Entenda o papel de Pokémon GO nos conflitos de Hong Kong

Como o jogo da Niantic se tornou uma estratégia política popular

Lucas Lunardi
5 min readAug 30, 2019

Talvez essa notícia possa parecer bizarra, mas acredite se quiser: manifestantes de Hong Kong estão usando Pokémon GO para planejar suas rebeliões. Isso é muito Black Mirror, eu sei, mas até que faz sentido; na região-autônoma chinesa as coisas não andam tão calmas.

Aparentemente tem bastante FarFetch’d por lá (talvez seja para compensar a ausência no resto do mundo)

Resumindo bastante: o que está rolando em Hong Kong?

Não é que a população honconguesa simplesmente resolveu lidar com a repressão governamental por meio de uma batalha entre um Charizard e um Nidoking (o que seria bem engraçado, por sinal). Mas o que está acontecendo por lá envolve algo mais sério… um histórico de dominação.

Navios que na época eram da China Imperial (dinastia Qing) sofrendo ataques da marinha britânica durante a Guerra do Ópio — Imagem: Alamy Stock Photo

Tudo começou quando a ilha de Hong Kong foi conquistada pelo Império Britânico ao final da Guerra do Ópio, em 1842. Isso mudou pra caramba a forma como as coisas funcionavam por lá, fazendo com que a ilha seguisse um caminho bem diferente da China continental nos próximos séculos.

Na verdade, isso foi ficar mais evidente durante a Guerra Fria, em especial na década de 1950 (época em que rolava a tensa Guerra da Coreia), quando Hong Kong recebeu bastante apoio dos blocos capitalistas e a China Maoista começou a dar os seus primeiros passos como regime ditatorial socialista vigente até hoje.

Hong Kong se tornara uma pulga capitalista incomodando este grande cão socialista — Imagem: worldatlas; cores alteradas por Lucas Lunardi

E em meio a todas essas diferenças, em 1997 os britânicos devolveram a soberania de Hong Kong ao governo chinês (como se “o contrato de dominância” houvesse acabado), mas a ilhazinha capitalista continuou com certa independência. Na verdade, ela entrou no que chamam de princípio “1 país, 2 sistemas”.

Isso significa que apesar de ter uma certa autonomia para algumas coisas, ainda era dependente da China para outras. Um exemplo de região que também tem a mesma situação é a península de Macau, ex-colônia portuguesa devolvida à China em 1999. Taiwan foi a única região autônoma que não aceitou esse esquema e (coincidentemente?) a que mais sofre repressões e conflitos pesados até hoje.

(Retratação de como o tal “2 países, 1 sistema” é aplicado, segundo os críticos de sua disfuncionalidade)

No ocorrido atual de Hong Kong, a treta que começou envolve uma lei de extradição de suspeitos. O governo quer mover honcongueses suspeitos de crime para serem julgados em Pequim; o povo considerou isso um ato de submissão à soberania chinesa.

Após ter iniciado o processo de aprovação da lei, Lam voltou atrás. O povo continua descontente e preocupado com os riscos à democracia.

Os protestos de agora já movimentaram milhões de pessoas às ruas (estima-se que 1 a cada 7 cidadãos do território participaram ativamente das manifestações) clamando para que a lei fosse reprovada, e acredite: conseguiram! No entanto, ainda há muitos cidadãos (em especial jovens) protestando para que a atual chefe do executivo, Carrie Lam, seja deposta.

Mas qual é a relação disso tudo com o jogo Pokémon GO?

Eu sei, você deve estar se perguntando: “Ué, e COMO Pokémon GO entra nisso?” — Bom, agora que você está bem contextualizado, eu posso explicar. Como qualquer protesto, algumas coisas eventualmente saem do controle e as autoridades começam a ficar bastante em cima.

E é aí que aparece o game da Niantic. Isso porque o jogo é uma febre no país, existem até estabelecimentos feitos exclusivamente para os jogadores. Em outras palavras: não seria estranho ver as pessoas marcando na internet de se encontrarem para capturar alguns Bulbassauros em determinada localização.

Quem desconfiaria de um jogo que envolve monstrinhos fofos, não é mesmo? — Foto: Getty Images

E foi exatamente isso que aconteceu. Através das redes sociais, alguns jovens combinaram os locais em que iriam se encontrar, divulgando o evento como se fosse uma jogatina coletiva em busca de Pokémon.

O pior é que não é a primeira vez que isso acontece: em 2016, um grupo honconguês de Facebook intitulado “ People’s Wall News” já havia levado manifestantes pró-democracia a um local específico (no caso, a área de Mong Kok) utilizando Pokémon GO como desculpa. O mesmo aconteceu no grupo “Hong Kong is not China”, que indicava como local de encontro para a jogatina o Tuen Mun Park.

A estratégia foi funcional, mas não deve ter alegrado tanto os administradores de páginas que realmente estavam interessadas em promover encontros para jogar Pokémon GO.

Um manifestante de 20 anos identificado como “KK” disse que a estratégia é para evitar repressões e censuras. Ele também alegou que o uso da internet contribui para uma comunicação mais instantânea e efetiva.

“Se disséssemos que iríamos a um protesto não autorizado, isso teria dado evidências à polícia contra nós”

Com a estratégia, o bordão mais famoso de Pokémon está sendo contrariado: “Gotta Catch Em All” (“Vamos pegá-los todos”). Em meio a fugas e gás lacrimogêneo, é a comunicação via aplicativos digitais que está salvando a pele desses protestantes.

O medo da população honconguesa é compreensível. Vale lembrar que em 2014 houve o chamado Movimento Umbrella a favor da democracia e, tragicamente, várias pessoas acabaram sendo presas sob o pretexto de “incitarem a revolta”.

O cenário atual já é bem parecido: desde junho foram mais de 900 pessoas presas, incluindo (nesta quinta-feira, dia 29 de agosto de 2019) um dos líderes do movimento ativista pró-democracia, Joshua Wong.

O estudante de Ciências Sociais já foi preso 3 vezes e segue na luta contra o domínio de Pequim

Enfim, a história toda infelizmente vai muito além de dominar ginásios ou capturar Pokémons raros. É uma fase difícil para o povo desse pequeno território asiático que só não quer ser aglutinado pela dominância da China.

E isso não tem a ver com querer voltar ao domínio britânico, e sim tentar conseguir um apoio internacional quanto a ser um país independente. Até por conta disso que os manifestantes intitulam o movimento como “de natureza sem liderança”: ele é uma postura do povo honconguês.

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Lucas Lunardi

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