Por que ‘O Segredo de Brokeback Mountain’ nunca vai envelhecer?
Há quase 15 anos, os cinemas americanos recebiam ‘O Segredo de Brokeback Mountain’. Dirigido por Ang Lee e roteirizado por Diana Ossanna e Larry McMurtry — todos concorreram ao Oscar no ano seguinte — o longa cumpriu o propósito de toda obra de arte: apreciação, polêmica, choque, catarse e resistência. Não necessariamente nessa ordem.
Baseado em um conto homônimo de Annie Proulx, o longa narra a história de Ennis Del Mar (Heath Ledger) e Jack Twist (Jake Gyllenhaal). A história se inicia em 1963, quando ambos são contratados para cuidar de um rebanho de ovelhas na montanha de Brokeback. Isolados do mundo durante alguns meses, Ennis e Jack nutrem uma relação gradual.
Contar amores impossíveis é um dos passatempos favoritos do cinema. Duas pessoas que se amam mas que não podem ficar juntas, seja por razões familiares, políticas, ou simples desencontros de vida. Romeu e Julieta que o digam.
Atenção! Esse texto definitivamente tem spoilers!
Mas Brokeback Mountain vai além. A começar pelo envolvimento de dois caubóis em um cenário western, elementos já bem conhecidos nas produções norte-americanas nos filmes de faroeste e no imaginário social. Ang Lee não desconstrói nenhum desses elementos, pelo contrário, ele aproveita de cada um.
“Love is a force of nature”
O início da relação de Ennis e Jack é cunhado no silêncio, em trocas de olhares e movimentos tensos, como se algum gesto exagerado pudesse colocar tudo a perder. Muito do sucesso do longa se deve à competência do elenco, que entrega um trabalho nada menos que imortal.
Ennis é um personagem retraído e constantemente sério. Ele aparenta estar sempre se protegendo de um combate que nunca vai acontecer. A postura tensa revela uma introspecção que reflete diretamente em como ele expressa seus sentimentos — no caso, não expressando. Ennis encontra conforto no silêncio, e justamente por isso, ao falar, sua boca mal se abre, como se aquele fosse o maior esforço do mundo naquele momento. Durante o filme, nós não sabemos se o personagem prefere não falar sobre seus sentimentos, ou se ele mesmo não entende. Jack, por outro lado, é comunicativo e expressa seus desejos de diversas formas.
Quando os meses de trabalho chegam ao fim, ambos estão envolvidos emocional e sexualmente. No entanto, vemos pela primeira vez um recurso utilizado pelos dois quando as palavras não são suficientes: a violência física. Assim, Ennis e Jack seguem suas vidas separados e com uma última lembrança marcada em sangue — até o momento.
Ennis se casa com Alma, personagem interpretada pela brilhante Michelle Williams. O casal tem duas filhas, Alma Jr e Jenny. Mas, nem mesmo a vida pobre dos dois é capaz de superar a grande tragédia de um casamento onde uma das partes não se comunica. Ennis, que já não entendia seus sentimentos, agora soma uma vida de “não” ao seu grande repertório de negações. Alma se esforça para ser a melhor esposa e mãe, mas a infelicidade é implacável.
Jack se casa com Lureen, filha de um magnata do ramo agrícola. A personagem é interpretada pela também brilhante Anne Hathaway. O casal tem um filho e toda estabilidade financeira que faltou para Ennis. No entanto, o sogro de Jack faz questão de pontuar que nada daquilo foi fruto do trabalho do personagem de Gyllenhaal.
Nesse momento, a direção de arte é admirável ao apresentar a casa de Ennis e Alma sempre em tons frios, como se todos os personagens estivessem presos em uma existência torturante. Por outro lado, a casa de Jack e Lureen é vívida e bem decorada. É provável que o intuito de Ang Lee tenha sido apenas de mostrar o disparate financeiro, afinal, a felicidade não estava em nenhum dos lares.
“I bet”
Quatro anos após o fatídico dia na montanha Brokeback, Jack envia um postal para Ennis dizendo que passaria por ali e o convida para revisitar o passado. Ao se reencontrarem, os dois se beijam com uma paixão palpável. Alma acaba vendo tudo, mas mantém o segredo do marido com ela. Nesse momento, vemos a personagem de Williams passar anos na companhia da infelicidade.
E por falar em tempo, ‘O Segredo de Brokeback Mountain’ acontece em grandes intervalos de anos. Basicamente, marcado pelos encontros de Jack e Ennis, como se esse fosse o momento onde, de fato, a vida acontecesse para ambos. O tom do longa é contemplativo e utiliza das paisagens bucólicas e naturais para compor sua identidade.
O romance de Jack e Ennis é, infelizmente, marcado por grandes e abruptas interrupções. Jack insiste em largar tudo para que ambos possam viver juntos, embora nós nunca saibamos até que ponto aquela sugestão representava algo que poderia ter acontecido ou apenas uma idealização. Ennis, no entanto, é categórico e não gosta da ideia de estar longe das filhas.
Acontece que apenas os encontros nunca bastaram para o personagem de Gyllenhaal. Por isso, ele se envolve sexualmente com outros homens. Ennis, por outro lado, jamais demonstrou interesse em outra pessoa do mesmo sexo. Seja por conta de sua constante repressão consigo mesmo, ou pelo fato de seu único amor ter sido Jack, não há como saber.
Após anos de desencontros, Ennis recebe a notícia de que Jack faleceu. Em uma cena emblemática o personagem de Legder liga pra Lureen, que tenta sustentar uma impassividade diplomática, e narra o motivo da morte de Twist: um pneu explodiu em seu rosto, enquanto ele o trocava. Durante a ligação, Ennis visualiza Jack sendo brutalmente espancado por três homens. A real versão da morte dele é outro ponto que não há como saber.
O ponto alto da cena é o momento em que nós percebemos que Lureen sabe de tudo e precisa, naquele momento, encarar duras verdades que preferiu ignorar durante anos.
Após a conversa, Ennis vai até a casa onde os pais de Jack moravam e se oferece para levar as cinzas até a montanha de Brokeback. A mãe de Jack o convida para ir até o quarto do rapaz, onde Ennis encontra a jaqueta ainda manchada do sangue de ambos, fruto da primeira briga. Em uma cena de esmagar o coração de qualquer um, Ennis abraça a jaqueta e chora todos os sentimentos guardados e perdidos.
Outro grande ponto alto do longa é a mãe de Jack Twist, interpretada pela veterana Roberta Maxwell, que diz tudo o que precisa apenas com um olhar marejado.
“All we have now is Brokeback Mountain”
‘O Segredo de Brokeback Mountain’ é um filme perfeito para o seu tempo, não importa a época. Se fosse feito há 30 anos ou daqui a 100, ainda seria o mesmo, porque seu grande trunfo está na história. Ang Lee utilizou de narrativas que poderiam ser carregadas de estereótipos mas escolheu por não usar nenhum.
Assim, durante 134 minutos nós podemos nos identificar com as dores de cada personagem. Apesar de Heath Legder e Jake Gyllenhaal estamparam a capa, todo o elenco formado de ilustres conhecidos do público é fundamental para construção do que nós vemos.
Nada em ‘Brokeback Mountain’ é por acaso. Gyllenhaal já havia estrelado Donnie Darko, Williams já contava com Dawson’s Creek em seu currículo, Hathaway já havia sido a princesa de Genóvia em O Diário da Princesa e, por fim, Legder foi Patrick Verona, em 10 Coisas que Eu Odeio em Você. O fato de Ang Lee contar com um elenco já reconhecido por suas participações em produções mainstream com certeza trouxe um maior público ao cinema.
O filme também se envolveu em polêmicas à época. Em 2008, ao ser exibido pela Rai 2, um canal italiano, o longa teve várias cenas cortadas, incluindo momentos em que Jack e Ennis apenas se beijam e confidenciam amor.
O longa arrecadou 178 milhões de dólares e levou diversos prêmios, incluindo melhor filme e direção no Globo de Ouro e no BAFTA. No Oscar de 2006, recebeu 8 indicações, inclusive a de “melhor filme”, que acabou perdendo para Crash — No Limite. Mas, levou três estatuetas, sendo essas “Melhor Direção”, “Melhor Roteiro Adaptado” e “Melhor Trilha Sonora”.
Mas, o legado deixado pelo filme é e sempre vai ser maior que qualquer premiação ou polêmica. ‘O Segredo de Brokeback Mountain’ não envelhece porque ele permitiu que outros filmes com a mesma temática viessem depois. Assim, quando vemos Jack e Ennis se escondendo para viver o amor, também acompanhamos o retrato de uma sociedade intolerante e que não se cansa de censurar simples atos de amor.
Em um mundo ideal, talvez os dois não precisassem se esconder na montanha Brokeback. Mas como nós temos um fraco para grandes tragédias e amores impossíveis, Jack Twist e Ennis del Mar fazem companhia para Romeu e Julieta em mais uma grande história de amor interrompida pela vida.
No Brasil, o filme está disponível no serviço de streaming do Telecine.
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