Deathloop e uns gêneros de jogos

Felipe Dal Molin
10 min readOct 1, 2021

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Deathloop é sensacional, deixa eu tirar isso do caminho antes de qualquer coisa. Sim, o final é frustrante e tem um jeito do jogo implodir a própria premissa dependendo do caminho que você toma, mas a jornada, meu amigo, a jornada é boa.

Verdade, Deathloop não criou nada do zero: ele é o acúmulo de conceitos que já tinham aparecido em outros lugares, com uma amarração e valores de produção que só um estúdio grande e bem-munido de grana pode proporcionar. E às vezes a gente tem que saber apreciar isso.

Na melhor tradição da Arkane Studios, Deathloop é um immersive sim, ou simulador imersivo: um jogo em que cada objetivo pode ser cumprido de muitas maneiras diferentes, e onde os sistemas são pensados para potencializar o poder de escolha do jogador e a eclosão de situações emergentes.

Mas Deathloop também é a combinação de outras ideias que têm espaço cativo na minha cabeça há um bom tempo, e a justa recompensa pelo hype que eu me permiti alimentar. Falei no último post sobre nossa resistência em discutir paradigmas de desenvolvimento e dar-lhes nomes, mesmo que provisórios e a nível de conversa. Queria aproveitar esse aqui para compartilhar alguns desses “gêneros” relacionados a Deathloop que discuto em aulas, consultorias e papos com outros desenvolvedores há bastante tempo, e que acho que são legais o suficiente pra eu me permitir dar nome.

Rápida nota aqui, também fruto de conversas com colegas e estudantes: acho que tem dois jeitos de estar errado na hora de comparar duas coisas. A primeira é “isso é a mesma coisa que aquilo” (Avatar é igual Pocahontas). A outra é “isso é completamente diferente daquilo” (Avatar não tem nada a ver com Pocahontas). Nenhuma obra nasce no vácuo, nenhuma cópia é isenta de carregar algo próprio; qualquer coisa no meio dessas duas ideias pode ter alguma validade.

Mindvania

Você conhece metroidvania: tem um mundo expansivo e interconectado, inteiro à disposição desde o começo. Mas as diferentes áreas desse mundo dependem de diferentes habilidades para serem acessadas: você só alcança aquele penhasco alto depois de pegar o pulo duplo, só atravessa o vulcão depois de ter a armadura que protege do calor, e em última instância precisa colocar tudo isso à prova pra achar os três cristais do capiroto que abrem a porta do chefão final. Essas habilidades estão espalhadas pelo cenário de forma que você vai e volta inúmeras vezes, aprendendo e conquistando o mundo conforme avança.

(Se me permite a tangente: aí o Zelda-like é um metroidvania que faz uma separação clara entre overworld e dungeons, e costuma ter vista superior; e o survival horror é tipo um metroidvania que costuma ter chaves-e-trancas mais literais e 1 pra 1 ao invés de habilidades multiuso, e uma temática de terror reforçada pelo foco em gerenciamento de recursos)

Um mindvania funciona em cima dessa mesma estrutura, mas os power-ups não são coletáveis que alteram o personagem — são conhecimentos que alteram o entendimento do próprio jogador sobre o mundo de jogo.

No meu cânone pessoal, The Witness é o mindvania seminal, e Outer Wilds é o mindvania supremo. Em ambos, o mundo é livre para exploração desde o começo, mas há “trancas” impedindo o acesso a quase todas as áreas: um painel com símbolos que você não sabe ler, uma entrada invisível, uma lua que desaparece ou um planeta tomado por tempestades letais. Ao explorar as outras seções do mapa, no melhor estilo metroidvania, o jogador descobre conceitos fundamentais que, ao serem compreendidos, liberam as “trancas” e fazem a cabeça inchar.

“Mas o nome desse gênero aí é puzzle”, você me diz, “tipo aquele jogo Myst”. E eu confesso que faz tempo suficiente que não jogo Myst pra pensar que você pode estar certo, amigo internauta, e a verdade é que essas coisas não são exclusivas — isso não é o mesmo que aquilo, apesar de também não ser completamente diferente. O que distingue o mindvania é que

  1. a progressão é multilinear, com o mapa distribuído em seções independentes e limitado apenas pela coleta dessas habilidades,
  2. a solução para cada quebra-cabeça está em um conhecimento externo que se encontra em outro lugar do mundo, e
  3. um mesmo power-up mental pode precisar ser usado várias vezes ou abrir várias portas ao redor do mapa, nesses casos agindo mais como uma habilidade adquirida do que uma solução pontual para um único puzzle.

Um mindvania é menos sobre ficar batendo cabeça em cada problema até resolvê-lo, e mais sobre explorar o mapa para encontrar o conceito que responde ao problema. A experiência é de aprender uma língua nova e, aos poucos, dominar o mundo inóspito ao redor.

E Deathloop, ah, Deathloop, é uma a manifestação deliciosa da dinâmica de mindvania com o immersive sim e outras coisas, mas lá está: se você descobre quando e como é possível abrir uma porta específica, esse conhecimento torna-se uma habilidade adquirida que pode ser usada a gosto; entender onde uma arma ou personagem fica libera sua “tranca” e simplifica as visitas futuras; aprender uma rotina aluga um espacinho na mente onde ficam as peças-chave para o plano geral. Tudo isso reforçado pela dinâmica daquele outro gênero, o…

Loop-like

O game designer Dan Cook tem um texto bem legal onde ele fala de loops e arcos, as duas estruturas de interação que a gente vê nos jogos. Encurtando a história: apesar da gente adorar comparar nossos joguinhos com cinema, que tem arcos com início, meio e fim, os jogos funcionam muito em cima do loop, laço, ciclo. Enquanto o arco começa e termina, o laço trata de tudo aquilo que evolui à base de repetição: nossos ritos individuais e coletivos, nossos relacionamentos, nossos processos de aprendizado, etc.

O negócio é que, apesar de terem abraçado o arco a partir de um certo ponto da história, e acabarem fazendo um uso massa disso, videogames são particularmente bons em fazer loops. Especificamente na repetição da mecânica central: atire nos alvos e fique bom de pontaria, dirija seu carrinho e fique bom nas corridas, desça a porrada no seu oponente e vire um mestre da briga de rua.

Já em termos de estrutura, o loop sempre esteve presente de forma mais clandestina. A gente sabe que o joguinho dos anos 80 fazia você morrer pra comprar mais ficha, e aí surge a forte instituição “decorar essa chorna pra não gastar dinheiro”. Mesmo assim, bater no boneco é game, enquanto decorar o level é meta, é externo — não faz parte do core game loop. Mesmo modernamente, em um Dark Souls, onde é esperado que o jogador morra várias vezes para dominar o cenário e poder avançar, esse processo vem associado à derrota e ao regresso no estado de jogo.

Mas não em um loop-like, onde começar de novo e repetir é algo embutido na própria estrutura do jogo, como requisito para seguir adiante. Como no Feitiço do Tempo do Bill Murray, os eventos todos se repetem mas a cada rodada a gente aprende um pouquinho mais.

Apesar de não ter temática de loop temporal, o exemplo seminal para mim é Tony Hawk’s Pro Skater, com a estrutura mais subutilizada da história dos jogos: explore a fase em sessões de 3 minutos tentando cumprir os 10 objetivos listados; o limite de tempo gera tensão, enquanto a repetição cria familiaridade e domínio. Começar de novo e repetir não é fracasso, mas uma etapa esperada do contrato de jogo. Os objetivos cumpridos permanecem, e embora o limite de tempo possa interromper uma exploração no meio, o progresso “macro” é salvo — tanto objetivos quanto melhorias para o personagem.

Outros jogos tiram proveito de uma estrutura parecida abraçando também a temática de loop temporal — aí sim mais próximo do Dia da Marmota. The Legend of Zelda: Majora’s Mask é o mais antigo de que me lembro, mas recentemente temos visto uma renascença dessa ideia. O Outer Wilds, que apareceu aí em cima, é um deles: a cada 22 minutos, o mundo recomeça. Por ser um mindvania e ter conquistas imateriais, nada concreto permanece entre loops, exceto por anotações na nave que ajudam a organizar o pensamento.

Só esse ano, saíram pelo menos mais três jogos nessa linha: Twelve Minutes, que joga como um point ’n’ click com loop temporal; The Forgotten City, que era anteriormente um mod de Skyrim e parece ter muito em comum com Outer Wilds; e nosso querido Deathloop, que explodiu o loop temporal para fora do espaço indie, a ponto de ter um pouco de trabalho pra comunicar sua dinâmica para uma audiência maior. O que todos têm em comum é

  1. o mapa é o grande protagonista, e existem momentos pré-acordados onde o estado do mapa reinicia,
  2. reiniciar o mapa descarta ganhos pontuais mas também mantém algum progresso, seja material ou imaterial e
  3. reiniciar não simboliza fracasso e não é “meta”, é algo embutido na estrutura, a fim de gerar familiaridade.

Deathloop talvez seja o mais loop-lite dos loop-likes até agora, por oferecer um crescimento constante do personagem e dificilmente encerrar um loop sem que haja ganho material. Nesse sentido, ele acaba até lembrando um…

Jogo de rotina

Por um bom tempo, eu me perguntei qual seria a mecânica ou estrutura que permitiria que a gente evoluísse o mainstream pra fora do ciclo de conflito e violência que domina a mídia. Já falei bastante disso por aí e acho que ainda tem muita coisa pra encontrar, mas tem um gênero que parece uma luz no fim do túnel, pela força do formato e quantidade de jogos construindo em cima disso.

No jogo de rotina, existe

  1. um marcador de tempo, geralmente dias, e o jogador precisa escolher como usar as partes do seu dia (horas, turnos, energia, pontos de ação) para atingir seus objetivos, o que envolve
  2. um ciclo de manutenção das coisas que você precisa tomar conta diariamente (a fome, a fazenda, a escola, o ganha-pão) e
  3. uma linha narrativa que avança com o passar do tempo, ou conforme o jogador atinge certas marcas, enquanto
  4. um ciclo de progressão amarra tudo, fazendo com que o jogador se torne mais eficiente nas tarefas de manutenção e possa focar nos objetivos maiores à medida que o jogo avança, ao mesmo tempo que precisa tomar conta de tarefas mais variadas.

Os jogos de rotina seminais são os simuladores de fazenda, a exemplo de Harvest Moon e sua melhor encarnação nesse século, Stardew Valley. Em Stardew Valley, o ciclo de manutenção é cuidar da fazenda, a fim de arranjar dinheiro e poder investir em coisas como insumos, presentes e melhorias. A linha narrativa é o passar das estações e dos anos, com o jogador se aproximando dos personagens da cidade e até formando uma família, enquanto a progressão é tornar a fazenda cada vez maior e melhor, de forma a ter mais eixos de manutenção e, em troca, acumular dinheiro mais rápido.

Em Punch Club, a manutenção é trabalhar todo dia para bancar o treino, a progressão é treinar no tempo livre para se tornar cada vez melhor no boxe, e o arco narrativo é vencer as lutas a fim de descobrir quem matou seu pai.

Em The Escapists, a manutenção é a rotina de prisão, com horários fixos para levantar, se apresentar, comer, trabalhar, etc, sob o risco de ser penalizado. O objetivo e arco narrativo é a fuga da prisão, e a progressão são as melhorias e equipamentos que viabilizam a fuga. Aqui, como em um jogo de loop, o aprendizado do cenário também é fundamental para bolar o melhor plano de fuga.

Em Graveyard Keeper, a manutenção é tomar conta dos mortos que chegam na sua funerária toda semana. A progressão é evoluir a estrutura para tornar esse processo menos lento e penoso, e o arco narrativo é conhecer os personagens do lugar para descobrir por que você foi atropelado no século XXI e foi parar no período medieval.

Em Persona 5, que é uma mistura de RPG com jogo de rotina, a manutenção é a obrigatoriedade de completar as dungeons, além de cumprir os turnos na escola e trabalhar para ter algum dinheiro na conta; a progressão é a melhoria de atributos de tarde e de noite, que destrava novas habilidades e interações sociais; e o arco narrativo é o rolo todo de roubo de corações e descobrir o que está acontecendo com a cidade.

Voltando a Deathloop, apesar de não haver um ciclo de manutenção propriamente dito, há a necessidade constante de coletar Residuum dia a dia para alimentar a progressão material (infusão de armas, poderes e trinkets), há a escolha de como usar cada turno do dia, e uma linha narrativa maior que desafia o jogador a otimizar essa rotina a fim de assassinar os responsáveis pela ilha. Não dá para chamar Deathloop de jogo de rotina tanto quanto dá para chamar de mindvania e loop-like, mas um pouco da sensação está lá — não é exatamente aquilo, mas também não é completamente diferente.

Vejo potencial imenso nesses três gêneros: o jogo de rotina é uma forma ótima de contar histórias não baseadas em conflito — o ciclo de manutenção substituindo a barrinha de vida a fim de manter a tensão e o engajamento mecânico. O loop-like é excelente para tirar suco do level design, economizando em volume, ao mesmo tempo que promove uma experiência de maestria ao garantir que o jogador explore cada cantinho do cenário e se familiarize com ele, de forma similar a um speedrun. E o mindvania é um bem-vindo aprofundamento estrutural para os jogos de puzzle, permitindo que jogos do gênero pareçam um pouco menos com resolver palavras cruzadas, e um pouco mais com histórias de detetive.

Gosto de pensar que todos eles estão pegando tração, e ainda têm muito para oferecer nos próximos anos. Do meu lado, sempre vou empolgar quando descobrir um novo loop-like, mindvania ou jogo de rotina tomando as manchetes no lugar do próximo jogo de tiro genérico.

Comenta aí e bora conversar: conhece jogos que eu não citei mas que encaixam nesses gêneros? Tem algum outro gênero que está caindo de maduro mas você ainda não viu ninguém dar nome?

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Felipe Dal Molin

Former Principal Game Designer at Aquiris. Horizon Chase 1 & 2, Wonderbox, Dungleon, Spooklands. Wants to make great games.