Soma — Level Secreto #54

Roteiro: Erick Oliveira

Level Secreto
6 min readOct 26, 2021

Soma foi lançado em setembro de 2015 para PC e Playstation 4, dois anos depois saiu no Xbox One. O estúdio Frictional Games havia, de certa forma, revolucionado jogos de terror. Antes de 2010, por aí, eles estavam meio desacreditados, as principais franquias do gênero tendiam a entregar experiências com mais ação na gameplay, ao invés da fragilidade do personagem diante das ameaças.

Foi com o Amnesia The Dark Descent que a Frictional entregou um tipo de jogo de mais cautela, do personagem só poder se esconder dos inimigos, não possuindo um combate. Além dessa parte jogável, Amnesia impulsionou gameplays em vídeo no Youtube, com as reações dos jogadores capturadas pela câmera, colocando um teor de entretenimento que passou a virar tendência de conteúdo para quem acompanhava na época.

Outros jogos nos anos seguintes, por mais simples que fossem, alcançaram relevância por meio da internet e da figura dos youtubers, que ainda era algo em crescimento no início da década. Apesar da Frictional ter lançado jogos anteriores da série Penumbra, que tinha uma levada parecida, foi Amnesia que despontou, um jogo que teve influência no gênero de terror quanto na produção de conteúdo de gameplays.

Soma partiu para uma proposta diferente em relação a temática, ambientação e estrutura narrativa, ele acabou entregando um terror além do jogo em si. Uma visão em comum a respeito de Soma, é que se trata de um horror existencial, não no quesito Lovecraft da coisa, de lidar com seres além da compreensão e tal. Soma não é místico como o Amnesia, trata-se de uma ficção científica. É sobre o ser humano, tanto no indivíduo, uma parte introspectiva, como nossa visão como espécie, coletiva. Diria que Soma é a obra que melhor consegue questionar o que é estar vivo e o que seria estar morto, usufruindo da fator lúdico do videogame.

O personagem controlado pelo jogador é o Simon Jarrett. Ele sobreviveu a um acidente de carro, mas teve danos cerebrais como sequelas. Devido a isso, concorda em passar por um procedimento experimental ainda em teste, que consiste em uma varredura em seu cérebro, e nesse momento, acaba desmaiando.

Simon recobra a consciência, mas em um local estranho e aparentemente abandonado. Durante a exploração, descobre estar em uma instalação no fundo do oceano Atlântico e estabelece contato com uma mulher chamada Catherine Chun. Simon havia acordado em 2104, um ano depois de um cometa ter atingido a terra e ter devastado tudo. A instalação subaquática PATHOS-II é o ponto final da humanidade.

Mas o que isso significa o final da humanidade? Digo, tão de repente assim? Soma oferece uma pergunta melhor: de que humano estamos falando afinal?

Simon logo se depara com robôs dizendo que são pessoas, dizendo não né? Se auto afirmando, de maneira até desesperada. O jogador se depara com criaturas mutantes inimigas, que aparentam ter consciência, estranhamente humana. Uma área dessa instalação acaba sendo inundada, mas o Simon ao invés de morrer, consegue respirar de baixo d’água. Soma já mostra no início que o personagem controlado não é um humano, não da forma convencional que estamos acostumados a nos classificar como tal.

O último ponto da humanidade é um ambiente hostil e opressor, solitário, remoto, que constantemente nos coloca dúvida até das maiores certezas que temos, desde que nos conhecemos como seres conscientes.

A única forma de qualquer coisa que ser humano signifique continuar existindo, é a arca, uma caixa preta digital projetada por Catherine que contêm um mundo simulado. Nesse ambiente virtual serão depositadas as varreduras da consciência da tripulação da Pathos-II.

Assim como a consciência de Simon havia sido depositada em um novo corpo, havia um campo de dados da mente digitalizada de outras pessoas, que possuiriam uma chance de continuarem vivendo, se podemos chamar isso de vida, podemos?

Descobrimos logo que a voz que nos acompanhará o jogo inteiro, a Catherine, só está presente nos sistemas da Pathos-II, portanto ela só pode nos guiar mesmo. Simon com um corpo físico que não é o dele, tem de se locomover pelas áreas da instalação para cumprir esse objetivo de recuperar a arca, depositar as consciências e lança-la no espaço, fora de Terra, já condenada.

Por conta de ser um jogo em primeira pessoa, Soma consegue trabalhar bem com a mensagem que quer passar. Ao longo das estações, o jogador conhece o destino dos tripulantes, do que aconteceu com a terra e o projeto de Catherine, do porquê ainda não havia dado certo antes.

Existe a parte de se esconder e escapar dos inimigos, empecilhos para se chegar em determinados destinos. É a parte mais fraca do jogo, mas, felizmente, são bem pontuais, duram pouco tempo, e há uma tolerância no estado de falha.

O clima predominante é a construção do suspense, a claustrofobia de estar no fundo do mar, de cada área apresentar uma situação diferente. Só que algo que se comunica com a visão geral da mensagem é a distância tão curta do que é vivo para o que é nada, a inexistência do vazio, reforçado pela atmosfera, a escolha do lugar que ambienta essa história, não podia ser melhor para isso.

Soma mistura essas sensações presentes na gameplay com todo o desconforto das situações paralelas. O que aconteceu na Pathos-II? Qual o desfecho da tripulação? Acrescenta-se a esses questionamentos o sentimento ao se agarrar numa última esperança da humanidade. É um gosto tão amargo, mas que tem que engolir né?

Soma é uma experiência de jogo focada, mas contêm diversas camadas, tanto na parte de apresentar os acontecimentos, a forma que um videogame explora e potencializa isso, quanto as inúmeras reflexões que ele possui.

Soma tem bastantes elementos simples enquanto jogo, alguns classificados como problemáticos. No entanto, há alguns conceitos até básicos de gameplay em que a Frictional conseguiu incorporar algo impactante da mensagem proposta. Tem um momento que é, em teoria, só mexer num computador, selecionar umas opções, mas consiste numa sequência que já pode gerar reflexões profundas, antes disso, uma aflição terrível do que você está fazendo naquele momento.

Portanto, é bom enfatizar que ele talvez não seja a melhor experiência de terror, de tomar susto, ser dinâmico para lidar com inimigos, de eles possuírem uma inteligência artificial desafiadora. Soma é essa desolação, de explorar esses ambientes e essas histórias que retratam o fim da humanidade, e como nessa extrema situação desesperadora, conseguimos entender melhor ou, pelo menos pensar de forma um pouquinho mais elaborada, o que significa ser humano, o que é estar vivo.

Soma causou o impacto menor do que o Amnesia, por questões até lógicas, essa fórmula já estava diluída em outros títulos. Além disso, o jogo tem menos esse espaço de tirar graça com susto, devido a esse clima mais opressor, de ser mais bad vibe.

Soma não inova e é ok enquanto estrutura jogável, mas considero um dos jogos mais importantes de todos os tempos, tanto é que ele entrou entre os meus favoritos da vida. Apesar de toda tragédia, da desesperança, do vazio que ele carrega, da forma que ele oprime um certo otimismo da nossa vida, isso tudo acaba gerando um efeito reverso, pelo menos para mim. No sentido, de dar valor a realidade, do que a gente vive aqui na terra.

Tá certo que existe o questionamento de o que a gente vive é real ou não, do que é estar consciente. Mas nas profundezas desse abismo, vem o entendimento que o ato de dar sentido nas coisas é importante, de se entregar as sensações que emergem do nosso corpo, e é isso que nos fazem bem, sejam aquelas mais simples ou as mais intensas.

No meio da turbulência do caos ou do total vazio da inércia, experimentar a vida é mais que apenas sobreviver. Se sentir vivo, dar valor as coisas que damos importância, sejam as que nos fazem bem ou não, mas ao atribuir sentido as coisas, é o que acaba preenchendo nossa existência, quem nós somos, do que gostamos do que não gostamos, nos aproximamos ou afastamos, isso é o motor que nos move, e o que chamamos de vida.

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Level Secreto

Transcrições dos episódios do podcast Level Secreto.