O porquinho em sua casinha de tijolos. Seus irmãos viraram apenas lembranças em porta-retratos

A tragédia dos três porquinhos

Na versão de 1890, dois porquinhos morreram, mas isso não impediu um final feliz

Luciana Barreto
3 min readApr 5, 2016

--

Estava eu à noite, dentro de minha casinha de tijolos, lendo pela primeira vez a história dos três porquinhos para Maria. Minha filha se aninhava num cobertor quentinho, e seus olhinhos brilhantes se voltavam para mim.

De repente, algo estranho aconteceu. Notei, naquela história tão familiar, palavras inesperadas. Não cheguei a pronunciá-las. Como eu contaria as páginas seguintes? Na versão que eu tinha em mãos, os dois porquinhos imprudentes acabavam mortos, suas peles rosadas cravejadas pelos dentes do lobo, num massacre suíno chocante até para mim, que não sou vegetariana.

Embora eu costume preferir os contos de fadas originais, nesse caso eu gosto mais da versão suavizada. É mais misericordiosa. Tudo bem, os dois porquinhos erraram. Foi muito vacilo achar que seria uma boa ideia montar, próximo a um covil de lobos, uma casa de palha (pelo amor de Deus) e uma casa de madeira (esse porquinho eu até entendo mais). Mas a morte me parece uma punição muito severa; o braço do Destino, ao meu ver, pesou além da conta.

Não estou sozinha na minha opinião benevolente. Sobre uma história parecida, a da cigarra e da formiga, um monge beneditino, homem bastante sensato, fez um poema só para passar um pito na formiga. Ele lembrou a ela que cantar pode dar muito trabalho e que uma casa com música é uma casa muito mais feliz.

Mas também consigo entender sabedoria popular ancestral que não perdoou os porquinhos. Eles desrespeitaram uma regra de ouro: o vasto mundo é um lugar inóspito. O lume dos nossos lares é o último refúgio ante a maldade e por isso temos que cuidar para que ele não se apague. Essa regra vale para todos: desde os insetos, como a cigarra, até os reis, como o Rei Lear. Desrespeitá-la é perigoso, e pode custar a própria vida.

Não é só porque estamos num conto de fadas que a vida seja um conto de fadas, porquinhos. O mundo faz sentido, e o mal que o lobo representa precisa ser punido. Mas o erro também pode acabar punido, porque o erro é uma forma de mal. As tragédias, o velho Aristóteles já tinha alertado, começam com um erro de julgamento. Os dois porquinhos se esqueceram do conselho.

Sopinha de lobo

Vejam que, apesar de todo o sangue derramado, a versão original não acaba mal. Tem final, na medida do possível, feliz. Com os dois irmãos mortos, o heroísmo do porquinho diligente aumenta; seu combate derradeiro com o lobo é individual e, portanto, mais dramático. A prudência vence a força bruta. O porquinho matou o lobo, “comeu-o no jantar e viveu feliz para sempre”.

O banquete do porquinho solitário

Quando cheguei à última frase da história, Maria já estava dormindo. Daquela vez, ao menos daquela vez, minha filha soube que os três porquinhos terminaram felizes juntos, em volta de uma mesa com muita comida e alegria, como as tantas noites que tenho junto aos meus três filhos em nossa casinha de tijolos.

--

--