Quadrinistas querem ser reconhecidos no Prêmio Jabuti — mas quadrinhos se misturam com literatura?

Uma discussão sobre o formato e o valor da arte

Lucas Carvalho
6 min readJan 10, 2017

O Publishnews, um dos principais veículos sobre o mercado editorial brasileiro, divulgou hoje um abaixo-assinado suportado por diversos editores, cartunistas e quadrinistas brasileiros que será encaminhado à Câmara Brasileira do Livro (CBL). O objetivo da petição é incluir no Prêmio Jabuti — um dos principais do ramo editorial brasileiro — a categoria “Quadrinhos”.

O texto da carta aberta que acompanha o abaixo-assinado diz que “embora tenham nascido nos jornais e tenham permanecido grande parte de sua história nas bancas de jornais e revistas, os quadrinhos são publicados no formato livro, no Brasil, desde o início do século 20”. Além disso, o regulamento do Prêmio Jabuti diz que “considera-se livro obra intelectual impressa e publicada, com ISBN e ficha catalográfica, impressos no livro”. Não há restrições quanto à linguagem ou estilos, mas apenas ao formato técnico da publicação.

Luis Antônio Torelli, presidente da CBL, disse ao mesmo Publishnews que vê com bons olhos a iniciativa, mas que é preciso esperar uma decisão do conselho curador do Jabuti. A petição já tem quase 800 assinaturas, e tem como meta conquistar 1.000 nomes. A essa altura, o argumento dos apoiadores do projeto é bem claro e não há dúvida de que quadrinhos merecem, sim, ser reconhecidos como um tipo de produção editorial de alto nível, da mesma alçada que obras premiadas como A Resistência (vencedor da categoria Romance no ano passado) e A Casa da Vovó (premiado na categoria Reportagem em 2015).

O que me chamou a atenção neste assunto, porém, foi um outro trecho do abaixo-assinado: “no entanto, quadrinhos são uma forma de expressão artística com linguagem e histórico próprios”. Não há segredo aqui. Como forma de expressão artística, os quadrinhos não são apenas livros ilustrados ou desenhos acompanhados de letras. Trata-se de uma mídia com linguagem, idioma, formato e representações únicas, que a distinguem de qualquer outro tipo de expressão artística. Podem ser publicados em obras de capa dura e 600 páginas ou nas últimas folhas do jornal de domingo. O meio é indiferente ao conteúdo.

Quadrinhos são considerados a “nona arte”, enquanto literatura é considerada por muitos a “sexta arte”. Atrelar uma premiação que historicamente celebra obras literárias a um outro tipo de mídia, os quadrinhos, não seria uma forma de “disfarçar” a nona arte como algo que ela não é? Enfeitar uma mídia como uma arte de “maior importância”? Colocar os gibis para andar com os livros de adultos para que eles pareçam mais sérios?

É claro que esse não é o objetivo da iniciativa, que busca apenas reconhecer os quadrinhos como uma produção editorial digna de menção. Mas o assunto traz à memória o preconceito que essa mídia enfrentou por anos, vista como “cultura de massa” por acadêmicos e defensores da “cultura erudita”. Em Desvendando os Quadrinhos, o pesquisador Scott McCloud diz que, durante boa parte do século XX:

“A expressão ‘história em quadrinhos’ teve conotações tão negativas que muitos profissionais preferem ser conhecidos como ‘ilustradores’, ‘artistas comerciais’ ou, na melhor das hipóteses, ‘cartunistas’.”

Parte do objetivo de McCloud com o livro era, justamente, mostrar como a arte sequencial tem tanto valor quanto qualquer outro tipo de expressão artística. Mas muito tempo se passou desde 1993, quando Desvendando os Quadrinhos foi publicado pela primeira vez. Quadrinhos ganharam cada vez mais reconhecimento como arte de lá para cá, embora ainda seja difícil convencer algumas pessoas mais teimosas — especialmente no Brasil, onde o estudo da arte ainda é restrito e pouco democrático — de que quadrinhos merecem respeito por sua linguagem única. Falei com Wagner Willian, quadrinista, autor de obras como Bulldogma e Lobisomem Sem Barba e um dos idealizadores do abaixo-assinado, sobre esse assunto. E isso foi o que ele me disse:

— Os quadrinhos não precisam de disfarce. Esse tempo de pensar os quadrinhos como arte menor já passou. Joe Sacco, Chris Ware, Rutu Modan, Jiro Taniguchi, Frederik Peeters, Richard Mcguire e tantos outros mundialmente premiados. E não é de agora que surgem em premiações que não são específicas para o mercado das histórias em quadrinhos, um ou outro romance gráfico.

De fato, quadrinhos há tempos já aparecem em outras premiações e também têm suas próprias, no Brasil e no mundo. Não é preciso se esforçar muito para lembrar do Eisner Awards ou do Troféu HQMix, chamados genericamente de “o Oscar dos quadrinhos” mundiais e nacionais, respectivamente. A entrada da categoria Quadrinhos no Prêmio Jabuti obviamente não visa transformar HQs em literatura e nem vice-versa, mas apenas garantir que um prêmio já tão abrangente (há categorias destinadas a fotografia e ilustração, por exemplo) abrace um novo meio.

É o que pensa Sidney Gusman, jornalista que trabalha com quadrinhos há mais de 20 anos, editor do Universo HQ e da Maurício de Sousa Produções (MSP). Seu nome já consta no abaixo-assinado a ser enviado à CBL, mas exatamente seis anos atrás, ele era contra a ideia. Numa matéria publicada no blog da Companhia das Letras em 2011, assinada por Érico Assis, Gusman disse ser contra a criação de uma categoria destinada a quadrinhos no Jabuti, mas também que era a favor de HQs sendo consideradas em outras categorias do prêmio. Falei com ele sobre esse assunto e ele me disse o que o fez mudar de ideia.

— O Brasil não tinha produção suficiente de quadrinho em 2011 pra ter uma categoria própria no Jabuti. Hoje nós temos uma produção mais do que suficiente! Em seis anos o mercado mudou muito. O mercado amadureceu demais, e não falo só das editoras. Tem muito autor que vai poder concorrer ao Jabuti, se fizer os trâmites direitinho, de ter ISBN, ficha catalográfica, e vai poder concorrer como independente. Essa reivindicação passa sim pelo fato de mostrar: gente, olha quanta coisa boa tá sendo feita em quadrinho. E esse material tem sim valor literário! Isso vai fazer muito bem ao mercado de quadrinhos.

Gusman ressalta que a reivindicação não tem a ver com critérios artísticos, mas comerciais. Para o mercado de quadrinhos como um todo, ter HQs reconhecidas no Jabuti é um passo à frente na profissionalização e na evolução da produção brasileira, seja ela de forma independente ou em grandes editoras. Vale também para mostrar, especialmente para o mercado editorial, que vale a pena investir em graphic novels e obras do gênero. Não há submissão às atribuições artísticas mais “altas”, mas apenas o objetivo de mostrar que, enquanto produtos editoriais, não há diferença entre quadrinho e literatura.

A relação dos quadrinhos com outras artes mudou muito com o passar dos anos. Hoje as HQs são adaptadas ao cinema não apenas resgatando personagens e elementos — como faziam os filmes de super-heróis até a década de 1980 — mas, principalmente, como reverência às obras originais. É o caso de Laços, a brilhante graphic novel da MSP estrelando a Turma da Mônica no traço e narrativa dos irmãos Cafaggi, que já está a caminho dos cinemas, em live-action, com a Quintal Digital. Outro caso semelhante, mas trilhando o caminho inverso, é a adaptação em quadrinhos de Dois Irmãos, livro de Milton Hatoun, que rendeu um Eisner para os gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá. Em ambos os casos, mídias diferentes se comunicam e trocam experiências, sem que uma seja rebaixada perante a outra.

Érico Assis, jornalista, tradutor e crítico de quadrinhos, também assina a petição e reitera a ideia de que incluir quadrinhos no Jabuti não é o mesmo que se aliar à literatura na busca por legitimidade. Afinal, mesmo que seja um prêmio comumente associado à prosa literária, não é uma premiação exclusivamente dedicada à arte da palavra. Isso sem falar na discussão acadêmica que envolve a definição do que é “literatura” e se quadrinhos são, de fato, uma “linguagem”.

— Histórias em quadrinhos já concorreram e inclusive já foram premiadas no Jabuti, em categorias como Didático/Paradidático, Adaptação e Ilustração. Acho que deveriam continuar concorrendo nas duas primeiras. Acho errado, porém, quando aparecem na categoria ‘Ilustração’, pois o desenho no quadrinho tem função narrativa e não ilustrativa. A inclusão de uma categoria de Quadrinhos no Jabuti não seria pedir legitimidade da Literatura. Mas é, sim, pedir reconhecimento dos quadrinhos como segmento importante do mercado editorial nacional, com produção, qualidade e vendas de respeito. É isso que o Jabuti, no meu entender, deveria prestigiar.

Assim como o cinema também passou por um período em que era reconhecido como simples entretenimento de massa, eternamente subserviente à “verdadeira arte”, os quadrinhos também já superaram os limites impostos pela ignorância generalizada e são hoje explorados em suas infinitas possibilidades e em toda a sua flexibilidade como meio de expressão e forma de contar histórias.

O Jabuti é um prêmio de visibilidade nacional, e todo tipo de visibilidade que os quadrinhos nacionais possam ter é de extrema importância para o crescimento e para a evolução desse mercado. Quanto mais editoras apostarem no formato, mais a indústria dos quadrinhos tende a crescer. Clique aqui para apoiar o abaixo-assinado.

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