Ensaios sobre o trabalho, estranhamento e fetiche das mercadorias

LindenMarxist
6 min readMar 13, 2019

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Os textos abaixo foram escritos por mim um tempo atrás. Comecei a me interessar pelo pensamento marxista através das categorias fetiche e estranhamento, lendo principalmente autores americanos e franceses ligados a internacional situacionista, os principais idealizadores dos movimentos de Maio de 1968 na França.

Consumo e Alienação

Para sobrevivermos na sociedade da mercadoria, somos forçados a explorar o outro, ou pelo menos ser coniventes com essa exploração.O desejo inculcado em nós de ter cada vez mais coisas nos faz desejar que as coisas cada vez mais custem menos. Desejamos produtos baratos, serviços baratos, comida barata etc. a despeito do quanto de trabalho e em quais condições de trabalho aquilo que desejamos consumir foi produzido.

A busca pela satisfação desse desejo torna o anseio pela intensificação da exploração do outro algo intrínseco à realização do nosso próprio bem estar. É essa condição de vida que nos coloca diariamente em guerra uns contra os outros. Em um mundo aonde tudo está a venda, quem não tem o que vender vende a si mesmo. E o preço dessa venda, o valor que se dá para a pessoa não é determinado pelas suas necessidades diretas, mas pela sua capacidade contribuir para a acumulação geral de riquezas. Efetivamente desejamos que as pessoas tenham e sejam menos que nós para podermos ter e ser mais do que elas.

Se temos o pão por um preço baixo, de que nos importa a exploração a que são submetidos o atendente da padaria, o padeiro, o cultivador de trigo e assim por diante? Se algum desses, certamente com muita luta, conseguir o direito à um salário maior e isso acabar aumentando o preço do pão, é óbvio que nos colocaremos contra o trabalhador. O culpado não pode ser o nosso modo de vida atual ou o dono da padaria que emprega o padeiro com altas margens de lucro.

Assim, através do consumo, somos todos exploradores e explorados. Somos todos exploradores de nossos iguais e explorados quando estamos no papel do padeiro, quando somos nós os empregados. Todos fabricamos, todos os dias, as correntes com as quais seremos encarcerados.

E longe disso ser um julgamento à moralidade do consumo, trata-se de uma constatação da bizarrice desse mundo de ponta cabeças que nos vendem como “o melhor mundo possível”. Não existe “consumo moral” em um mundo aonde o simples ato de consumir está alheio a sua contraparte na produção.

O Trabalho e a alienação da Vida

Quanto tempo do seu dia você dedica ao seu trabalho? E quanto tempo você dedica a sua vida? Quantas horas você passa fazendo o que quer fazer e quantas passa fazendo o que tem que fazer? Quanto tempo você passa sendo um personagem, uma empresa, um profissional e durante quanto tempo você é uma pessoa por si, com desejos, paixões, ódios e amores?
Na rotina, vida e trabalho se confundem, e as necessidades da vida nos levam a ser uma personagem, um profissional, em tempo integral. Essa persona, alheia a nós como indivíduos em si, se embrenha como um parasita nos roubando a nossa própria existência, a nossa própria criatividade, até que o simples ser seja um ato profissional. Então estamos prontos para ver aqueles que não podem (por razões socialmente determinadas) participar desse teatro armado para nós pelo capital como párias, divergentes, vagabundos… E assim, armamos para eles um papel dentro do nosso teatro, os forçando a participar dele, os jogando nas beiras do palco da vida real enquanto nos imaginamos num pódio mais elevado, os olhando com desprezo afinal, é esse o nosso roteiro. Podemos ser caridosos e lhes estender as mãos ou simplesmente ignorar a sua existência. Podemos lutar para que eles tenham a oportunidade de subir no pódio conosco ou buscar simplesmente buscar aumentar nossos próprios pódios, mas não podemos deixar de participar do espetáculo. Nisso, somos iguais: Todos dançando conforme a música, inertes a nossa realidade.
Não se trata de uma escolha para nós, o ato ritualístico do trabalho é condição de sobrevivência. Dançar no nosso pódio a música que está tocando é o que nos garante estarmos vivos. Física e socialmente. O medo de cair nos impele a dançar mais e mais e nessa dança, já não somos nós! Somos o profissional competente, o comprador consciente, o cidadão de bem…
Gerações passadas tiveram conquistas, limitaram o trabalho a um canto, um campo separado da vida, mas foi essa divisão que os derrotou. É essa divisão que nos derrotou. O trabalho, como manifestação da própria existência separada e alheia a ela, diluiu em décadas as conquistas de nossos antepassados e as desfez, permitindo ao espetáculo que as absorvesse tranquilamente. A jornada de oito horas de trabalho, pauta de grandes greves gerais do passado, hoje já se expande para dentro da vida do trabalhador de diversas formas, e essa divisão, que antes serviu de motor para tanta luta, hoje se desfaz e dispersa as perspectivas da libertação da humanidade desse espetáculo sanguinário.

Eu-Máquina

Você já parou para pensar no seu lugar , no seu papel na sociedade? É comum na nossa vida cotidiana nos sentirmos incompletos, necessitados de mais coisas, mais dinheiro para mais bens para mais bem estar, no entanto dificilmente paramos de pensar na nossa carteira para olhar nos olhos do atendente da lanchonete que nos serve pelas manhãs na ida ao trabalho. Vemos ele como um meio, um trabalhador não um ser humano. Mas pense nisso, quanto será que ele ganha? Aonde será que ele mora? Será que ele se considera bem empregado? Que palavra curiosa essa, empregado… Presume que a força de trabalho de alguém está sendo empregada, usada, posta em ação por outro alguém, alguém alheio as necessidades e desejos de quem é empregado.

E se esse empregado vivesse numa comunidade de empregados, aonde a realidade da vida dele é a competição por empregos melhores, com pagamentos maiores e com condições de trabalho melhores? Pois é justamente nessa condição de empregado que me encontro. No entanto tive a sorte de não estar na posição do atendente da lanchonete, mas sim na posição do comprador. Meu salário, o pagamento que recebo pelo emprego da minha criatividade por outra pessoa, é consideravelmente superior à média de pagamentos que os outros empregados ao meu redor, na minha comunidade, recebem. Numa situação dessas, é fácil adotar a ideologia da meritocracia, afinal se eu consegui, porque eles não poderiam conseguir também? E aí é que mora o perigo. Individualizado, apartado dos meus vizinhos menos sortudos, me torno um aspirante a novas classes mais altas, um bajulador delas que as vê de longe e anseia a sua posição, aceitando trabalhar o dobro do que eles para isso.
E assim a sociedade se divide em inúmeros estamentos com membros que concorrem entre si por posições nos estamentos superiores, uma guerra de todos contra todos que incentiva todo tipo de violência individual, desumanização e conflitos. As pessoas que trabalham comigo não notam o quão sortudas são, não olham nos olhos dos outros empregados que as servem. Nem eu o faço, preciso confessar.

Mas ainda lembro a primeira vez que o fiz. Bastou que eu olhasse para frente e lá estava aquele ser semi-humano, privado de qualquer espontaneidade, um adendo à máquina, sem qualquer perspectivas ou vida própria. Repetia frases decoradas, oferecia produtos tabelados aos quais eu respondia sim ou não em um diálogo mecanizado parecendo dois computadores trocando as informações que lhes programaram pra trocar. Ao notar isso, pensei nas horas em que eu era o adendo da máquina, nas horas que era a minha força que era empregada por outra pessoa para fazer aquilo que eu não queria fazer ou simplesmente não me importava de fazer. Afinal é justo: estou sendo pago. Não é de bom-tom reclamar: sou muito bem pago. Não posso reclamar: existe outra pessoa querendo ser empregada no meu lugar, disposta a trabalhar o dobro que eu trabalho para isso.

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