Pra Santo Comer: o espaço de uma trincheira, o tempo de um respiro

Elenice Zerneri
3 min readMay 1, 2023

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A dramaturgia de Rafael Cristiano, por Elenice Zerneri

O cenário é de guerra. O tempo, o início do segundo ano de pandemia. Pandemia, do grego, “todo o povo”.

Meu encontro com Pra Santo Comer se deu numa trincheira, no tempo de um respiro, ali pelas sete horas da noite. A primeira lida, com muito ar dentro, como sugerem as diversas rubricas (Silêncio). O sentimento, como quando a gente começa um romance bom e quer chegar logo no fim, mas não quer o fim. A magia, que o autor, Rafael Cristiano, tenha conseguido esse efeito com nada mais do que quatro páginas de texto.

Até a metade da primeira, o poder de síntese e a artesania dos diálogos contribuem para que se tenha todas as informações necessárias para o entendimento da situação, no sentido mais amplo do termo. A fuga da galinha é anacruse: acontecimento anterior à cena, que faz dilatar o tempo de existência de e Tinha, para nosso deleite. As personagens vão sendo apresentadas sem pressa, com delicadeza e maestria. E eu as vejo brincando de sair do papel.

A dramaturgia de Rafael Cristiano tem a qualidade, a meu ver soberana, de fazer caber em uma situação cotidiana condensada, questões fundamentais e jamais esgotadas da nossa existência. É um terreiro, é a fuga de uma galinha, são duas mulheres, uma de Yansã, outra de Omolu — e isso basta. Mas, sabendo da guerra que há lá fora, enquanto busca a galinha, inevitavelmente me vejo buscando respostas (também fugidias) para a complexa relação ser humano/natureza, transformada, entre tantas coisas, pela vida nas cidades.

Sacrifício, heroísmo, tragédia — tudo isso me sobrevoa.

Encontro as contradições muito humanas de , a escuta e a sabedoria de Tinha. Que pressa é essa que tem para sair em busca da galinha, se sobra tempo para admirar o céu? (e não deveríamos, todos?) Omolu, orixá da doença e da cura, espera o sacrifício, para então expurgar do mundo a peste? Em que tempo estamos, em relação às duas? O final em suspensão, que sempre me parece um chamado à ação, aqui soa como a continuação da espera, uma ferida ainda aberta.

Em uma das conversas que tive com o autor, outros elementos são adicionados. Um impulso inicial propunha um “Esperando Godot” à brasileira. Na peça de Beckett também se fala do salvador, que está ausente o tempo todo e só existe enquanto nome. Os elementos abrasileiradores da nova história passam por substituir as duas personagens masculinas por duas femininas e situá-las em um terreiro de Candomblé — espaço onde os negros escravizados viram uma possibilidade de refazer laços familiares apagados, tendo nas mães e pais de santo suas figuras centrais. A escolha do Candomblé como espaço de manifestação da fé é precisa e preciosa.

E de repente andávamos em fila: a guerra atrás de mim, eu atrás de Tinha, Tinha na espera de , atrás da galinha, a galinha atrás de cumprir sua jornada, se recusando a voltar para o mundo ordinário. A guerra continuava lá fora cada vez mais ordinária, enquanto aqui na trincheira todas as jornadas se sobrepunham.

“Eu tive dó. Confesso que eu tive dó”. Quando revela ter sentido dó, abre-se um espaço de interpretação que sugere uma espécie de falha trágica como causa pequena de uma consequência desastrosa. Nas tragédias, agir com excesso daquilo que se chama humano, em contraponto ao divino, leva às últimas consequências. Aqui, nos coloca de volta no lugar de humanos e nos lembra da nossa fragilidade. Tinha, cúmplice e mentora ao mesmo tempo, ensina através da escuta e do silêncio.

Eis que a galinha volta pelas mãos de alguém do bairro que, aliás, não vai com a cara delas. Eu ato as duas pontas que desfiei: imagino os soldados da trincheira inimiga avançando para a terra de ninguém, trazendo presentes, jogando bola, “todo o povo” junto de novo, como se não houvesse guerra, tal como a trégua do Natal de 1914, entre alemães e britânicos.

Estamos no Brasil. Terminamos a celebração cansadas. Invento um tempo que não existe para admirar o céu. Concluo, olhando para as minhas colegas de trincheira: o céu tá bonito hoje, né, Tinha? Né, ?

Atotô.

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Elenice Zerneri

Atriz e escritora. Nasceu no interior e sobrevive à capital, rodeada de gatos, livros e sentimentos mistos de esperança e desespero.