Sem Habilidade e Sem Noção

Uma história sobre a minha, a sua, a nossa incompetência de cada dia

Lucas Carvalho
9 min readOct 2, 2018

Quando eu tinha cerca de 11, 12 anos, eu estava convencido de que tinha descoberto a maior mentira de todos os tempos. Eu descobri que o homem nunca foi à Lua. Que todas aquelas fotos e vídeos eram montagens ou foram feitos num estúdio. Uma grande farsa montada pela NASA para vencer a corrida espacial contra a União Soviética. Toda a verdade estava em sites e vídeos que circulavam pela internet — na época, internet em casa era coisa para poucos no Brasil. Estava tudo ali. Tudo o que Eles, o governo, a escola, a mídia, o Sistema, não queriam que você soubesse. O mundo inteiro foi enganado e eu, com meu acesso à internet e minha inteligência acima da média, havia descoberto a verdade.

E eu tinha provas. Tá vendo aquela foto da bandeira? Como ela pode estar tremulando se na Lua não tem vento? Fotos com penumbra? Como isso é possível, se para isso acontecer, é preciso de mais de uma fonte de luz, e na Lua não há mais nada além do Sol? Distorções nas beiradas das fotografias, filmes analógicos inacreditavelmente capazes de sobreviver fora da Terra e até uma foto do que parecia ser Stanley Kubrick escondido no cenário da falsa Lua. Estava tudo ali. Era incontestável.

Não estava na TV, mas estava na internet — este submundo em que verdades ocultas estão apenas esperando para serem reveladas. E eu não descobri isso sozinho. Não existia Facebook nem WhatsApp na época, mas existia o Orkut. Eu me reunia com outros “despertos” como eu em comunidades que compartilhavam textos, fotos e vídeos desmontando a farsa da viagem à Lua. A maioria, como eu, jovens e adolescentes revoltados com a descoberta do século. Como podiam ter mentido para nós por tanto tempo? O mundo estava coberto de mentirar e nós é que iríamos expor esta farsa para todos. Os libertadores, era o que seríamos.

Até que um dia, num dos tópicos daquela comunidade, apareceu esse cara.

Eu não lembro o nome dele, acho que era Alex ou algo assim. Um nome curto. Ele chamava a atenção naquela comunidade porque era diferente de todos nós. Ele escrevia com um respeito impressionante às regras gramaticais da língua portuguesa. Sem abreviações como “vc” ou “pq”. Ele usava as vírgulas nos lugares certos e começava toda frase com uma letra maiúscula. E, principalmente, ele não parecia ter 12 anos. Era um homem bem mais velho, pela foto parecia ter em torno de 40 anos. E, segundo o seu perfil no Orkut, era professor de física. Nada a ver com o restante de nós. Não tinha ninguém ali com ensino superior completo na área de ciências da natureza.

Mas ele não estava naquele fórum para divulgar provas de que o homem nunca foi à Lua. Pelo contrário. O objetivo dele ali era só causar discórdia. Ele entrava em cada tópico e respondia a cada post com um textão detalhando como todos nós estávamos errados. Ele explorava cada falha na nossa argumentação com fatos e números que eram difíceis de negar. Citava estudos, fórmulas e cientistas que poucos de nós já havíamos ouvido falar. Seu domínio da língua portuguesa, educação e paciência para responder a cada adolescente que vinha com um link negando as missões Apollo eram impressionantes.

A princípio, eu agi como todos os meus colegas conspiracionistas: resisti. Tirei sarro. Retruquei com piadas de gosto duvidoso. Usei argumentos que, eu sabia, eram falhos, mas era tudo o que eu tinha. Não lhe concedi a “vitória” naquele jogo de quem-tem-mais-razão, pelo menos não na frente dos outros membros da comunidade. Mas nos dias seguintes ao “encontro” com Alex, eu comecei a me afastar do grupo. Parei de postar com tanta frequência e, após algum tempo, deixei também de ler o que os outros postavam. Até abandonar a comunidade por completo.

Eu não queria admitir. Mas eu saí daquela comunidade porque ele tinha razão. Ele tinha toda a razão. Aquele cara era um professor de física, tinha o dobro da minha idade, ensino superior e mestrado. E de todos os argumentos que ele apresentou naquelas discussões, um nunca saiu da minha cabeça: “como você, um pré-adolescente no meio do ensino fundamental, descobriu um segredo que nenhum dos engenheiros e especialistas da URSS sequer desconfiou em todos esses anos?”. Fazia todo o sentido (sem falar em tudo o que ele ensinou sobre leis da física, que por si só desmentiam toda aquela teoria da conspiração). Eu finalmente percebi o quão presunçoso e inocente eu fui ao acreditar naquela maluquice toda. E aquilo mudou muita coisa na minha vida.

Quando eu vejo hoje a galera falando que a ditadura não foi tão ruim assim, que a Terra é plana, que nazismo era de esquerda, que o aquecimento global não existe e toda essa bobagem, eu compadeço. Porque sei de onde vêm essas ideias. Vêm daquela sensação gostosa de ter descoberto uma “VERDADE”, de ter descoberto um segredo que ninguém mais conhece. A mesma sensação que eu tive quando “descobri” que o homem nunca foi à Lua. A origem disso está numa presunção que muitos de nós temos: a de que possuímos uma inteligência acima da média. É a mesma coisa que leva pessoas que não entendem nada de futebol a julgar as decisões de um técnico com 20 anos de carreira. Ou o que leva uma pessoa que nunca leu um livro da História ou Ciência Política na vida a sair colocando rótulos de “comunista” ou “nazista” em tudo o que vê pela frente. Ou o que leva alguém que não entende nada de física ou astronomia a duvidar da viagem do homem à Lua. O Brasil tem 200 milhões de técnicos de futebol, médicos, presidentes e astrônomos.

E isso tem nome.

Chama-se Efeito Dunning-Kruger, em referência a Justin Kruger e David Dunning, dois pesquisadores do departamento de psicologia da Universidade de Cornell que, em 1999, publicaram um estudo intitulado: Sem Habilidade e Sem Noção: como dificuldades em reconhecer a própria incompetência levam uma pessoa a auto-avaliações infladas. (para ser mais preciso, o título original é Unskilled and Unaware of It, o que também pode ser traduzido como “Não Qualificado e Sem Consciência Disto”, mas achei que “Sem Habilidade e Sem Noção” soava melhor)

“Por que pessoas incompetentes pensam que são incríveis”

Kruger e Dunning contam, logo na introdução do seu estudo, a curiosa história de McArthur Wheeler. Em 1995, ele entrou em dois bancos de Pittsburgh em plena luz do dia, sem nem disfarçar ou usar máscaras. Foi preso horas depois, no mesmo dia, quando as imagens das câmeras de segurança dos bancos já mostravam o rosto dele em toda tela de TV do estado. Quando confrontado com essas imagens pela polícia, Wheeler ficou incrédulo, dizendo: “mas eu usei o suco”. Aparentemente, o ladrão frustrado ouviu falar que se você passar suco de limão no rosto, você fica invisível a câmeras de segurança.

Pois é.

A história de Wheeler e a minha história com teorias da conspiração parecem distantes uma da outra, mas não são. Segundo Kruger e Dunning, “as pessoas tendem a ter visões excessivamente favoráveis a respeito de suas habilidades em diversos domínios sociais e intelectuais”, “mas a incompetência delas lhes rouba a capacidade metacognitiva de perceber” que estão sendo idiotas (essa parte, fora das aspas, não são palavras dos autores, mas minhas). E isso é o que eu e minha turma de conspiracionistas, o maluco que acha que o Holocausto não existiu e o tiozinho que se lançou num foguete caseiro para provar que a Terra é plana temos em comum. A nossa incompetência é tão grande que deu a volta no mundo e nos deixou confiantes de que somos uns gênios.

Mas como Kruger e Dunning chegaram a essa conclusão? Os dois partiram do pressuposto de que a habilidade cognitiva necessária para dominar um assunto é a mesma habilidade necessária para reconhecer falhas num determinado assunto. Por exemplo: você precisa saber que 2+2=4 para perceber que tem algo errado na conta 2+2=5. Você precisa manjar muito de língua portuguesa para perceber quando alguém usou uma vírgula no lugar errado. Então, os pesquisadores colocaram um grupo de universitários para responder a alguns testes de matemática, raciocínio lógico e gramática. O resultado: quanto mais baixa a nota que uma pessoa tirava, mais ela achava que tinha acertado tudo. E, além disso, a mesma pessoa de nota baixa era incapaz de identificar onde ela errou e onde seus colegas acertaram.

O mais curioso disso tudo é que essa ilusão de superioridade pode acometer qualquer um, porque todo mundo tem alguma deficiência em algum assunto. Ninguém consegue ser prêmio Nobel em literatura, física, biologia e artes plásticas no mesmo ano. Não é coisa de mulher, de homem, de pobre, de rico, do pós-graduado ou do sem diploma.

Qualquer um pode sofrer dessa síndrome-do-acima-da-média.

Pois bem, o estudo de Kruger e Dunning prova cientificamente que, quanto mais ignorante, mais incapaz a gente é de notar nossa própria ignorância. Ou, como diria o Prof. Jirafales no clássico Chaves, “somente os idiotas têm sempre certeza do que dizem”. Mas como escapar do Efeito Dunning-Kruger? Em média, pessoas tendem a reconhecer seus erros uma vez que são capazes de enxergá-los. Após terminar um curso rápido de lógica de programação, por exemplo, qualquer um pode olhar para trás e perceber que o que pensava ser verdade antes era, na verdade, pura ignorância. Só que nem todo mundo acha que precisa fazer o tal curso. É também por isso que, quanto mais experiente uma pessoa é num determinado assunto, menos certeza ela tem a respeito da sua habilidade e menos confiança ela possui de estar sempre certa.

“Como foi que você, um pré-adolescente no meio do ensino fundamental, descobriu um segredo que nenhum dos engenheiros e especialistas da URSS sequer desconfiou em todos esses anos?”

Aquela pergunta do Alex mexeu comigo porque abriu na minha mente uma possibilidade que eu não havia considerado: e se eu estiver errado? Como eu posso ter tanta certeza de que eu estou certo? O conflito com uma pessoa absurdamente mais preparada e qualificada do que eu evidenciou a minha deficiência e a minha prepotência de achar que eu tinha a habilidade cognitiva necessária para superar até os mais brilhantes cientistas do mundo. Isso sem nunca ter sequer lido um livro de física até o final. Eu tive um choque de realidade ao perceber que eu NÃO SOU TUDO ISSO AÍ NÃO. O cara dedicou a vida dele a estudar os fenômenos da natureza na Terra e no espaço e eu, que nunca nem li O Idiota, de Dostoiévski, acho que sei mais do que ele.

E isso a gente vê por toda parte. Não é só no adolescente que quer explicar a Lua para um astrônomo. É o Alexandre Frota que fica no Twitter ensinando pedagogia, são os youtubers que querem explicar 500 anos de história do Brasil em 60 minutos, os comentaristas de Facebook que querem explicar o nazismo à Embaixada da Alemanha e — estes são os melhores — analfabetos políticos que querem explicar política na internet. Todos incapazes de notar a profundidade da sua ignorância, incapazes de olhar para si mesmos e pensar: “peraí, será que eu tenho qualificação para falar disso?”.

Eu tive uma professora na faculdade de Jornalismo que dizia que “o papel do jornalista é ouvir os dois lados da história… e duvidar dos dois”. Ao longo da carreira, eu aprendi a valiosa lição de que o jornalista é um especialista em variedades, mas um eterno ignorante. Ninguém nasce sabendo nem tem obrigação de saber tudo. Nosso trabalho é aprender, descobrir coisas, falar com quem sabe e compartilhar esse conhecimento e essa informação com as outras pessoas. Eu nem sempre soube que baterias de smartphone são compostas de produtos químicos a um passo de explodir — até que eu falei com uma especialista no assunto e ela me explicou. Eu nem sempre soube o que os militares haviam feito com o Brasil durante a ditadura, até que eu li livros e conversei com especialistas que estudam o assunto há décadas. Eu aprendi um pouco com todo mundo que cruzou meu caminho nesses anos de jornalismo, e isso não é exclusividade da minha profissão.

Não é preciso ser jornalista para ter a humildade de reconhecer que a gente não é tão acima da média quanto a gente pensa que é. Não é vergonha dizer “eu não sei” quando questionado a respeito de algum assunto peçonhento. A cultura da internet e o medo de perder o bonde (fear of missing out) fizeram de todos nós um bando de pseudo-especialistas em tudo. Mas não somos. Não é com um vídeo de 15 minutos no YouTube que você vai estar preparado para discutir macroeconomia. Não é com um tweet do Olavo de Carvalho que você vai estar pronto para discutir ciência política. Não é com correntes do WhatsApp que você está municiado para bater de frente com seu professor de história.

Tenha noção. Somente os idiotas têm sempre certeza do que dizem. E eu tenho certeza absoluta disso.

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