A que não morre no final
essa semana por acaso revisitei Tokyo Ga e Still Life. o primeiro é um documentário em que Win Wenders vai procurar o Japão que conheceu a partir dos filmes de Yasujiro Ozu. o segundo, um longa-metragem de Jia Zhangke em que dois personagens precisam chegar a uma cidade prestes a ser engolida pela barragem de Três Gargantas, para resolver assuntos pendentes.
em Tokyo Ga, Win Wenders chega à Tokyo 20 anos após a morte de Ozu e não encontra a paisagem filmada por seu diretor favorito. ao contrário, se depara com uma cidade entregue às luzes de neon, jogos de beisebol em um cemitério, as onipresentes televisões e os alimentos encerados que ficam anos nas vitrines dos restaurantes para anunciar o cardápio.
em Still Life, sublinho uma cena específica, que começa com grandes planos abertos de escombros. vemos alguns homens demolindo edifícios inteiros, outros vestindo roupas hermeticamente isoladas borrifam algo sobre os restos de construção. a câmera passeia pelo entorno imediato, entra em um edifício em ruínas e vemos o rosto de um menino contra uma janela. o fundo está estourado, de maneira que somos privados desse entorno e tomados pelo clarão que envolve o menino. e então ele canta uma musiquinha de amor.
entendi depois de assistir aos dois que estava buscando uma certa melancolia que vem da ideia de apagamento da paisagem, algo que me ajudasse a ajustar o olhar sobre a cidade que eu vejo todos os dias, mas que sei que não é a mesma, que não será a mesma.
o universo das imagens, tão atacado por uma parcela agora considerável da sociedade, tem a função de ensinar a olhar. o controle sobre o cinema, sobre a imagem como um todo, tem o objetivo de silenciar o pensamento: “quando o pensamento perdeu seus direitos, acusa-se a imagem de todos os males, sob o pretexto de que ela está descontrolada”, disse Marie José Mondzain, já citada por mim muitas vezes, mas que sempre vem a calhar. pensar a imagem é responder pelo destino da violência, fazer imagens é reafirmar o lugar fundante das liberdades.
essa semana também discuti (também por acaso mas vocês sabem que adoro uma briga) com uma manifestante barulhenta que postou vídeos em frente ao palácio Piratini reivindicando o fim da quarentena. em um dado momento ela disse que eu deveria me envergonhar da minha profissão ridícula — o que me bateu de um jeito quase engraçado. eu sei explicar por que fazer cinema é uma arma; e sei que ela entende. esse território de disputa tem a ver com a guerra declarada à imagem, com a guerra declarada ao pensamento. o mercado do visível funciona contra a liberdade, eu reitero. o que ela quer é, para além do direito de não ver, suprimir o meu direito de mostrar. “é mais fácil interditar o ver do que permitir o pensar”, disse Marie. o que a moça bolsonarista barulhenta faz é cometer violência contra o invisível, ou seja, abolir o lugar do outro na construção de um “ver em conjunto” — já tão abalado pela impossibilidade de acesso aos cinemas e aos espaços de convívio.
entendo que as imagens que nos interessam nascem do desejo, que só é possível produzi-las em um exercício contínuo de liberdade de olhar. retomo a imagem do garoto no filme de Jia Zhangke, espectador da paisagem em declínio, que canta diante do inexorável avanço das águas. não à toa, o título em português desse filme — ao invés da tradução literal “natureza morta” — é “Busca Vida”.
as nossas imagens, as que pertencem ao nosso léxico, as que amamos, as que vamos fazer, devem estar à vista, guarnecendo as nossas liberdades, alimentando a possibilidade de contemplação, de manutenção do desejo, espirrando na cara dos caretas.