O game que questiona os videogames

Uma entrevista com Sam Barlow, criador de ‘Her Story’

Lucas Carvalho
5 min readJan 2, 2016

O ano é 1994 e você está explorando os arquivos no banco de dados da polícia de Portsmouth, uma cidade a pouco mais de 100 quilômetros de Londres, na Inglaterra. Seu objetivo é desvendar um assassinato ocorrido poucos anos antes, e, para isso, você deve analisar vídeos com os depoimentos de uma (senão a única) suspeita do crime. Esse é o cenário do game independente Her Story, lançado em 2015 para PC, iPads e iPhones, e em 2016 para Android.

Tudo o que o jogador tem à vista é um monitor de tubo, com direito até a reflexos de iluminação artificial e o som pesado de um gabinete da década de 1990. A interface usada para explorar o banco de dados lembra a de um Windows 95, e seu único recurso é a barra de pesquisas do programa. Para ter acesso às dezenas de vídeos do caso, basta digitar uma palavra­-chave e torcer para que ao menos um dos cinco clipes disponíveis de cada vez traga informações úteis à investigação.

Viva Seifert é a atriz que dá vida à protagonista da história, chamada Hannah Smith. Diante de um policial que nunca vemos ou ouvimos nos vídeos, a personagem oscila entre o medo e a culpa, nervosismo e irritação, enquanto fala sobre o convívio com o marido desaparecido (ou teria ele sido morto?) e levanta mais mistérios do que respostas. O jogador deve estar atento para tudo o que a personagem diz, buscando em suas falas possíveis pistas ou palavras-­chave a serem digitadas na barra de pesquisa do sistema.

Todo o jogo se passa unicamente na área de trabalho desse computador. Nada de cenários e personagens criados por computação gráfica ou captura de movimentos. O jogador não usa armas, poderes especiais ou se movimenta por um mundo aberto. O jogo não oferece detalhes sobre a ambientação e sequer apresenta um tutorial. Nada em Her Story lembra um game convencional, mas ele explora novas possibilidades de narrativa melhor do que qualquer título de grande orçamento da última geração.

Quem assistiu à primeira temporada de True Detective vai notar semelhanças com a ambientação de Her Story. Na série, uma considerável parte do tempo é dedicada aos depoimentos de Woody Harrelson e Matthew McConaughey, aos quais assistimos através de um “vídeo dentro do vídeo”. Esses momentos oferecem o ar de mistério que envolve a trama, e nos fazem questionar o que sabemos sobre esses personagens. Muito semelhante ao game.

Sam Barlow, desenvolvedor responsável por jogos como Silent Hill: Shattered Memories e o clássico cult Aisle (uma aventura por texto que você ainda pode jogar aqui) admite a inspiração na série de TV da HBO para criar Her Story. “Quando eu assisti à primeira temporada de True Detective, já tinha a ideia [para o jogo] na minha cabeça. Mas, de certa forma, a série me deu confiança de que esse tema era bem interessante, de que as pessoas estavam gostando disso”, disse o desenvolvedor, a mim, em uma entrevista realizada em julho de 2015 (para a extinta revista INFO).

A origem do conceito de Her Story, porém, é mais antiga. Quem jogou Silent Hill: Shattered Memories, lançado em 2009 para PS2 e Nintendo Wii, deve se lembrar dos momentos em que o protagonista se encontrava com um psiquiatra. Desde aqueles tempos atuando em um grande estúdio (no caso, a Konami), Barlow já flertava com a ideia de colocar o jogador em uma sala de entrevistas, explorando novas estruturas de jogabilidade, narrativa e diálogo.
“Sempre foi uma coisa que me interessou, mas as publishers nunca gostaram. Eu acho que, em parte, elas reconhecem que essas histórias de detetive quase sempre giram em torno de interações entre pessoas, diálogos e personagens com uma certa profundidade psicológica. E esse tipo de história não é necessariamente ideal para um videogame”, comenta Barlow.

Foi então que o desenvolvedor decidiu apostar no cenário independente para realizar suas experiências narrativas. Her Story se distancia tanto da estrutura padrão dos games atuais que há quem diga que o título sequer pode ser classificado como um videogame. Sam Barlow discorda, com ressalvas.
“Para mim, ‘videogame’ é só uma palavra usada para descrever formas diferentes de entretenimento que acontecem em um computador, e que requerem que a audiência participe para funcionar”, diz o desenvolvedor. “Se Her Story é ou não é um videogame? Bem… certamente, ele não faz muitas coisas que os jogos mais populares fazem, mas, para mim, é o que eu entendo que um videogame deve ser: interativo. Her Story é bem interativo, então é justo chamá-­lo de videogame”.

É possível que muitas pessoas não entendam o sentido do jogo ou fiquem confusas com a ausência de uma narrativa linear. Para Barlow, isso se deve ao fato de que os jogos mais populares tendem a privilegiar o espetáculo em vez da experiência, “viciando” o público em fórmulas simples e repetitivas que não exigem muito esforço intelectual.

O desenvolvedor argumenta que games devem ser capazes de forçar o jogador a gastar alguns neurônios, interagir com a obra e aplicar à ela sua própria interpretação. Ele compara a experiência de jogar Her Story com a de uma visita a uma galeria de arte. “Quando você vai em uma exposição, não existe um momento em que você ‘termina’ de olhar para uma escultura. Você pode ficar lá por horas, pensando nos detalhes e tal, ou você pode parar na frente, dar uma olhada e dizer ‘OK’, e sair andando”.

“Para mim, um videogame se torna muito mais cativante quando nem tudo está amarrado para o jogador. Quando sempre existe algo abaixo da superfície. Obviamente, Her Story não tenta se explicar para os jogadores. Não explica o que se espera que eles façam. O game fica apenas lá e espera até você fazer alguma coisa”, acrescenta Barlow.

O desenvolvedor sugere que o público pense em Her Story como um quebra­cabeça. É possível que você descubra o fim da história, a imagem que se está montando, ainda na metade do processo. Porém, quanto mais você “escava” o banco de dados em busca de informações, mais peças caem sobre o seu colo, deixando a imagem cada vez mais nítida e mais rica em detalhes. O jogo acaba quando sua curiosidade estiver saciada.

Her Story é uma experiência que tenta trazer algo novo à saturada indústria dos games, fazendo o jogador questionar sua própria percepção e o que, afinal, define um videogame.

Reportagem publicada originalmente em INFO.com (17/07/2015)

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