Unsighted — Level Secreto #80 (Transcrição)

Autor: Erick Oliveira

Level Secreto
6 min readAug 25, 2023

Unsighted foi lançado em setembro de 2021 para PC, Switch, Xbox One, Series X/S e Playstation 4. O jogo foi feito pelas desenvolvedoras brasileiras Tiani Pixel e Fernanda Dias, que compõem Studio Pixel Punk. Unisghted, a primeira vista, parece ser do estilo The Legend Of Zelda, uma experiência de ação e aventura com a visão de cima. Porém, o jogo possui uma exploração mais na pegada de um metroidvania, na questão da progressão mais aberta pelas interligações das áreas que formam a cidade de Arcadia.

O jogador controla a personagem Alma, uma autômata que desperta em um laboratório. Ela está sem memórias e ao longo do jogo vai relembrando eventos passados, em especial, de sua relação com Raquel, de quando se conheceram até o momento que se apaixonaram.

Nessa cidade, um meteoro caiu do espaço, e dele começou a espalhar uma energia chamada de “anima” que acabou dando senciência aos autômatos. Isso despertou medo nos seres humanos, chegando eventualmente a causarem uma guerra. Nos primeiros minutos do jogo, é possível perceber a cidade em ruínas.

A consequência mais trágica desse conflito é que o meteoro foi selado pelos humanos. Com a energia anima escassa, os autômatos que haviam construído uma civilização própria, estavam com seus dias contados. Com a ausência de anima, os autômatos passaram a se tornar os “unsighted”, numa tradução livre significa os “sem visão”. Eles são os androides e robôs que o jogador encontra como inimigos.

O grande ponto do jogo que alinha a narrativa com a gameplay é justamente essa escassez de anima, pois, todos os personagens estão suscetíveis a se tornarem unsighted. De autômatos menos ou mais relevantes, dos lojistas, da fadinha Iris que acompanha a Alma, até mesmo a própria protagonista do jogo, todos possuem um tempo limite de vida com suas consciências.

Durante a exploração, Alma pode encontrar “pó de meteoro”, um item que aumenta o tempo de vida dos autômatos em 24 horas. Mas esse recurso é raro, levando a situações do jogador escolher quem quer salvar, ou até mesmo, prolongar tempo de vida da sua personagem.

Essa sensação de estar correndo contra o tempo é um fator diferencial de Unsighted, de ser ligeiro na hora de desbloquear cada caminho, de cumprir cada etapa da progressão. A morte, literalmente, é uma perda de tempo, cada passar de dias e noites aumenta o sendo de urgência em sua aventura. Para os jogadores mais ansiosos, existe um modo explorador, que reduz a passagem das horas, tornando esse fator de Unsighted bem secundário.

O grande objetivo do jogo é encontrar cinco cristais de meteoro em cinco dungeons em cantos diferentes da cidade, protegidos por unsighted que atuam como chefes. Nesses lugares, como acontece em um Zelda, a Alma encontra itens que ajudam a navegar melhor pelos ambientes, servindo para desbloquear os caminhos.

O lance diferencial desse jogo é a possibilidade de progredir por essa cidade de várias formas diferentes. A não-linearidade é bem orgânica, e o jogador pode explorar diversas brechas dos cenários, descobrir técnicas escondidas como das próprias mecânicas, para explorar atalhos em Arcadia.

As desenvolvedoras tiveram um real intuito de que Unisghted seja um título rejogável, estimulando o fator speedrun, de terminar o jogo cada vez mais rápido. Unisghted incentiva a experimentação, os recursos do jogo não são engessados, ou seja, funcionam em contextos diferentes.

Há um item que é o peão, tipo uma beyblade que a Alma fica em cima e se movimenta rápido pelo cenário, podendo destruir blocos de pedras e permitem a personagem passar por trilhos. Esse tipo de peão já foi visto no Zelda Twilight Princess, por exemplo, e ele era igualmente divertido de utilizar, só que numa perspectiva em 3D. Só que o brilhantismo de Unishgted é que esse peão ressignifica toda sua maneira de explorar o mundo, e não apenas uma dungeon ou eventualmente uma ou outra situação específica, como ocorre no Twilight Princess.

O jogador pode conhecer características escondidas de recursos que aparentemente só serviria para uma função pontual, além de como elementos do cenário podem ser interativos de formas diversas, criando uma nova camada de entendimento de cada mecânica ou recurso.

Isso já deixa evidente o nível de cuidado em polir cada detalhe da gameplay em relação a sua progressão não-linear. Unsighted recompensa o investimento do jogador em seus sistemas, que vale também para seu combate. Alma ataca com sua espada e pode disparar projéteis. Nos seus movimentos, ela gasta uma barra de estamina, dando esse caráter mais cadenciado no combate.

Nisso se destaca o parry, o comando de repelir golpes no instante certo. Sem nenhum exagero, Unisghted possui um dos melhores usos de parry já feitos nos videogames. Ele realmente é essencial para o combate, funciona de maneira clara diante da animação dos inimigos e os efeitos sonoros. Sua qualidade se dá, sobretudo, por oferecer uma sensação de poder ao jogador que se dedicou a aprender esse fundamento.

Cansar o inimigo com parry garante uma janela de tempo o qual ele está vulnerável, consistindo em um grande dano. Esse aspecto dá um fator de quebra-cabeça nos combates, especialmente nos chefes. Com isso, o combate se torna outro fator que se beneficia da rejogabilidade de Unisighted. Posso dar o seguinte exemplo, tem um inimigo poderoso que aparece logo no tutorial, com o parry bem usado, o jogador consegue derrota-lo e adquire uma espada bem poderosa.

Outros dois elementos de Unisghted são importantes na gameplay, que são dinâmicos de acordo com o perfil do jogador, eles são os sistemas de chips e crafting.

A Alma pode encaixar esses chips que aumentam suas capacidades, como saúde, resistência, ataque e algumas melhorias mais específicas. Os chips são encontrados durante a exploração e é um elemento que auxilia ainda mais essa sensação de não-linearidade de Unisighted, pois é justamente uma personalização da evolução da Alma, e não algo engessado e de certo modo até previsível.

O sistema de crafting é um criador de itens a partir da composição de recursos em um diagrama, cada item possui uma receita que o jogador vai encontrando durante o jogo. O mais divertido desse aspecto de Unsighted, é a possibilidade de criar itens essenciais da progressão logo no comecinho, caso o jogador já saiba o esquema de criação, isso vale para o peão que falei anteriormente. Isso é mais uma evidência de que a proposta das desenvolvedoras é que o jogador “quebre” o jogo.

Unsighted é esse título que dá ao jogador muitas possibilidades diante dessa corrida contra o tempo, de salvar os autômatos companheiros de Alma. Quanto maior o esforço em prolongar o tempo de vida dos personagens, mais recompensas emergem desse sistema. Elas podem ser tanto funcionais, dos NPCs que vendem e fornecem recursos, quanto de benefícios “sentimentais”, caso o jogador crie um vínculo com esses personagens e passe a se importar com eles.

Unsighted é um jogo que, nesse aspecto, me lembra o Pathologic, que já falei nesse podcast. Tudo, nos mínimos detalhes, parece ser essencial na jornada, na parte mais formal e também na narrativa que o jogador está construído com suas ações.

Diante de todas essas qualidades, tem mais uma coisa que queria falar. Unsighted me fez refletir como fã de metroidvania, que para quem não sabe, é meu tipo de jogo favorito. Sobre esse assunto de gêneros de videogames, tenho algumas amizades que demonstram estar de saco cheio de discussões sobre esse tema, de que não importa ficar rotulando e, que no geral, é uma perda de tempo.

O Unsighted gerou um pouco dessas conversas, porque ele realmente transita entre muitos gêneros. No caso do papel de desenvolvedores, acho que é muito saudável não haver uma atenção a isso, a que gênero se encaixa o projeto durante sua produção. Esse descompromisso ajuda a criatividade aflorar e seguir seu rumo, e é algo que o Unisghted se beneficiou bastante.

Quando ouço as falas da Tiani e da Fernanda sem especificar bem que caixinha Unisghted se encaixa, isso só enfatiza o quão esse título é de fato algo criativo, diferenciando de títulos que são meras aglutinações de referências a clássicos dos videogames.

Unsighted é um jogo que quebra entendimentos convencionais de metroidvania, com isso é sem dúvida o que mais contribuiu para esse gênero. Passei a ver isso ainda mais claramente hoje em dia, após passar por 2022 que foi péssimo para esse tipo de jogo. Onde realmente ficou constatado que o gênero está saturado e com muitas ideias repetidas. Para eu dizer isso, é que realmente o negócio tá feio, porque costumava aceitar facilmente qualquer experiência metroidvania.

Unsighted apresenta uma das explorações mais brilhantes que já vi, no sentido mais amplo que essa palavra carrega, a exploração das potencialidades do que é feito pelo jogar, e de como o ambiente se comporta para nós e como podemos enxerga-lo de diferentes maneiras. Junta isso o vinculo que temos com esse enredo e personagens. Unisghted traz uma sensibilidade poderosa inserida de maneira muito especial nos temas que as desenvolvedoras trabalham. Pelo brilhantismo de todos os seus aspectos, Unisghted merece ser reconhecido como uma grande obra inspiradora para qualquer desenvolvedor brasileiro.

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Transcrições dos episódios do podcast Level Secreto.