“Mamãe, porque só a gente é negro?” — por mais pessoas negras em nossa convivência

Luciana Bento
6 min readJun 6, 2016

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Tenho pensado muito sobre a importância da representatividade para crianças negras e sobre a importância promoção da diversidade e da pluralidade cultural para todas as crianças. E nesse movimento de reflexão, me sinto cada dia mais motivada e impulsionada para a ação. É daí que nasce o trabalho na InaLivros, nascem as listas de dicas de livros, nasce minha participação no Iyá Maternância e outros grupos sobre maternância preta e a lista 100 meninas negras. Mas principalmente, nasce uma consciência de que precisamos de um passo a mais. Precisamos sair o mundo virtual e das iniciativas individuais de busca por referenciais afrocentrados para nossos filhos. Precisamos ocupar um espaço público e coletivo de vivência negra.

Não é minha intenção desconstruir totalmente o meu próprio discurso da importância da leitura e da representatividade na mídia, mas sim reforçar a importância de uma comunidade negra para a formação da identidade das crianças negras e das pessoas negras em geral. Muitas vezes vivemos e frequentamos lugares em que somos, de fato, minoria. Olhamos para os lados e não vemos outras pessoas negras em nosso local de trabalho, da mesma forma que nossas crianças não reconhecem semelhanças entre suas características físicas e a de seus pares.

Quando nossas crianças começam a perceber que existem diferenças entre as pessoas e que pessoas com a pele negra com a delas não frequentam todos os lugares, chaga a hora de nós, como pais, explicarmos algumas coisinhas sobre esse mundo que vivemos. Não é nada fácil, até porque nós mesmos fingimos cotidianamente que está tudo bem, mas a sociedade brasileira o tempo todo tenta nos fazer acreditar que existe um lugar para a população negra e esse lugar não é nos pontos mais valorizados.

O lugar do negro

familia negra 1

O problema disso tudo é que nossas crianças crescem acreditando que existe um lugar específico para a população negra. Nos filmes e novelas somos minoria. Sempre nos representam com um ou dois personagem, vivendo em uma cultura e sociedade que privilegia as origens europeias da população, na qual as pessoas negras seguem um certo patrão de beleza que determina que homens negros devem ter cabelos raspados e que mulheres negras devem ter cabelos alisados.

É muito mais difícil nos enxergarmos como negros e entendermos a importância da valorização de nossas características fenotípicas quando vivemos em um meio ambiente majoritariamente branco. O padrão de beleza é o cabelo liso, o nariz fino, o quadril estreito. As mulheres negras, pra tentar se aproximar desse padrão, passam por uma série de procedimentos estéticos, desde alisamento capilar até mesmo intervenções cirúrgicas. Tudo isso para ser aceita, para não ser um ponto desviante do padrão. Mas veja bem, vale a pena ficar mais próxima do padrão de beleza branco — uma pessoa negra nunca conseguirá atingir esse padrão, por mais que se modifique — mas ficar cada dia mais afastada a sua essência, da sua real identidade? Porque ter o cabelo liso mas não poder deixar uma gota d’água cair com medo que o cabelo volte ao normal ou ter a necessidade de retocar o cabelo a cada semana para não demonstrar o cabelo crespo escondido sobre camadas de químicas não são formas de valorizar e reconhecer a própria identidade. É uma autoestima e uma autoimagem calcada em uma ficção.

Mas tudo isso pode ser melhor falado em outra oportunidade. O que eu quero destacar aqui é que para a população negra ser aceita em determinados lugares sociais é preciso que ela se adapte física e culturalmente à uma estética branca. E quando você não se encaixa nesse padrão, a sensação de desconforto em determinados lugares é latende. E as crianças percebem isso!

família bento

Aqui em casa meu cabelo é black power, das minhas curicas também e meu marido usa dread. Então já viu né, não estamos no padrãozinho branco-europeu dos nossos colegas de trabalho e de escola ou dos nossos vizinhos. A gente anda por aí com nossas roupas afro, nossas filhas andam com suas bonecas pretas e suas bonecas de orixás e, quando a gente circula por esses espaços, somos os únicos negros.

Ainda não rolou a frase título dessa postagem aqui em casa, e talvez nem role de fato, porque a gente tem uma preocupação e necessidade de frequentar muitos espaços voltados para a cultura negra. Mas a percepção de sermos minoria já está chegando por aqui, e já se manifesta na felicidade que Isha Bentia demonstrou outro dia ao encontrar uma menina com o cabelo como o dela na escola.

A importância dos grupos de sociabilidade

Entendo que grupos de sociabilidade de pessoas negras existem em maior número em grandes cidades e que as vezes pode ser difícil encontrar eventos culturais, feiras e rodas de conversas voltadas para a cultura negra. Mas somos a maioria da população desse país. Onde quer que você, leitora, esteja, com certeza existem outras pessoas negras. Pode não ser na mesma classe social, pode não ser na mesma escola, condomínio, bairro… mas têm. Basta pensar um pouco. E você precisa estar próxima a esses pessoas de alguma forma.

Quantas pessoas negras se formaram junto com você?

formandos brancos

Se você tem uma situação econômica mais favorável que a maioria da população negra, você passa por isso. E a sua noção de espaços de sociabilidade é perpassada por essa visão de classe. Você quer frequentar os lugares que seu dinheiro pode pagar, e isso é um direito legítimo. Tem que ocupar mesmo esse lugares! Mas esses lugares não contemplam a nossa identidade e estética. Sempre fica um vazio quando chegamos num local e não tem nenhuma cara preta como a nossa se divertindo ou consumindo por lá. A gente sabe bem o que é isso, e talvez já estejamos até calejados. Quem fez faculdade provavelmente estudou com pouquíssimos colegas negros. Penso, então, que esse lado da nossa sociabilidade precisa ser valorizada também. Ainda mais quando tem criança no meio!

“Mas como nos aproximar de outras pessoas negras se elas não são muitas (ou não existem) em nosso convívio?”

Gente, não tô falando de fazer uma doação de roupas para pessoas pobres, por exemplo. Estou dizendo que você, pessoa de classe média ou classe média alta, pode fazer uma doação de roupas e uma tarde de brincadeiras entre crianças negras, “ricas” e pobres. Pode colocar suas crianças pra conviver de verdade com outras crianças negras, independente da situação financeira de cada um delas. Haverá em um primeiro momento uma barreira de classe entre elas (ou não), mas a barreira logo será quebrada porque criança é muito mais flexível e despida de preconceitos que adultos.

Quando a gente se aproxima e interage com mais pessoas negras temos a oportunidade de conviver com pessoas que passam pro situações parecidas com a nossas. Há uma maior identificação e reconhecimento pois estamos entre pares.

baile dos crespinhos

Outra forma é também frequentar outros bairros. Se no seu bairro só tem gente branca, porque não ir almoçar um dia em um bairro com mais pessoas negras? A chance de encontrar outros negros no restaurante aumenta consideravelmente. Mesmo que você não vá conversar diretamente com essas pessoas, só a troca de olhares e sorrisos, e as crianças brincando ou vendo outras crianças negras já é super importante.

Precisamos conviver com pessoas negras. Precisamos nos cercar de pessoas negras. Precisamos que nossos filhos tenham amigos negros.

Então, o que você faz pra proporcionar aos seus filhos a convivência com mais pessoas negras? Eles tem muitos amigos negros na escola e nos lugares que frequenta? Já rolou a pergunta do título aí na sua casa? Conta pra gente!

Originally published at A mãe preta.

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Luciana Bento

Preta-mulher-mãe em tempo integral. Mestranda em Educação na USP, especilista en literatura infantil e estudante de astrologia.