Uma breve história (alternativa) do Oscar

Ou: para que servem os prêmios do cinema

Lucas Carvalho
8 min readFeb 26, 2016

Considere os nomes a seguir: Stanley Kubrick, François Truffaut, Ingmar Bergman, Andrei Tarkovsky, Alfred Hitchcock, Yasujiro Ozu e Michel Hazanavicius. Todos grandes diretores que influenciaram gerações de cineastas por seus métodos e suas técnicas, revolucionando, de uma maneira ou de outra, a arte de se fazer cinema. Correto? Nem todos, na verdade. Michel Hazanavicius construiu a maior parte de sua carreira como diretor e roteirista de TV, e nunca fez nada mais marcante do que O Artista, um filme americano com atores franceses lançado em 2011. Ainda assim, ele é o único da lista que já ganhou um Oscar.

Não é curioso que autores renomados nunca tenham levado uma estatueta para casa, e que um cineasta pouco conhecido ou impactante para a indústria o tenha? E o que dizer do ano (1941) em que Cidadão Kane, um clássico indiscutível do cinema americano, foi esnobado pela Academia, que preferiu premiar Como Era Verde o Meu Vale com o Oscar de melhor filme do ano anterior? A importância do primeiro em comparação ao segundo é, no mínimo, insuperável, o que apenas torna a situação ainda mais constrangedora mesmo tantos anos depois.

Não se trata de dizer qual é o “melhor filme”, já que este é um conceito muito subjetivo e que pode variar de acordo com a bagagem cultural e as preferências do espectador ou crítico. Mas é inegável o fato de que, até hoje, filmes como Cidadão Kane, Laranja Mecânica, Um Corpo que Cai e outros clássicos ainda são lembrados pelo imaginário coletivo e insistentemente estudados por escolas de cinema e arte em todo o mundo. Já O Artista e Como Era Verde o Meu Vale , por mais que sejam obras muito bem feitas, caíram no esquecimento pouco tempo depois de suas premiações. Sequer aparecem nas listas de melhores filmes de todos os tempos do IMDb, Rotten Tomatoes ou da revista Sight & Sound, cujo ranking é elaborado pelo voto de profissionais da indústria.

A principal questão por trás dessa realidade é, no fim das contas, o papel do Oscar no mercado do cinema. Embora seja reconhecido mundialmente, o prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas é, basicamente, um evento norte-americano. Filmes de fora dos EUA caem sempre na genérica categoria de “Melhor Filme em Linguagem Estrangeira”, como se o inglês fosse o único, ou o mais importante, idioma da sétima arte. E como Akira Kurosawa, Roberto Rossellini, Glauber Rocha, Pedro Almodóvar, Jean-Luc Godard, Sergei Eisenstein e tantos outros já nos provaram, essa não é a verdade. O cinema é uma arte mundial, enquanto o Oscar é uma celebração da indústria americana.

Isso é notável quando percebemos o quanto o evento é cercado pelo espetáculo midiático, com emissoras de TV acompanhando ao vivo e celebrando atores e atrizes no “tapete vermelho” da premiação, com seus vestidos de luxo, penteados e smokings ganhando mais atenção do que os respectivos filmes. Tudo é uma grande festa, feita para enaltecer celebridades e a cultura americana diante das audiências ao redor do mundo. Com essa posição de destaque na cultura pop, o Oscar deveria, sim, dedicar ao menos parte de sua estimada importância àquilo que é realmente relevante no cinema, o que desafia estigmas e marca a História da arte, derrubando barreiras do preconceito, atravessando fronteiras políticas e servindo como palco para que artistas das mais diversas vertentes possam ter seu holofote. Em outras palavras, o Oscar deveria democratizar a arte do cinema, e não celebrar um punhado de produtores de Hollywood.

Stanley Kubrick, indiscutivelmente um dos maiores cineastas de todos os tempos, nunca ganhou um Oscar

Essa realidade se reflete no padrão dos filmes selecionados todos os anos. Obras com metáforas metalinguísticas, que discutem a própria Hollywood pelo prisma (vejam só) da própria Hollywood, sempre têm espaço na cerimônia, por exemplo. É o caso do já citado O Artista, de 2011, e o clássico Crepúsculo dos Deuses, de 1950: dois filmes que retratam o abandono de artistas do cinema mudo frente à revolução do cinema falado na década de 1920. O ano passado também viu um desses filmes ganhar destaque, com Birdman, de Alejandro G. Iñárritu, e seu discurso sobre o valor da arte sob o olhar dos críticos e do mercado de blockbusters.

Outros gêneros também parecem ter lugar cativo na cerimônia, como os dramas motivacionais (Menina de Ouro, O Discurso do Rei, O Jogo da Imitação, entre tantos outros) e as declarações de patriotismo dos EUA pós-11 de setembro (Guerra ao Terror, Sniper Americano, A Hora Mais Escura, etc). Não é coincidência ou mérito artístico o que faz esses filmes serem lembrados ano após ano pela Academia, mas sim o status do chamado “Oscar bait”, isto é, o respeito a uma série de padrões técnicos, estéticos e comerciais que os colocam num nível um pouco “acima” dos filmes pipoca de ação e comédia, mas ainda menos eruditos do que aquelas produções independentes lançadas em circuito fechado.

Um exemplo ainda mais claro disso é o calendário desses “filmes de Oscar”. Nos EUA, longas com potencial para ganhar prêmios geralmente chegam aos cinemas no segundo semestre do ano, de modo que fiquem mais “frescos” na memória dos membros da Academia — como foi o caso dos recentes Steve Jobs (outubro), A Grande Aposta (dezembro) e Spotlight: Segredos Revelados (novembro). Já no Brasil, as distribuidoras seguram o lançamento desses filmes para até fevereiro do ano seguinte, quando a lista oficial é finalmente divulgada. Desse modo, os filmes podem chegar aos cinemas com a famosa frase “indicado a X Oscars” estampada nos pôsteres e trailers. Trata-se de um método básico do marketing, não é teoria da conspiração. Você não está comprando apenas um produto, mas uma experiência exclusiva: a de ver um filme considerado “melhor” do que aquele sucesso de bilheteria que todo mundo foi ver, como Star Wars: O Despertar da Força.

A “selfie” do Oscar 2014: quando o cinema ficou em segundo plano, e o show ficou em primeiro

O Oscar é um prêmio extremamente importante para a indústria, não há dúvida disso. Muitos cineastas e atores ganharam projeção internacional com uma simples indicação, do mesmo modo que filmes excepcionais ganham exibições em muito mais salas de cinema por conta de uma lembrança da Academia. Esses casos são exceções à regra, é verdade, mas são recorrentes o bastante para que Hollywood não perca totalmente o seu interesse. O problema é o que a indústria americana faz com essa importância e essa exposição que o Oscar oferece, especialmente — e não há maneira de falar sobre o Oscar sem tocar nesse assunto — no que diz respeito à diversidade étnica e cultural dos concorrentes.

Você certamente ouviu falar da polêmica campanha #OscarSoWhite (se não, clique aqui para saber mais). O boicote promovido por artistas negros à cerimônia deste ano fez com que as redes sociais discutissem os méritos dos concorrentes e a discriminação racial dentro da indústria. Mas o que motivou o surgimento da polêmica? Será que atores e autores negros estão simplesmente se sentindo preteridos, mesmo não tendo feito filmes à altura das exigências da Academia, e isso nada tem a ver com questões raciais? Ou será que o problema é mais profundo do que o Oscar? Fato é que a premiação é apenas um reflexo polido de como a indústria funciona nos bastidores — esta sim, preconceituosa e pautada por padrões étnicos.

Se é difícil para você acreditar nisso, basta puxar pela memória quantos super-heróis negros você conhece e comparar com a quantidade de heróis brancos nos quadrinhos, no cinema e na TV. Ou ainda quantos video-games permitem ao jogador controlar um personagem afro-descendente. Negar a existência de uma discriminação étnica no “show business” é o mesmo que pensar que artistas caucasianos têm, naturalmente, enraizados em seu DNA, mais talento do que artistas negros, e que estes são menos capazes de realizar grandes performances. Como se o talento escolhesse etnia ou cor de pele, e a raça superior fosse a raça branca. É óbvio que isso não é verdade.

Como já vimos acima, talento sequer é um atributo levado em consideração pela Academia, já que, para receber uma indicação, basta seguir uma série de diretrizes técnicas (drama-motivacional-de-época-patriota…). Você pode argumentar que filmes como Straight Outta Compton e Um Homem Entre Gigantes , estrelados por atores negros e pautados por temas raciais, não são “bons” o bastante para concorrer com Mad Max e O Regresso em 2016, já que estes são filmes muito mais primorosos tecnicamente. Mas Spotlight: Segredos Revelados é um concorrente a altura do Oscar? Brooklyn é? Sem diminuir o valor desses filmes, é óbvio que eles estão ali para preencher vagas, e não por seus méritos. O que motiva a indicação de um filme ao Oscar não é qualidade, mas representatividade, ou o quanto os membros votantes da Academia se relacionam com os personagens e as tramas expostas na tela grande. E em matéria de representatividade diversa, a Academia tem falhado miseravelmente.

Como a história do garoto que ficou animadíssimo com um boneco do Finn, de Star Wars, por ser “pretinho igual a ele” (clique aqui se não sabe do que estou falando), permitir que diferentes públicos se sintam representados na tela do cinema é muito importante para a valorização da identidade desses públicos. O cinema deve ser inclusivo, aceitar heróis e também heroínas, de múltiplas etnias e origens; deve contar histórias sobre quando o racismo fazia parte dos fundamentos da sociedade ocidental (12 Anos de Escravidão), sobre o surgimento das questões de gênero (A Garota Dinamarquesa), o papel da mulher em um mundo dominado por homens (Mad Max: Estrada da Fúria), as guerras esquecidas na África (Beasts of no Nation) e a desigualdade social na América Latina (Que Horas Ela Volta?), entre outros temas sensíveis para a famigerada “elite branca”. O Oscar pode ser uma importante ferramenta nessa luta pela representatividade na cultura pop, mas não tem sido usado com essa finalidade.

Hattie McDaniel: primeira afro-americana a ganhar um Oscar recebeu seu prêmio em um hotel que proibia explicitamente a entrada de negros

Nada disso quer dizer que o Oscar não tem valor algum. Apesar de todos os seus “defeitos”, a festa é, sim, uma bela celebração da indústria em seus diferentes aspectos. E, afinal de contas, que fã de cinema não gosta de ver seus artistas favoritos em outro ambiente que não o set de filmagem? Como foi dito acima, o Oscar é de fato um evento de extrema importância para o cinema mundial, mesmo que pelos motivos errados. Só não se pode superestimá-lo, acreditar que se trata do máximo que o estudo da sétima arte tem a oferecer ao seu público, ou que os filmes concorrentes são a última palavra em maestria cinematográfica.

O Oscar é um mercado fechado, uma etiqueta que acompanha produtos “premium” para um público diferente daquele que gosta de consumir entretenimento despretensioso. Filmes de Oscar são produtos assim como os blockbusters de ação e comédia são produtos. Ambos são feitos para sustentar uma indústria e são produzidos por profissionais qualificados e dedicados em suas respectivas áreas. Um filme de Oscar não vale mais do que uma adaptação dos quadrinhos ou a de um livro infanto-juvenil, mas apenas mira em um público-alvo diferente.

Do mesmo modo, nenhum prêmio é suficiente para estimar o valor de uma obra de arte. Tampouco se pode medir a “qualidade” de um filme pelo número de ingressos vendidos, como a História cansou de nos ensinar, pois um produto que vende bem nem sempre é, necessariamente, um bom produto. Cinema, como as artes plásticas, o teatro e a literatura, só depende de um reconhecimento: o seu. Faça bom proveito.

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