“Morra quem morrer”: Desprezo aos idosos em meio à pandemia da COVID-19

Larissa Mazuchelli
9 min readAug 4, 2020

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Por Larissa P. Mazuchelli & Marcus V. B. Oliveira

Marisol Barenco, “2020”, Colagem, 2020. Gentilmente cedida pela autora em resposta a este texto.

Quando começaram a aumentar os números de casos e mortes por COVID-19 no Brasil, veículos de comunicação “acalmaram” a população, afirmando que corriam risco apenas os velhos e aqueles que tinham comorbidades. Apesar da circulação de um discurso hegemônico que, via de regra, celebra e valoriza a longevidade como algo positivo e desejável (a “melhor idade”), a pandemia tem escancarado o profundo desapreço pelos idosos que existe em nosso país. Afinal, que tipo de raciocínio necropolítico, como define o filósofo camaronês Achille Mbembe, é capaz de garantir que alguém se sinta tranquilizado e seguro sabendo que um outro, de uma geração anterior, é que corre risco maior de morrer?

Publicado em 11 de março de 2020.

Quase cinco meses depois do início “oficial” do isolamento social no Brasil, as mortes de idosos vêm sendo naturalizadas na mesma medida em que se diz “e daí?”. O país, que tem cerca de 33 milhões de idosos (ou seja, quase 16% da população acima de 60 anos), segundo dados do IBGE de 2019, assiste, sem muita indignação, os números de vítimas aumentarem. De acordo com o boletim epidemiológico número 24, do Ministério da Saúde, que trata da Semana Epidemiológica 30 (de 19 a 25 de julho), dos 83.966 óbitos confirmados por COVID-19, 60.572 são de idosos; ou seja, pouco mais de 72% dos que morreram eram idosos. Nesses dados, desconsidera-se, contudo, os 26.140 idosos mortos em consequência de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) por motivo não especificado. Como pesquisadores, há, portanto, questões metodológicas a serem sanadas para mensurarmos o impacto causado pela COVID-19, mas alguns indícios podem ser entrevistos analisando, por exemplo, esse número desconsiderado acima, além dos dados oficiais de mortes por COVID-19.

É preciso ponderar, ainda, que considerando somente o período entre abril e junho de 2020, foram registrados, no Brasil, 32.321 óbitos de idosos a mais do que no mesmo período em 2019 [1]. Esse aumento absoluto, referente a três meses, é mais do que o dobro verificado para a diferença dos óbitos de idosos por todas as causas e considerando todo o ano, entre 2017 e 2018 (13.609 idosos), segundo as Estatísticas do Registro Civil do IBGE. Esses números, para não obscurecerem nossa visão, precisam ganhar corpo. É preciso lembrar que não estamos tratando de números, simplesmente, mas de idosos.

Esse cenário de desamparo e falta de clareza é agravado ainda mais pela falta de articulação nas ações direcionadas ao cuidado da população. Tivemos três ministros da saúde em menos de um mês e não utilizamos nem um terço da verba destinada para combater a pandemia. Nessa conjuntura, o governo federal dissimula dados para não escancarar o gerontocídio, como o médico Alexandre Kalache, uma das principais vozes na defesa dos direitos dos idosos, vem chamando a atuação brasileira frente à pandemia. Cabe lembrar que em junho o Superior Tribunal Federal precisou determinar que o Ministério da Saúde voltasse a publicar os dados integrais da COVID-19.

A nossa situação somente não é pior porque temos o resistente Sistema Único de Saúde (SUS), precarizado e sempre na mira de um possível desmonte, mas que assiste 75% de nossos idosos, que dependem exclusivamente do SUS; ou seja, 3 de cada 4 idosos não têm outra alternativa para cuidar da saúde. O Brasil, que dispõe de uma tradição positiva em saúde coletiva e de excelentes epidemiologistas, deveria melhor utilizar essa rede inclusive para potencializar ações em atenção primária, tendo em vista a urgente necessidade de medidas preventivas e promotoras da saúde dos idosos. No entanto, mesmo considerando que tivemos três meses para elaborar um plano sanitário a fim de atenuar essa tragédia, estamos longe de atingir o nosso potencial.

No meio de tantas mortes, não parece haver a mínima sensibilização na esfera federal. Pelo contrário, contabilizadas pouco mais de 90.000 vítimas fatais, vemos, cotidianamente, o presidente do país sem máscara, apertando a mão de todos, mesmo tendo sido diagnosticado com a COVID-19, enaltecendo seu “perfil atlético”, como um contraexemplo de tudo o que deveria ser feito por quem ocupa o cargo máximo da nação. Operando nesta mesma lógica, vemos seus seguidores minimizando as mortes, profanando homenagens, como o ocorrido na derrubada das cruzes que simbolizavam as vítimas fatais de COVID-19 na praia de Copacabana (RJ), colocadas em junho pela ONG Rio da Paz.

Protesto da ONG Rio da Paz

Se à primeira vista tais atitudes parecem negacionistas, com um olhar mais refinado percebemos o aprofundamento do pensamento eugenista. O termo, criado em 1883 por Francis Galton, estudioso inglês, se fundamenta na ideia de que a seleção natural também se aplica à sociedade. Ou seja, como os animais, os homens e as mulheres mais fortes sobreviveriam “naturalmente” às condições mais desafiadoras, garantindo o avanço e fortalecimento da espécie. Disso segue a criação de discursos e mecanismos que perpetuam a lógica de aperfeiçoamento que parece estar profundamente enraizada na política deste governo, favorecendo uma visão biomédica nas decisões políticas que privilegiam os grupos considerados “melhores”, como os mais jovens. Como já afirmado pela psicóloga e diretora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, Cida Bento, há no governo o desejo de

“encobrir uma política eugênica que não investe esforços para estancar a pandemia porque quem está sendo preferencialmente atingido são os pobres, os negros e os favelados”.

E os idosos?

Ser idoso no Brasil, com ou sem pandemia, não é tarefa fácil. A pessoa não se torna idosa somente porque completou 60 anos, como define a Organização Mundial de Saúde; mas sobretudo porque caminhou até esse marcador arbitrário. Se pensarmos no processo de envelhecimento, que é diário, não é possível falar sobre esse tema sem considerarmos o racismo que assola o país, já que vítimas desse racismo, por exemplo, não chegam a fazer parte deste grupo. A velhice é o lugar para onde convergem, portanto, a falta de acesso à educação e aos serviços de saneamento e saúde, e a violência, inclusive a policial, que sabemos ser brutal contra a população negra. De acordo com o último Relatório Anual das Desigualdades Sociais, do Núcleo de Estudos de População, da Unicamp (2011), os brancos têm seis anos a mais de expectativa de vida que os negros. Envelhecer deve ser também um direito de todos, e não mais um privilégio de classe e de raça.

Na defesa de uma invencionice brasileira de isolamento vertical, pautada por uma defesa econômica de viés neoliberal, os idosos são, portanto, sistematicamente ignorados. Não temos como não pensar na declaração do prefeito de Itabuna, município no Sul da Bahia, ao defender a reabertura do comércio local: “Morra quem morrer”. Itabuna tem a quarta maior incidência de COVID-19 na Bahia. Além de inviável e ineficaz, a ideia de isolamento vertical ignora que há idosos sendo convocados a retomar suas atividades profissionais, mesmo quando o empregador, seja da esfera pública ou privada, não pode garantir sua segurança sanitária. Ignora também aqueles que precisam sair de casa para exercer trabalhos informais, dada a irrisória inserção e manutenção dessa população no mercado formal. Mesmo aqueles que já não podem trabalhar, ou aqueles que poderiam exercer suas funções remotamente, são sistematicamente ignorados. Tudo isso desprotege e aumenta a vulnerabilidade desse grupo.

Apesar de serem considerados dispensáveis economicamente, 62% das pessoas de 60 anos ou mais de idade são apontadas como principais responsáveis pelos domicílios em que vivem, enquanto as aposentadorias e pensões representam 20% do rendimento domiciliar per capita mensal médio no país, segundo dados recentes do IBGE. É preciso também lembrar que as famílias que dependem das pensões dos idosos são protegidas por eles justamente porque essas pensões são, muitas vezes, a única fonte regular de renda. Como nos lembra Marilena Chauí na apresentação da obra clássica “Memória e Sociedade”, de Ecléa Bosi [2], uma das grandes pensadoras da sociedade brasileira, os idosos são fundamentais porque

“unem o começo e o fim, ligando o que foi e o porvir. Mas a sociedade capitalista impede a lembrança, usa o braço servil do velho e recusa seus conselhos”.

Neste ponto, perguntamos, a quem se recorre quando aqueles que deveriam seguir os princípios de proteção e assistência não garantem aquilo que se tornou direito nessa pandemia: manter-se isolado realizando suas atividades profissionais? Por que a própria comunidade é incapaz de compreender os efeitos de transmissão do vírus e aceita, sem muita resistência, o retorno de atividades econômicas, como o comércio e, agora, o retorno das aulas presenciais? Como ouvir que o Brasil vai bem já que o pico da COVID-19 já teria passado para as classes “altas” do país, como afirmou o presidente da XP Investimentos, Guilherme Benchimol? Quando vamos entender o que significa uma vida em sociedade?

A verdade é que, como sociedade, não nos importamos com nossos velhos e velhas. Aceitamos a transformação, o lugar em que o sistema necro-econômico os colocou. Aceitamos, sem indignação devida, a fala da chefe da Superintendência de Seguros Privados (Susep), Solange Vieira:

“É bom que as mortes se concentrem entre os idosos. Isso vai melhorar nosso desempenho econômico, pois reduzirá nosso déficit previdenciário”.

Nós, enquanto sociedade, os tiramos de sua dignidade, os desarmamos e os oprimimos. Consideramos que sejam incompetentes, frágeis demais e bobos. Repetimos e reafirmamos, das mais diversas formas, que são incapazes de compreender a situação pela qual passa o país e de cuidarem de si próprios, mesmo sendo eles quem, muitas vezes, sustentam suas famílias. Por isso, os incluímos no grupo dos ignorantes. Por isso, suas mortes parecem ser mais que compreensíveis; são esperadas.

Uma sociedade que trata os idosos dessa maneira está falida.

Simone de Beauvoir, em seu livro “A velhice”[3], já nos dizia que é na última idade que se cava mais profundamente o fosso que separa um punhado de privilegiados e a imensa maioria dos homens. Ela já afirmava, em 1970, quando sua obra foi lançada, que a velhice denuncia o fracasso de toda uma civilização. A pandemia, portanto, não criou uma novidade. Ela escancarou o desapreço pelos idosos — aqui presente já há tanto tempo, mas que vem ganhando força nos discursos, na pouca articulação política do cuidado e em propostas escandalosas como a reforma da Previdência, que afundará ainda mais a velhice na pobreza. Por que não nos importamos? É preciso se enfuriar!

O nó crítico dessa pandemia é que a morte dos idosos resulta da transmissibilidade ocasionada por todos, inclusive pelos mais jovens. Sendo assim, este momento exige de nós uma espécie de responsabilidade que não se limita a nos protegermos. É fundamental se responsabilizar pelo outro, o que demanda deslocar o princípio das relações para a alteridade, como pensou o filósofo russo Mikhail Bakhtin. Essa responsabilidade se fundamenta no fato de que somos sempre em relação (às pessoas com quem nos relacionamos, hoje ou no passado, à nossa história e ao futuro que desejamos) e de que a alteridade nos constitui. Essa responsabilidade funda-se, assim, na compreensão radical de que sem o outro, nada seríamos. Está também aí, portanto, a dimensão da vida dos idosos, sua ligação vital conosco.

A esse entendimento de responsabilidade precisamos acrescentar a noção de intergeracionalidade; ou seja, a necessidade de nos reconhecermos nas demais gerações às quais não pertencemos — sejam elas mais novas ou mais velhas que nós. Essa responsabilidade intergeracional é a mesma que não temos demonstrado quando destruímos os recursos naturais ou ignoramos o aquecimento global. Ela é exigida agora de forma radical, sem álibis. Não há desculpa para os shoppings lotados, para as praias e bares cheios, para as festas e aglomerações familiares ou não, para o retorno às aulas presenciais, para o contraexemplo da nação em meio a mais de 90.000 mortos. Todos responderemos por isso.

Temos de entender que estamos todos envelhecendo e que falar do envelhecimento do outro é falar de nós também. De certo modo, nós já carregamos em nós aquela criança à qual devemos comprometimento, assim como a idosa ou o idoso a quem devemos apreço. Nenhum ser humano perde direitos por envelhecer. É o que diz a campanha lançada pela Anistia Internacional, em junho deste ano, para nos lembrar de que as vidas dos idosos não são descartáveis. Ninguém deixa de ser humano por ser velho — ainda que pareça absurda a necessidade, nos dias de hoje, de uma iniciativa como essa.

[1] Dados coletados às 08:30 do dia 17 de julho de 2020. Como informado pelo portal, a família tem até 24h após o falecimento para registrar o óbito em Cartório que, por sua vez, tem até cinco dias para efetuar o registro de óbito, e depois até oito dias para enviar o ato feito à Central Nacional de Informações do Registro Civil (CRC Nacional), que atualiza esta plataforma de dados pesquisada.

[2] Ecléa Bosi, “Memória e Sociedade: Lembrança dos Velhos”. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

[3] Simone de Beauvoir, “A Velhice”. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1990.

Sobre os autores:

Larissa Picinato Mazuchelli é professora, linguista e pesquisadora independente.

Marcus Vinicius Borges Oliveira é fonoaudiólogo, pesquisador e professor da Universidade Federal da Bahia.

Ambos são doutores em Linguística pelo IEL/UNICAMP e membros do GELEP — Grupo de Estudos da Linguagem no Envelhecimento e nas Patologias (CNPq-Lattes).

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