Tunic — Level Secreto #92 (Transcrição)

Autor: Erick Oliveira

Level Secreto
6 min readJan 8, 2024

Tunic foi lançado em março de 2022 para PC, consoles XBOX, e em setembro para Switch, Playstation 4 e 5. O jogador controla uma raposinha guerreira que explora um mundo cheio de ameaças e segredos, e bote segredos nisso.

Tunic foi apresentado ao público pela primeira vez em 2017, e desde então esteve no radar de quem acompanhava o cenário indie, em especial, os fãs da série The Legend Of Zelda, por contar com elementos semelhantes de estética e gameplay. Pessoalmente, havia uma expectativa por Tunic, mas não ia além de “vai ser um Zelda indie bacana”, nada que me fizesse ficar ansioso ou chateado com os adiamentos que ocorreram.

O desenvolvimento de Tunic durou 7 anos, o que soa estranho a princípio, porque desde que foi revelado, ele sempre teve a mesma cara, o que teria de tão complicado para fazer esse jogo demorar tanto? Será que ocorreu um problema muito sério no desenvolvimento, algo do tipo? Aí quando a gente joga e entende a proposta de Tunic, fica evidente o quão trabalhoso foi polir tal experiência.

Então deixo uma pergunta no ar: existe algo que foi feito exatamente para cada um nós? Que se encaixe perfeitamente no nosso gosto? Vamos fazer um exercício…

Quando penso num artista musical, outro dia me veio a mente uma banda que misturava umas levadas de Death Metal, com o samba do grupo The Ipanemas e um groove e sintetizadores da banda francesa L’Imperatrice. Por mais absurdo que pareça, conseguia imaginar esse som misturado numa coisa que fizesse sentido, sendo um sonho bem improvável, diga-se de passagem.

E no caso de um videogame? Tenho nos meus desejos a junção da ideia de uma exploração metroidvania, com RPG por turno tipo Valkyrie Profile 2 ou o remake do Final Fantasy VII, com os inimigos tendo partes quebráveis. Um cenário compactado e emergente, com os dias passando, os NPCs tendo rotinas próprias, numa trama Pathologic ou The Forgotten City. É mais ou menos nessa linha que consigo imaginar.

Quando joguei o Tunic, tive a sensação que era feito para minha pessoa. O mais curioso é que ele não usou os ingredientes que imagino resultar no meu jogo ideal. Porque não sou a pessoa mais cativada por The Legend Of Zelda, tenho uma certa indisposição com jogos indies de ação com esse tipo de câmera, com exceção de um CrossCode ou Unisighted da vida. Portanto, o Tunic tinha tudo para parecer apenas um jogo bacana e que logo se perderia com o tempo, com poucas coisas para levar para a vida.

Tunic começa com a raposa acordando na praia e começa a viajar pelo mundo do jogo. Depois de coletar uma arma e um escudo e tocar dois sinos mágicos, a raposa entra em um templo, levando-a em seguida para um plano espiritual. Lá existe o espírito de uma raposa maior que está presa em um cristal. A partir dessa informação, o jogador parte em busca de itens que devem ser reunidos para libertar esse ser. A raposa deve desbloquear os caminhos em diferentes regiões do mundo, aventurando-se em masmorras tal qual um Zelda.

O principal responsável por Tunic foi o Andrew Shouldice, ele fez um jogo voltado exatamente não só para mim, como também muitos outros jogadores com uma vivência particular de jogar videogames, sobretudo durante a infância. O desenvolvedor conseguiu evocar a experiência de jogar tendo que ter o suporte do manual de instruções para lidar com aquele mundo enigmático.

O jogo utiliza um idioma próprio que está em toda parte, seja no mundo quanto no manual, as suas páginas são coletadas aos poucos e fora de ordem. Algumas palavras estão no idioma que selecionamos e são poucos os fragmentos de informação que reconhecemos, junto com as imagens. Tunic é como lembrar de uma época em que tudo que fazíamos nos jogos eram suposições e experimentações, por não sabermos ler em inglês ou japonês.

Tunic contém diversos segredos que, na verdade, o jogador pode usufruí-los logo no começo, pois se tratam de mecânicas escondidas e até mesmo atalhos que quebram a noção de uma progressão “correta”. Devido à como conseguimos as páginas do manual e a maneira que interpretamos essas informações, o jogo se apresenta de forma diferente para cada um. Um exemplo claro é que demorei muito para descobrir como evolui o personagem, isso após já ter derrotado o primeiro chefe. Uma batalha que, por conta disso, foi bastante sofrida, por justamente ter passado batidas algumas coisas básicas da gameplay do jogo.

Aproveitando o assunto, o combate é um ponto baixo, o jogador é prejudicado por animações lentas e falta de feedbacks mais precisos de decisões erradas. Além disso, o jogador é forçado a se acostumar a uma cadência nas ações, pelo seu sistema de estamina. As seções de combate se tornam obstáculos no meio do real brilho do Tunic que é a exploração.

Como todo jogo é maior que a soma de suas partes, a exploração e o desvelamento dos segredos são as coisas que ditam a magia da experiência de Tunic. Existe um prazer ao se deparar com algo que estava ali o tempo todo, mas que só por uma outra perspectiva que isso foi reparado.

Há alguns fundamentos de gameplay que são compreendidos e, olhando no manual, é comum perceber que o jogo já havia explicado isso logo no início. No meu olhar, trata-se de um fator positivo, no entanto, algumas pessoas podem se sentir “enganadas” por esse jeito de apresentar seus elementos, atribuindo como algo negativo.

Na elaboração de Tunic como produto, Andrew Shouldice demonstra como guiou a sua meta de jogo voltada a experiência do jogador. A interação lúdica considera a complexidade humana e não somente um conjunto de partes de um objeto de forma encapsulada. O que eu quero dizer com isso? A qualidade do produto não depende somente do que ele se dispõe, mas, como nossas intenções, expectativas, sensibilidades ajudam a deixar essa experiência significativa.

Nesse caso, os acertos de Tunic emergem da preocupação na jornada do jogador, quais são as sensibilidades que o Andrew quis resgatar e como elas seriam “induzidas” em cada momento do jogo. Isso tem uma margem de erro, por causa de um senso comum, digamos, de que a interação com videogame não pode ter espaço para sentimentos negativos, porque ferra com o engajamento e o jogador desiste, vai procurar uma experiência que lhe recompense melhor durante a jogatina.

De modo geral, os produtos atendem nossas necessidades de diversas formas, partindo de atender requisitos básicos de sobrevivência, funcionalidade, chegando ao prazer de possuí-lo ou utilizá-lo. Nessa hierarquia de necessidades que os produtos são projetados, o topo dessa pirâmide é uma experiência “perfeita” que parece ter sido feito para nós, personalizada para o indivíduo em meio seus desejos e contradições.

No caso dos videogames, isso explica a proposta de diversos jogos em oferecer uma variedade de alternativas de personalização, seja de customizar um avatar, quanto outros elementos que ajude o jogador a se tornar um sujeito único naquele cenário. Isso nada mais é que suprir uma necessidade de expressar nossas individualidades dentro do espaço virtual.

Na experiência de Tunic, um título single player, Andrew Shouldice desenvolveu um produto em que um jeito singular de performar dentro do jogo é incentivado, e a partir disso que emerge a satisfação dos jogadores que foram cativados por ele. E esse jeito de performar é justamente de brincar com algo a partir da curiosidade, sem entender o proposito daquilo por não entender as informações, porém, mesmo assim, ir desenvolvendo uma jornada significativa que ficará para sempre na memória.

Tunic é um jogo inacreditável, pois, parece mentira como ele crescia em cada descoberta, são detalhes que carregam sentimento, às vezes, até esquecidos e que talvez achasse que nunca sentiria novamente. Essa forma de explorar um mundo, seguindo uma jornada sem entender nada e ir desenvolvendo uma narrativa própria para seu personagem, encaixa como uma luva para quem se alfabetizou ludicamente dessa forma.

Dito isso, não existe um modo certo ou errado de interagir com um videogame. Tunic é uma aventura movida pelo sabor de cada descoberta, de tudo no fim encontrando um espaço para se encaixar, e é isso que nos move, o que gera sentido e nos permite criar vínculos com o mundo.

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Transcrições dos episódios do podcast Level Secreto.