, tempo, religião. E nesse raciocínio, tem vertentes de pensamento com uma visão mais pessimista e outras que usam desse fator para nos apegarmos ainda mais a beleza da vida. Nós, seres humanos, somos a espécie que tem noção que vamos morrer um dia, e cada um lida disso de uma forma ao longo de sua existência. Uma antropóloga chamada Luce des Aulniers fala que o medo da morte é o fundador da cultura. Esse medo é o motor que nos força a desenvolver coisas que nos transcendem, que percorrem ao longo do tempo, um certo desejo de imortalidade.

Sabe aquela frase clichê de que ser gamer não é viver só uma vida, mas viver várias? Além da piada que ela virou, isso representa a maneira que lidamos com a cultura de modo geral, essas experiências que nos fazem de algum modo nos sentirmos suficientes em relação as facetas variadas do universo.

E falando sobre o universo, existem as teorias do seu fim, os corpos celestes irem se distanciando, a morte das estrelas e a era dos buracos negros, até tudo virar só uma partícula ali e acolá. Existe um vídeo do Youtube que fala dessa teoria, a timelapse do futuro, um festival de gatilho isso daí. O sol morre no minuto ‘3 do vídeo que tem a extensão total de meia hora, no minuto ’12 todas as matérias deixaram de existir, e o pensamento que vem é: qual o propósito de tudo? A vida é uma coisa ínfima, uma exceção e, nesse sentido, qual o valor das coisas que fazemos aqui?

Nisso tudo que reside esse excesso da realidade que não temos a menor compreensão, que leva a loucura para alguns, tanto é que existe o gênero de terror cósmico. Ter consciência do fim nos faz adicionar camadas de sentido as coisas, as regras abstratas para domar o caos, criar valor a realidade que nos rodeia.

Vou citar nesse momento o Death’s Door, aquele jogo que é no estilo The Legend Of Zelda e o jogador controla um corvinho. Há uma frase, que infelizmente não consegui encontra-la por aí, mas fala o seguinte: “a vida é o universo fazendo experimentações”. Aí posso readaptá-la para “a vida é o universo se divertindo”, os momentos de lazer, que a nossa percepção de tempo se altera, que tudo parece muito intenso, que detalhes até insignificantes ganham beleza. “A vida é o universo jogando”, tentando brincar com as regras da física, aí surge, na vastidão, um planeta Terra, carregado de riqueza indescritível. Algo efêmero na história do mundo, mas quem disse que o singelo não vale a pena?

Apesar de ser fascinante desvendar os mistérios do universo pela física e astronomia, de querer exercitar nossa condição de querer respostas para tudo, o simples olhar para natureza nos coloca numa condição de suficiência, da gente sentir que está tudo bem sabe? Olha o quanto que tem de coisa incrível no mundo, o privilégio que a gente tem de estar aqui nesse planeta e nesse tempo, nessa exceção de tudo. O resto pode ser o mesmo o completo nada, mas a gente está no tudo que suficiente para nós construirmos história.

Talvez vocês possam achar que me distanciei de The Forgotten City, abandonei a pauta. Mas eu me diverti, além disso trouxe uma mensagem que sempre quis trazer, dessa visão poética do universo jogar e se divertir quando cria vida. Ela que é muito marcada pelos desvios que fazemos, muito além de cumprir só os objetivos principais. Muitas vezes as side quests valem mais a pena, focar apenas em zerar do jogo pode nos afastar das reais qualidades da experiência.

The Forgotten City me fez pensar muito sobre nossas crenças, o quanto nós, como indivíduo e comunidade, podemos lidar com o mundo buscando a harmonia, fluindo com a finitude do tempo, ou querendo impor poder, controlando tudo para manter um conforto sobre nós mesmos.

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Level Secreto

Transcrições dos episódios do podcast Level Secreto.