Jair, o ingrato

Lucas Caetano
4 min readJan 24, 2019

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Ao evitar imprensa, Bolsonaro cospe no prato que comeu

Luciana Coelho / Folhapress

Analisar criticamente a política brasileira é tarefa árdua até mesmo para quem não possui memória curta. Por mais gritantes que sejam alguns fatos, eles costumam sucumbir à efemeridade cotidiana, pois logo surgirão outras novidades a substituí-las.

O tempo pode contribuir para a exclusão, consciente ou não, de conteúdos dos mais diversos matizes, mas tudo consta nos autos. Basta recorrer à checagem, processo tão combatido pela equipe que hoje foge dos microfones.

Ao longo de sua carreira política, Jair Bolsonaro sempre se notabilizou pela ode à ditadura militar, bem como outros discursos autoritários e supressores de minorias de poder. Essa teve de ser a sua arma, já que apenas dois de seus projetos de lei foram aprovados nos 28 anos como deputado federal. E tudo isso correra normalmente, sem interferências da mídia.

A caixa de ressonância aumentou seus níveis propagativos durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff em 2016. Sua fala na Câmara, embora curta, surpreendeu e, principalmente, apresentou em definitivo o capitão da reserva ao País. “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”, declarou Bolsonaro, homenageando o torturador que, entre outras atrocidades, castigava mulheres às vistas dos filhos delas, incluindo várias crianças.

Apologia à tortura é crime, segundo o artigo 287 do Código Penal. Ainda assim, o então parlamentar seguira gozando de liberdade para expor seus pensamentos.

A postura da imprensa que ele hoje tanto critica chancelava e endossava seu comportamento, pois ao mesmo tempo insuflava a opinião pública contra o governo Dilma. Em nenhum momento os oligopólios da comunicação questionaram de forma contundente um movimento baseado em denúncias sem o mínimo de substância. Tanto que pouco depois de assumir o poder, a equipe de Michel Temer conseguiu no Senado a aprovação da lei que permitia realizar pedaladas fiscais, evidenciando um cinismo descomunal. Soma-se isso à recorrente complacência midiática para se constatar o que para muitos já era óbvio: houvera, sim, um golpe de Estado. O resto é história, cujo desenrolar ofereceu ao capitão da reserva a oportunidade de restaurar a “ordem” no Brasil.

Pensar? Bobagem…

Jair Bolsonaro pavimenta seu caminho munido de discursos rasos e ácidos, geralmente eficientes para cativar uma população desacreditada da política tradicional. Soluções simples para problemas complexos são artimanhas comuns em momentos de ruptura institucional. Pensar dá trabalho. E o presidente sabe que “armar” o povo com pensamento significa inserir-lhe a capacidade para questionar; ou seja, futuramente isso seria um tiro no pé. Procure em seus discursos termos como educação de base, desigualdade social e distribuição de renda e perceba que será preciso uma investigação minuciosa para encontrá-los. Por essa razão, em detrimento da presença em debates, ele concede entrevistas exclusivas a emissoras dispostas a uma aliança, onde não há perguntas incômodas, fazendo com que o evento transcorra em ritmo de um bate-papo entre amigos.

Aos demais veículos “grandes”, o mandatário os classifica como inimigos, esquerda, socialistas, comunistas, entre outros adjetivos. São dois pontos a serem destacados neste cenário. O primeiro, algo em tese inadmissível a um presidente e, portanto, passível de ser interpretado também como estratégia premeditada, é a falta de nexo ao atribuir tais conceitos a quem tanto trabalha a favor dos grupos de direita, até por fazerem parte dele. Já o segundo, mais complexo, visa a reposicionar os principais atores da comunicação, promovendo boicotes aos maiores jornais e (à) emissora de televisão em prol da ascensão dos conglomerados pelos quais Bolsonaro e seus pares têm sido amparados quando uma crise os atinge.

Claramente, a segunda parte requer enorme astúcia. Por isso, creio, o político do PSL insiste em fugir dos adversários temperando essa ação com sua verborragia habitual, para que em determinado instante, por uma exaustão que gere assimilação coletiva automática e inconsciente, seu esquema triunfe.

Nada disso apaga, porém, sua ingratidão para com aqueles que foram essenciais à sua catapultagem. Sem a imprensa “comunista”, ele jamais venceria. O presidente deveria saber que as relações de poder sempre são uma via de mão dupla.

Conforme dito no início do texto, tudo consta nos autos. Cabe a nós sermos capazes de descortinar a visão de um passado — diga-se, nada longínquo — para identificar a miríade de contradições que envolve sua figura.

No Fórum Econômico Mundial, em Davos, Bolsonaro tinha a obrigação moral de esclarecer vários pontos sobre suas estratégias políticas nacionais e internacionais. Não o fez, adicionando novos pontos de interrogação em torno de sua imagem perante o mundo. Ao cancelar a entrevista coletiva 40 minutos antes de seu início, o mandatário reforçou sua incapacidade para o pensar. A justificativa fora novamente atrelada à transferência de culpa. Tal razão se deu pela “abordagem antiprofissional” dos jornalistas.

Se antiprofissionalismo consiste em fazer perguntas pertinentes sobre as acusações envolvendo o filho, Flávio — que vão de vultosos depósitos em contas bancárias a relacionamento com milícias — ele não compreende os critérios jornalísticos e sua função de servir ao interesse público. Fugir da responsabilidade significa assumir desconforto ao lidar com o tema. Por que não enfrentá-lo?

Se teme, é porque deve.

Xadrez do Poder

Seguindo o fluxo frenético do tabuleiro político, não tardou para a peça Hamilton Mourão andar algumas casas.

Os acontecimentos recentes escancararam: a figura do vice-presidente vai muito além de uma mera decoração.

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