Dois Karamázovs: Schnaiderman e Bezerra

Literatura Russa
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5 min readJul 30, 2015
Boris Schnaiderman

A história da tradução de Os irmãos Karamázov (Братья Карамазовы, 1880) por Boris Schnaiderman é bem conhecida pelo público interessado, principalmente pelo esforço quase hercúleo do tradutor, conforme relatado em matéria de Paula Scarpin:
Em 1943, sem experiência nenhuma, ele oferecera as suas traduções do russo para algumas editoras. Recebeu de pronto uma resposta positiva da Vecchi. Eles sabiam que a José Olympio havia encomendado a tradução de Os Irmãos Karamázov, do francês, a Rachel de Queiroz, e queriam sair na frente com uma edição traduzida diretamente do russo. “Eu só tinha 27 anos e nunca tinha lido o livro. Se tivesse, não aceitaria de jeito nenhum”, conta. Na época ainda não havia dicionários russo-português, e o jovem tradutor precisou fazer o tortuoso caminho de consultar as palavras que não dominava em dicionários russo-francês e russo-inglês na Biblioteca Nacional. “A tradução acabou sendo muito bem recebida na época, pela crítica inclusive. Mas eu não a aceito mais, ela tem muitos defeitos. Até hoje eu acho Os Irmãos Karamázov um livro muito difícil de traduzir. Eu me esforcei, mas não tinha o preparo necessário”, diz.

Apesar de renegada, a tradução ficou famosa graças ao plágio de uma editora paulistana “especializada” em livros de bolso, que transformou Boris Solomonov em Alexandre Boris Popov, popularizando Os Karamázov em sua forma mais escusa.

Mais de meio século depois, em 2008, superadas a russofilia da ditadura e a ausência de novas traduções de romances russos, Paulo Bezerra lança sua tradução, dando sequência ao projeto de encarar os cinco elefantes de Dostoiévski. Desta maneira, o leitor brasileiro tem acesso à uma das parcas oportunidades de comparação entre traduções diretas de um mesmo grande romance russo, sendo Os Karamázov, primeira e única investida de Schnaiderman pelos clássicos volumosos, preterindo-os em favor de escolhas menos óbvias.

Portanto, por mero exercício de leitura (além de teste da nova plataforma), oferecemos o parágrafo inicial de cada tradução do primeiro capítulo do romance, além do original e uma tradução inglesa recente.

Boris Schnaiderman (Solomonov), 1944

Livro primeiro: História de uma família

Alexei Fiodorovitch era o terceiro filho de Fiodor Pavlovitch Karamazov, fazendeiro de nosso distrito, muito conhecido outrora e ainda hoje frequentemente lembrado pelo seu trágico e obscuro fim, ocorrido há trinta anos exatamente e sobre o qual escreverei em ocasião oportuna. Por enquanto, direi apenas que este “fazendeiro” (ele foi assim apelidado, apesar de quase não ter residido em sua propriedade) era um tipo esquisito, porém muito encontradiço, isto é, o tipo de homem não apenas mau e pervertido, mas também pobre de espírito — destes pobres de espírito que sabem, entretanto, resolver muito bem os seus problemas financeiros e, segundo parece, apenas estes. Fiodor Pavlovitch, por exemplo, começou com quase nada. Ele era um fazendeiro sem importância, que geralmente procurava almoçar em mesa alheia e chegara, até a viver à custa de outrem, mas, depois de sua morte, verificou-se que tinha deixado perto de cem mil rublos líquidos. Apesar disso, durante toda a sua vida não deixou de ser um dos maníacos mais pobres de espírito de nosso distrito. Direi mais vez: não se tratava de tolice — estes maníacos são geralmente bem ativos e espertos — mas justamente pobreza de espírito de um tipo especial e bem russo. (Os irmãos Karamazov v. 1, p. 11. São Paulo: Editora Vecchi, s/d)

Paulo Bezerra, 2008

Livro 1: História de uma família

Alieksiêi Fiódorovitch Karamázov era o terceiro filho do fazendeiro de nosso distrito Fiódor Pávlovitch Karamázov, muito famoso em sua época (aliás, ainda hoje é lembrado entre nós) por seu fim trágico e obscuro, ocorrido há exatos treze anos, e sobre o qual relatarei no devido momento. Agora, porém, direi a respeito desse “fazendeiro” (como o chamavam entre nós, embora durante toda sua vida ele quase não morasse em sua fazenda) apenas que era um tipo estranho, desses encontrados, todavia, com bastante frequência, justamente um tipo de homem não só reles e devasso, mas ao mesmo tempo bronco — contudo, daqueles broncos que, não obstante, sabem arranjar magistralmente seus negocinhos com propriedades e, parece, só e unicamente estes. Fiódor Pávlovitch, por exemplo, começou quase do nada, era um fazendeiro insignificante, vivia a correr atrás de almoços em mesas alheias, empenhava-se a fundo na condição de comensal, mas ao morrer deixou uma quantia que beirava os cem mil rulos em dinheiro sonante. E ao mesmo tempo, passou toda a vida, apesar de tudo, sendo um dos mais broncos extravagantes de todo o nosso distrito. Torno a repetir: aí não se trata de tolice; em sua maioria esses extravagantes são bastante inteligentes e ladinos: trata-se precisamente de bronquice, e ainda por cima de uma bronquice algo peculiar, nacional. (Os irmãos Karamázov v. 1, p. 17. São Paulo: Editora 34, 2008)

Fiódor Dostoiévski, 1880

Книга первая: История одной семейки

Алексей Федорович Карамазов был третьим сыном помещика нашего уезда Федора Павловича Карамазова, столь известного в свое время (да и теперь еще у нас припоминаемого) по трагической и темной кончине своей, приключившейся ровно тринадцать лет назад и о которой сообщу в своем месте. Теперь же скажу об этом «помещике» (как его у нас называли, хотя он всю жизнь совсем почти не жил в своем поместье) лишь то, что это был странный тип, довольно часто, однако, встречающийся, именно тип человека не только дрянного и развратного, но вместе с тем и бестолкового, — но из таких, однако, бестолковых, которые умеют отлично обделывать свои имущественные делишки, и только, кажется, одни эти. Федор Павлович, например, начал почти что ни с чем, помещик он был самый маленький, бегал обедать по чужим столам, норовил в приживальщики, а между тем в момент кончины его у него оказалось до ста тысяч рублей чистыми деньгами. И в то же время он все-таки всю жизнь свою продолжал быть одним из бестолковейших сумасбродов по всему нашему уезду. Повторю еще: тут не глупость; большинство этих сумасбродов довольно умно и хитро, — а именно бестолковость, да еще какая-то особенная, национальная. (Wikisource)

Pevear & Volokhonsky, 2002.

Book I: A nice little family

Alexei Fyodorovich Karamazov was the third son of a landowner from our district, Fyodor Pavlovich Karamazov, well known in his own day (and still remembered among us) because of his dark and tragic death, which happened exactly thirteen years ago and which I shall speak of in its proper place. For the moment I will only say of this “landowner” (as we used to call him, though for all his life he hardly ever lived on his estate) that he was a strange type, yet one rather frequently met with, precisely the type of man who is not only worthless and depraved but muddleheaded as well — one of those muddleheaded people who still handle their own little business deals quite skillfully, if nothing else. Fyodor Pavlovich, for instance, started with next to nothing, he was a very small landowner, he ran around having dinner at other men’s tables, he tried to foist himself off as a sponger, and yet at his death he was discovered to have as much as a hundred thousand roubles in hard cash. At the same time he remained all his life one of the most muddleheaded madcaps in our district. Again I say it was not stupidity — most of these madcaps are rather clever and shrewd — but precisely muddleheadedness, even a special, national form of it. (Brothers Karamazov, p. 24. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2002)

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