Eu, o Invisível e as drogas.

Lucas Bernardo
6 min readFeb 26, 2020

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Entrei num novo hobby, neste ano, que é reler livros da minha adolescência. Para quem me conheceu entre 13 a 18 anos sabe que era a coisa mais comum do mundo me encontrar com um livro na mão, às vezes, dois.

Eu era o rapaz taciturno que devorava rapidamente as páginas dos livros que lia tão desesperadamente… (referências). E, durante os meus 15 anos, fui presenteado com um lindo livro verde chamado As Vantagens de Ser Invisível.

Um dos livros mais sinceros sobre juventude que já li.

Para quem já leu As Vantagens de Ser Invisível sabe o quanto o personagem principal, Charlie, é um sujeito complexo, confuso e intrigante. Por um tempo, eu identifiquei muitos pensamentos e atitudes minhas com os dele. Charlie é um adolescente que acaba de entrar no ensino médio, não se sente pertencente ao colégio, perdeu um amigo que se matou e está sozinho quase todo tempo e ao longo do tempo se permite conhecer alguns veteranos que serão seus grandes amigos ao longo do seu ano de calouro.

Vi e vejo que me conecto muito com a história de Charlie pelos traumas que ele passou e como ele lidava com eles, visto que eu, Lucas Bernardo, não sabia nem um pouco como lidar pelos momentos que passei nessa fase de calouro do ensino médio e, para poder realmente trazer essa história com suntuosidade, é aqui que eu começo a falar da minha relação com as drogas.

De início, essa relação começou se construir, com maior força, depois de um drástico aumento da presença de traficantes no lugar onde moro. Não é que isso nunca tenha existido, mas tem uma grande diferença de você saber que no fim da rua, virando no beco à esquerda, depois da cerca da casa da Joana, atravessando a linha de trem, chegando num casebre de madeira você pode encontrar pessoas vendendo drogas, outra coisa é saber que essas pessoas estão nas ruas que todos os moradores circulam todos os dias. Assim, a percepção que antes era ocasional passa a ser diária.

Num segundo momento, vi amigos e colegas que jogavam futebol junto comigo, jogavam vídeo game na minha casa e que eram as pessoas que eu saía no fim de semana para dar uns roles pela Baixada Fluminense se tornaram os mais novos traficantes de drogas. É tão estranho lembrar dessa época porque são muitos detalhes envolvidos e, na situação que vou abordar aqui, eu ainda tento juntar algumas peças.

Um desses amigos é uma pessoa que não apenas era um dos meus melhores amigos como também já estudamos na mesma sala de aula e, ao longo dos meus 15 anos, eu o vi sofrer pelos pais que brigavam constantemente, o pai que já bateu em sua mãe e também o espancou e também pelas terceira vez que iria reprovar na escola. Numa determinada vez que retornávamos de uma partida de futebol, ele disse: “Acho que se eu reprovar mais uma vez, eu vou entrar pro tráfico ou ser ator pornô.”, todo mundo riu e logo depois mandamos ele parar de falar bobagens.

“Acho que se eu reprovar mais uma vez, eu vou entrar pro tráfico ou ser ator pornô.”

E, quando olho pra trás, foi a partir desse dia que muita coisa mudou, cada vez menos o via e ele passou a frequentar muitos bailes em favelas que eu nem sequer tinha ouvido o nome. E, pouco tempo depois, um outro amigo me dá a notícia de que ele tinha entrado para o tráfico.

Eu fui alertado pelos meus pais, vizinhos e outros amigos que tinha que cortar todas as relações, pois um rapaz não envolvido com o tráfico não tinha nada o que conversar com um que estivesse. Aí eu achei que tudo estaria terminado.

Um ano depois, eu soube que ele se tornaria pai, a namorada já estava com mais de seis meses de gravidez. Algumas semanas depois de saber disso, eu o encontrei na minha frente quando retornava pra casa já bem tarde vindo do colégio, ele não estava sozinho, tinha um policial o segurando e ele berrando que era inocente, um estudante e trabalhador. Eu congelei naquele momento e quando tive forças para continuar andando, ele me viu e gritou meu nome para confirmar sua história e, talvez, impedir que fosse levado pelo policial. Eu congelei novamente e meu cérebro fervia de tanta dúvida, eu me questionava sobre ajudar alguém que tinha cometido crimes, porém, ao mesmo tempo, seria pai em alguns meses e isso poderia mudá-lo, alguém que era muito jovem e poderia mudar suas atitudes sem ser encarcerado e, já naquela época, eu sabia que esse ambiente não iria “ressocializá-lo” ou dificilmente promoveria uma mudança positiva.

No final, eu não disse nada, ele foi levado e, na real, eu nem sei se o que eu falasse poderia mudar alguma coisa. Depois disso, o que passa a me acompanhar por anos é uma sensação de culpa, fraqueza, desamino e mais culpa. A culpa não vem somente por não ter ficado quieto naquele momento de tensão, mas também por, talvez, ter me oferecido pouco para ajuda-lo nos estudos, ter ouvido e perguntado pouco sobre seus problemas dentro de casa, ter sido o amigo presente nos momentos de diversão, mas evitar ter uma conversa mais profunda por achar que seria careta ou bobagem. Como resultado de tudo que transitava na minha mente, eu comecei a me afastar dos amigos que tinha no ensino médio técnico, tive inúmeras crises de choro e não conseguia falar sobre isso para ninguém.

Antes desse momento e mesmo que nunca tenha sido um usuário de drogas, eu já tinha convivido com os efeitos colaterais disso, por exemplo, ser estrangulado por um policial ou não poder voltar pra casa, pois um tiroteio estava ocorrendo perto de casa. Contudo, foi uma dor extremamente diferente quando isso atingiu pessoas que me circundavam.

Nesse período péssimo da minha vida, eu voltei a ler o livro que já mencionei no início deste texto e foi o momento que criei essa conexão com o Charlie, mas sempre atendo também as diferenças que tínhamos, o Charlie sofreu abuso infantil pela sua tia e eu jamais poderia compreender o trauma que isso causa num ser humano, assim como esse meu amigo que foi preso, por mais que eu tenha tido uma parcela de dor por conta do ocorrido, sempre tive noção que estava sendo mil vezes pior para ele.

Contudo, o Charlie esteve lá para seus amigos, mesmo não sabendo como ajuda-los, um rapaz introvertido como eu que rompeu essa barreira de internalizar seus traumas e começou a se abrir mais com o passar do tempo, e assim teve o apoio de sua família e de profissionais de saúde mental.

Vale sempre lembrar essa mensagem. Façam terapia! (Assistam esse vídeo do Yuri Marçal).

E eu absorvi isso, mas saiba que definitivamente não foi do dia pra noite, pois levou dois anos para que eu começasse a abrir esses problemas para algum amigo meu e quatro anos para que começasse a fazer sessões orientação psicológica. Eu, infelizmente, não encontrei mais esse velho amigo meu, e também não saberei o que pensar, dizer ou como agir se esse momento se apresentar a mim.

O livro As Vantagens de Ser Invisível ainda deixa essa mensagem de que podemos sempre mostrar que podemos amar mais, merecer mais e sermos melhores. Outras situações complicadas já se apresentaram a mim e pude não me sentir culpado e muito útil, na verdade. Assim como, tento sempre mudar nas pequenas atitudes, por exemplo, toda vez em que um amigo meu me faz aquela pergunta clássica: “Como você está?” ou “Tudo bem?”, tento ser o mais sincero possível e falar do que está acontecendo comigo, na minha faculdade, no trabalho, vida amorosa, meus pensamentos e por aí vai, sem responder o famigerado “Tudo bem. E com você?” e, talvez, perdendo ali uma oportunidade de ter uma conversa profunda e muito necessária.

E, no fim dessa minha reflexão, não poderia deixar de citar um das frases do Charlie que representa muito do meu passado, meu presente e, muito provavelmente, o meu futuro.

“Então, esta é a minha vida. E quero que você saiba que sou feliz e triste ao mesmo tempo, e ainda estou tentando entender como posso ser assim. ”

Que nos livremos de nossas culpas e sejamos mais felizes.

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