Her Story — Level Secreto #46

Roteiro: Erick Oliveira

Level Secreto
4 min readAug 15, 2021

Her Story foi lançado em junho de 2015 para PC e dispositivos móveis. O jogo é dirigido por Sam Barlow, marca o início de seu trabalho de forma independente. Ele era reconhecido, principalmente, pela direção e escrita de Silent Hill: Shattered Memories, uma reimaginação criativa do primeiro título da série da Konami. A experiência de Her Story é você assistir entrevistas que uma mulher deu a polícia. São vídeos feitos em live action, da atriz Viva Seifert, mais conhecida na época como cantora pop britânica e ex-ginasta.

Você joga com uma pessoa que está mexendo num computador antigo. Tem uma tela com uma área de trabalho, no centro, uma janela de um programa chamado “LOGIC Database”. O termo de busca digitado no momento é “assassinato”, murder no inglês. Aí clicando enter, aparecem 5 vídeos da entrevista da moça à polícia. Ela se chama Hannah Smith, e o motivo dela tá ali é que seu marido Simon está desaparecido. A partir dos depoimentos dela, você vai investigando e tentando entender o que aconteceu.

Nessa barra de busca, o jogador vai digitando as palavras e o resultados são novos vídeos, dependendo se o termo procurado foi falado por ela nos trechos. São sete entrevistas em dias diferentes, portanto, você verá a Hannah com roupas diferentes, cabelo preso ou solto, o humor dela se alterando. Não foi possível recuperar esses depoimentos na íntegra, também não é possível ouvir as perguntas que são dirigidas a ela. Por isso que são fornecidos esses trechos de vídeos e o jogador vai tendo que montar o contexto, Her Story justifica essas limitações.

Além de estar investigando a história da Hannah e do Simon, você fica curioso em descobrir com quem está jogando, quem estaria interessado em saber desse caso de 1994, registrado por arquivos de VHS picotados? Tem um filtro na imagem que emula o monitor do computador, dá para ver uma silhueta da pessoa, as luzes no reflexo. Além disso, tem alguns arquivos na área de trabalho que servem de instrução em blocos de nota, e um joguinho simples bônus que dá uma pista inclusive da temática no geral.

“Ah, mas Her Story é jogo mesmo? Não só um monte de filminho interativo?”

Assim, nem precisaria eu dizer que é sim um videogame, mas infelizmente ainda tem tanta gente que descredibiliza tipos diferentes de interações lúdicas, não é? Her Story tem suas regras que estabelecem essa realidade alternativa, e o jogador as manipula gerando um estado específico de ocorrências. Ele é construído digitalmente, com zeros e uns, tem um vídeo em tela, então tem videogame aí.

Falo de um jeito bobo nessa última parte, mas é irônico colocarem experiências como Her Story menores que jogos mais convencionais AAA. Porque desvendar os depoimentos de Hannah Smith é uma das maiores ilusões de liberdade que já tive em um videogame. Imagina um jogo que você decide sua trajetória, inclusive se terminou ou não, pois é, em Her Story tem um esclarecimento da trama, mas ainda fica muita coisa aberta.

O Sam Barlow colocou algumas limitações aqui que ajudam a criar essa ilusão de liberdade. O fato, por exemplo, do sistema permitir que você no máximo encontre os 5 primeiros vídeos em ordem cronológica por palavra pesquisada, sendo que algumas, obviamente, a Hannah citou em mais de 5 trechos. É uma forma de guiar discretamente o jogador, meio que induzindo a curiosidade, que conexões de palavras-chaves podem se encaminhar. Sem essas limitações, com uma palavra apenas você iria descobrir a solução desse enigma.

E aí entramos numa questão bem bacana, Her Story pode ser resumido a uma pesquisa no Google a respeito de um assassinato. Mas ao invés de ver as informações na ordem correta, tá tudo picotado e espalhado, distribuído da forma mais ineficiente possível. E é por causa disso que temos essa noção de ir encaixando esses fragmentos de história, é devido a essa ineficiência que o jogo nos permite criar vínculo com realizações. Porque no futebol, por exemplo, a gente podia segurar a bola com as mãos, sair correndo e entrar no gol. Mas o significado da realização dessa ação não seria a mesma, seria um outro esporte. Talvez não cativaria tantas pessoas que gostam, e talvez não geraria o engajamento de quem tá jogando.

Quem não gosta de se sentir um investigador né? Mesmo sendo uma fofoca, fuçar arquivos escondido, até realmente saber de algo misterioso. Ouvir a Hannah falar de um lugar e você pensando “ah, vamos pesquisar esse lugar para saber mais pistas”, depois ouvir ela falando de uma pessoa aleatória e você pensa “vamos ver o que essa pessoa pode puxar de interessante”. Her Story é processo viciante. Tem essa metalinguagem de alguém mexendo nesse computador e tem a gente, enquanto jogador, interagindo com esse jogo. No caso mais frequente, usando um caderninho para anotar as palavras chaves para pesquisar, e riscando as já utilizadas, foi assim que joguei. Já ouvi outras pessoas indo além disso, até anotando detalhes a mais em cada vídeo que viam.

Ao longo do tempo, e voltando agora escrevendo esse roteiro para relembrá-lo, penso em quão impressionante é o que ele fez. Isso fica mais explícito comparado com o jogo seguinte do Sam Barlow que é o Telling Lies. Algo maior em escopo, com vídeos mais longos, mas que por não ser tão contido, de ter umas burocracias a mais, e o gancho inicial não ser tão instigante quanto a palavra “assassinato”, é uma experiência bem menos cativante e mais maçante. O fato de demandar mais tempo, exigiu, pelo menos de mim e quem conheci que o jogou também, ter que parar e continuar outra hora e acabar perdendo o fluxo, o fio da meada.

Her Story dá para terminar em uma sentada só, algo que recomendo para quem for jogar. Foram algumas horas, anotações num caderno, digitando palavras aleatórias, vendo uma mulher falando para uma câmera, e essas coisas aparentemente simples, construíram uma das melhores experiências que já tive com videogames. Portanto, não caiam nessas ideias bobas de que Her Story é menos videogame comparado a outros jogos. Apenas aproveitem, desfrutem, é um produto barato, roda bem, é direto ao ponto, é uma obra muito criativa, muito bem planejada e claramente inesquecível.

--

--

Level Secreto

Transcrições dos episódios do podcast Level Secreto.