Uma carta aberta a Mark Manson

Luca Atalla
7 min readFeb 14, 2016

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Festa no Carnaval? Não Mark, esta é minha mulher, e há dois anos eu estava na Sapucaí fotografando ela e amigos para poder abastecer o acervo inicial da CrayonStock. Existem brasileiros que trabalham arduamente, e eles não são minoria.

Por favor, deixe de generalizações, estereótipos, lugares comuns e preconceitos. Não massacre um país inteiro para ganhar tráfego

Parabéns, Mark Manson.

Nos últimos dias, seu texto “Uma carta aberta ao brasil” viralizou.

A bandeira do Brasil que ilustra seu post começou a pipocar no meu “feed” do Facebook, compartilhada por diversos amigos meus de meios distintos; todos brasileiros, é claro. Acabei seduzido pelo apelo do título e cliquei.

Não te conhecia, apesar de você ser uma celebridade com textos publicados no Huffington Post, CNN Travel e Forbes, entre outros lugares. Vejo que você se orgulha de ter um site de auto-ajuda “baseado na realidade”, uma auto-ajuda “investigada através de um profundo entendimento de psicologia, cultura e um pouco do próprio ridículo.”

Aprendo que você também é autor do livro “Models: Attract Women through honesty”, e que se tornou empresário numa bela noite em 2007 quando uma pessoa “aleatória” lhe ofereceu dinheiro para ajudá-lo a conversar com garotas.

Vamos ao artigo: você começa a análise profunda sobre o Brasil dizendo que o Carnaval acabou, que o ano novo vai finalmente começar, e que você está deixando o Brasil para voltar para o seu país.

Mark, deixa eu te contar uma história: eu tenho 42 anos. Comecei a trabalhar aos 17. Deve ter sido nesta época ou até antes que escutei pela primeira vez esta brincadeira, de que o ano por aqui só começa após o Carnaval.

Não sei você, mas sabe onde eu estava durante o Carnaval?

Trabalhando e estudando, o que é facilmente verificável por alguns companheiros de equipe da CrayonStock, pelos amigos do curso de Ciência de Computação de Harvard (no grupo, brincaram que eu estava programando em vez de ir à folia), e por uma enxurrada de fotos que postei no meu Instagram, fotos que fiz para um livro sobre o Rio de Janeiro que estou editando.

Mark, nós temos algo em comum. Você diz que passou os últimos quatro anos no Brasil, país onde nasci. Passei sete nos EUA, país em que você nasceu.

Mas, diferentemente de você, não me mudei “em busca de festas, lindas praias e garotas”. Eu me mudei para ampliar o alcance da minha missão. Fui para os EUA quando lancei a Gracie Magazine em inglês, em 2006, para ajudar a compartilhar com o norte-americano um patrimônio do nosso país, o Jiu-Jitsu.

Muitos patriotas torceram e torcem o nariz para pessoas como eu, pois temem que o Brasil perca a hegemonia na arte marcial. Não me importo, porque acredito que uma ferramenta como o Jiu-Jitsu, tão poderosa para o ser humano, merece ir para o mundo inteiro, independente das fronteiras que nós arbitrariamente fomos traçando nos últimos 10 mil anos, desde que deixamos de ser nômades.

A culpa é minha

Bem, vamos focar no seu texto. Você diz que sempre te perguntam:

“Por que o Brasil é tão ferrado? Por que os países na Europa e América do Norte são prósperos e seguros enquanto o Brasil continua nesses altos e baixos entre crises década sim, década não?”

E responde que eu sou a resposta.

A culpa é minha.

Isso mesmo. Enquanto você vinha ao Brasil atrás de mulheres, e se divertia à noite, eu virava noites para levar mais uma edição de Gracie Magazine aos leitores.

Mas eu sou o culpado pelos problemas do Brasil.

E aí você ilustra o seu ponto, com um exemplo (hipotético):

Estou com um amigo dirigindo um carro e, por acidente, ele destroi um retrovisor alheio. No dia seguinte, encontro por acaso o dono do carro avariado. Neste momento, enfrento um dilema existencial que responderá os problemas do país.

a. Fico quieto e finjo que não sei de nada para proteger o amigo; ou
b. Digo para o cara que sinto muito e assumo a responsabilidade pelo erro.

De acordo com os seus estudos (?), a maioria dos brasileiros escolheria a opção a. E a maioria dos “gringos” (detesto esta palavra) escolheria a opção b, “pois”, tam tam tam tam, toquem os tambores:

“Nos países mais desenvolvidos o senso de justiça e responsabilidade é mais importante do que qualquer indivíduo. Há uma consciência social onde o todo é mais importante do que o bem-estar de um só. E por ser um dos principais pilares de uma sociedade que funciona, ignorar isso é uma forma de egoísmo.”

É sério isso?

Vou perguntar de novo: é sério isso?

Não vou entrar na sua conjectura, porque o que eu responder que faria não vale absolutamente nada. Como se diz nos EUA, “talk is cheap”.

Mas, fazendo um exercício a la Jared Diamond em “Guns, Germs and Still”, me pergunto: de 10 mil anos para cá, em que momento exatamente o brasileiro teria optado por proteger o amigo em detrimento ao “senso de justiça e responsabilidade”, você sabe me responder? Tem algum conjunto de sais minerais nas nossas terras que nos tornaram da forma que você nos rotula?

Mark, não sei se você sabe, mas o Brasil é o país das capitanias hereditárias. Em um momento de nossa recente história, as terras foram loteados e distribuídas para nobres com relações com a Coroa Portuguesa. Nossa desigualdade social é gigantesca, e começou há 500 anos.

Enquanto os americanos se organizavam e brigavam para não ser explorados pelos ingleses, os brasileiros deram a largada com uma desvantagem brutal.

E agora você joga nas costas dos explorados a responsabilidade por não ter um senso de justiça.

A carapuça não me serviu, se é que você me entende.

Por favor, Mark, me poupe de hipocrisia.

Muitas pessoas nos EUA tentariam reparar o prejuizo alheio no ato, assim como aqui no Brasil, porque são pessoas decentes. Mas o motivo pelo qual talvez outra parte de americanos se somaria ao primeiro grupo e também o faria é porque o seu conterrâneo sabe que se fosse pego posteriormente o dano iria ser bem maior do que pagar pelo retrovisor quebrado.

O americano não anda na linha por conta de senso de justiça e responsabilidade. Quer dizer, não de forma diferente de que um brasileiro, um argentino, um espanhol. Ele anda na linha porque nos EUA as leis são cumpridas, e o grau elevado de punição estimula que as pessoas não desrespeitem as regras.

Nos Emirados Árabes, se você for pego brigando vai para a cadeia por seis meses e toma chicotadas. Não quero entrar no debate se esta punição é severa demais, pois não tenho pretensão de definir a cultura de um povo em poucas linhas, mas a consequência é que não há muitas brigas por lá.

A raça humana mostrou um grande poder nos milhões e milhões de anos que se desenvolveu, o poder de adaptação rápida ao contexto.

De fato, temos muitos problemas, mas um dos maiores é a impunidade. E isto aparentemente está mudando, vide a Operação Lava-Jato. Agora, o empreiteiro pensará duas vezes antes de subornar o (ou, mais propriamente hoje em dia, ceder à extorsão do) administrador. Mas não é porque passou a ter consciência social, é porque viu que pode ser pego e ir em cana (e, claro, o empreiteiro que nunca subornou continuará sem subornar ou aceitar extorsão, por questão de princípios).

Você matou a charada: tudo se resume à vaidade

O seu texto segue, e com ele as pérolas:

“Além disso, seu povo também é muito vaidoso, Brasil. Eu fiquei surpreso quando descobri que dizer que alguém é vaidoso por aqui não é considerado um insulto como é nos Estados Unidos. Esta é uma outra característica particular da sua cultura.”

Boa. Nos EUA não se fala em EGO. Mas vamos nessa, aonde você vai chegar?

“As pessoas por aqui estão muito mais preocupadas com as aparências do que com quem eles realmente são.

Isso explica porque os brasileiros ricos não se importam em pagar três vezes mais por uma roupa de grife ou uma jóia do que deveriam, ou contratam empregadas e babás para fazerem um trabalho que poderia ser feito por eles. É uma forma de se sentirem especiais e parecerem mais ricos. Também é por isso que brasileiros pagam tudo parcelado. Porque eles querem sentir e mostrar que eles podem ter aquela super TV mesmo quando, na realidade, eles não tenham dinheiro para pagar.”

Novamente, é sério?

Você está realmente me dizendo que é por conta da vaidade o brasileiro se endivida, e que isto é uma característica própria nossa?

Você começou a trabalhar em 2007 certo? Já ouviu falar em subprime?

Cartão de crédito certamente você conhece. Pois bem, foi criado nos EUA, na década de 1920.

Os EUA são o país da população endividada, com 18 trilhões de dólares de dívida interna, em abril do ano passado. O americano em geral trabalha para pagar casa, carro, educação etc. E você Mark deve, de acordo com este cálculo, 154k.

Será que o motivo é vaidade também? Pode ser, mas você não pára por aí. De acordo com a sua teoria, a vaidade é a principal causa de assassinato.

Pela seguinte passagem, você devia ser entrevistado por cientistas sociais:

“No fim das contas, esse [vaidade] é o motivo pelo qual um brasileiro que nasceu pobre e sem oportunidades está disposto a matar por causa de uma motocicleta ou sequestrar alguém por algumas centenas de Reais.”

Mark, a maioria da população pobre trabalha, e trabalha duro. Nas favelas, que você deve ter conhecido nos seus passeios turísticos, uma pequena parte infringe as leis. Por favor, não ofenda.

E, sim, você tá certo, existem assaltos, violência, assassinatos. Mas sem ser cientista social te asseguro que isto é uma função muito maior da desigualdade social (somada à impunidade) do que da vaidade.

O jeitinho brasileiro que você condena (e eu também) teria muito menos espaço numa sociedade em que a punição por não cumprimento de leis fosse rápida e severa.

Sou otimista, e acho que estamos caminhando neste sentido.

Mark Manson, não te conheço. Não posso te julgar. Mas você não me conhece, por favor não me julgue.

Lembre-se, nesta sua linha de estereotipação e generalização, a humanidade vem perseguindo povos por muito tempo. Judeus, afro-descendentes, muçulmanos, curdos, hindus, etc.

Para mim, não existe brasileiro, japonês, árabe, americano. Existe raça humana.

Experimente fazer um texto bem simplista que explique por que no nosso país lá do norte (sim, eu também sou cidadão norte-americano) uma pessoa entra com um rifle numa escola ou num cinema e dispara.

Mas cuidado para não ser linchado intelectualmente.

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Luca Atalla

CEO at Gallerr, founder of GracieMag. Jiu-Jitsu Evangelist.