Entenda o papel de Pokémon GO nos conflitos de Hong Kong
Como o jogo da Niantic se tornou uma estratégia política popular
Talvez essa notícia possa parecer bizarra, mas acredite se quiser: manifestantes de Hong Kong estão usando Pokémon GO para planejar suas rebeliões. Isso é muito Black Mirror, eu sei, mas até que faz sentido; na região-autônoma chinesa as coisas não andam tão calmas.
Resumindo bastante: o que está rolando em Hong Kong?
Não é que a população honconguesa simplesmente resolveu lidar com a repressão governamental por meio de uma batalha entre um Charizard e um Nidoking (o que seria bem engraçado, por sinal). Mas o que está acontecendo por lá envolve algo mais sério… um histórico de dominação.
Tudo começou quando a ilha de Hong Kong foi conquistada pelo Império Britânico ao final da Guerra do Ópio, em 1842. Isso mudou pra caramba a forma como as coisas funcionavam por lá, fazendo com que a ilha seguisse um caminho bem diferente da China continental nos próximos séculos.
Na verdade, isso foi ficar mais evidente durante a Guerra Fria, em especial na década de 1950 (época em que rolava a tensa Guerra da Coreia), quando Hong Kong recebeu bastante apoio dos blocos capitalistas e a China Maoista começou a dar os seus primeiros passos como regime ditatorial socialista vigente até hoje.
E em meio a todas essas diferenças, em 1997 os britânicos devolveram a soberania de Hong Kong ao governo chinês (como se “o contrato de dominância” houvesse acabado), mas a ilhazinha capitalista continuou com certa independência. Na verdade, ela entrou no que chamam de princípio “1 país, 2 sistemas”.
Isso significa que apesar de ter uma certa autonomia para algumas coisas, ainda era dependente da China para outras. Um exemplo de região que também tem a mesma situação é a península de Macau, ex-colônia portuguesa devolvida à China em 1999. Taiwan foi a única região autônoma que não aceitou esse esquema e (coincidentemente?) a que mais sofre repressões e conflitos pesados até hoje.
No ocorrido atual de Hong Kong, a treta que começou envolve uma lei de extradição de suspeitos. O governo quer mover honcongueses suspeitos de crime para serem julgados em Pequim; o povo considerou isso um ato de submissão à soberania chinesa.
Os protestos de agora já movimentaram milhões de pessoas às ruas (estima-se que 1 a cada 7 cidadãos do território participaram ativamente das manifestações) clamando para que a lei fosse reprovada, e acredite: conseguiram! No entanto, ainda há muitos cidadãos (em especial jovens) protestando para que a atual chefe do executivo, Carrie Lam, seja deposta.
Mas qual é a relação disso tudo com o jogo Pokémon GO?
Eu sei, você deve estar se perguntando: “Ué, e COMO Pokémon GO entra nisso?” — Bom, agora que você está bem contextualizado, eu posso explicar. Como qualquer protesto, algumas coisas eventualmente saem do controle e as autoridades começam a ficar bastante em cima.
E é aí que aparece o game da Niantic. Isso porque o jogo é uma febre no país, existem até estabelecimentos feitos exclusivamente para os jogadores. Em outras palavras: não seria estranho ver as pessoas marcando na internet de se encontrarem para capturar alguns Bulbassauros em determinada localização.
E foi exatamente isso que aconteceu. Através das redes sociais, alguns jovens combinaram os locais em que iriam se encontrar, divulgando o evento como se fosse uma jogatina coletiva em busca de Pokémon.
O pior é que não é a primeira vez que isso acontece: em 2016, um grupo honconguês de Facebook intitulado “ People’s Wall News” já havia levado manifestantes pró-democracia a um local específico (no caso, a área de Mong Kok) utilizando Pokémon GO como desculpa. O mesmo aconteceu no grupo “Hong Kong is not China”, que indicava como local de encontro para a jogatina o Tuen Mun Park.
Um manifestante de 20 anos identificado como “KK” disse que a estratégia é para evitar repressões e censuras. Ele também alegou que o uso da internet contribui para uma comunicação mais instantânea e efetiva.
“Se disséssemos que iríamos a um protesto não autorizado, isso teria dado evidências à polícia contra nós”
Com a estratégia, o bordão mais famoso de Pokémon está sendo contrariado: “Gotta Catch Em All” (“Vamos pegá-los todos”). Em meio a fugas e gás lacrimogêneo, é a comunicação via aplicativos digitais que está salvando a pele desses protestantes.
O medo da população honconguesa é compreensível. Vale lembrar que em 2014 houve o chamado Movimento Umbrella a favor da democracia e, tragicamente, várias pessoas acabaram sendo presas sob o pretexto de “incitarem a revolta”.
O cenário atual já é bem parecido: desde junho foram mais de 900 pessoas presas, incluindo (nesta quinta-feira, dia 29 de agosto de 2019) um dos líderes do movimento ativista pró-democracia, Joshua Wong.
Enfim, a história toda infelizmente vai muito além de dominar ginásios ou capturar Pokémons raros. É uma fase difícil para o povo desse pequeno território asiático que só não quer ser aglutinado pela dominância da China.
E isso não tem a ver com querer voltar ao domínio britânico, e sim tentar conseguir um apoio internacional quanto a ser um país independente. Até por conta disso que os manifestantes intitulam o movimento como “de natureza sem liderança”: ele é uma postura do povo honconguês.