Um plano infalível para reformar a previdência brasileira

Lucas Mafaldo
17 min readNov 11, 2018

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Já que o Brasil acaba de eleger um novo presidente, creio que o momento é providencial para retomar uma das minhas ideias-fixas: uma estratégia para fazer uma reforma radical e definitiva da previdência brasileira.

O Brasil tem optado por fazer reformas pela metade — sempre gerando incerteza econômica, prejudicando o crescimento do país e alimentando os conflitos políticos.

A reforma que eu proponha é justamente o contrário: ela é como arrancar um band-aids de repente — não é agradável, mas resolve o problema de modo permanente.

Como nós vamos percorrer muito terreno, organizei o texto a seguir em três seções, adicionando um breve resumo executivo ao final.

  1. Princípios de um sistema ideal
  2. O funcionamento do sistema
  3. A transição
  1. Princípios de um sistema ideal

O grande erro do sistema atual é tentar fazer coisas demais ao mesmo tempo. As pessoas esperam que a previdência resolva desigualdades de gênero, que redistribua renda e que sirva de poupança para o futuro. Mesmo se concordássemos que todos esses objetivos são válidos, deveríamos concordar também que não é uma boa política misturá-los todos no mesmo pacote — pois, ao fazê-lo, criamos uma complexidade imensa no sistema que torna difícil avaliar se cada um desses objetivos estão sendo atingidos corretamente.

Por isso esse motivo, creio que é importante discutir quatro objetivos diferentes que estão agrupados na previdência pra mostrar porque devemos separá-los. Os objetivos que estão misturados são os seguintes: (i) desigualdades de gênero e classe profissional; (ii) desigualdade de renda; (iii) assistência social; (iv) seguridade social de fato (previdência e seguros).

Vamos por parte…

1.1. Desigualdade de gênero e classe profissional

Como sabemos, as pessoas atualmente podem se aposentar com idades e benefícios diferentes dependendo da carreira ou do gênero. Sei que a seguinte tese é polêmica, mas estou seguro dela: ficaríamos melhor se removêssemos totalmente essas diferenças do sistema previdenciário. A regra deve ser universal e todos os contribuintes devem ter exatamente os mesmos direitos.

A previdência simplesmente não é o mecanismo para lidar com essas desigualdades. Meu argumento é o seguinte: caso um grupo esteja sendo prejudicado no mercado de trabalho, é melhor lidar com essa injustiça agora mesmo e não criar uma lei que oferecerá algum benefício compensatório duas décadas depois — benefício que pode muito bem ser cancelado por uma reforma futura ou que não possa ser acessado caso a pessoa venha a falecer antes de recebê-lo.

Obviamente, há alguns carreiras que dependem de gordos planos previdenciários para atrair funcionários. Porém, isso cria uma complexidade desnecessária tanto para o empregado como para o empregador. É muito melhor que as pessoas possam contar com um sistema universal para terem a flexibilidade de mudarem de carreira. Se uma carreira está com dificuldade de atrair gente, que melhore o salário e as condições de trabalho no presente. É mais simples e mais seguro para todos.

Em resumo, nosso sistema ideal não fará qualquer distinção de gênero e tipo de atividade. Essas diferenças serão resolvidas pela própria dinâmica do mercado de trabalho ou pela justiça no presente.

1.2. Desigualdade de renda

Ao contrário da maioria dos socialista, acredito que a perfeita igualdade de renda é uma utopia destrutiva. Devemos deixar que as pessoas sejam livres para perseguirem maiores lucros sempre que eles vierem por ganhos de produtividade, dentro da lei e dos limites morais básicos.

Ao contrário da maioria dos liberais, acredito que a extrema desigualdade de renda é algo que pode ser aliviado por políticas públicas bem desenhadas — é algo, aliás, que é feito na maior parte dos países desenvolvidos, frequentemente chamado de "capitalistas".

Porém, mesmo acreditando que é possível ter políticas para aliviar a desigualdade de renda, afirmo que a previdência simplesmente não é o lugar para isso. Mais uma vez, estamos tentando lidar com um problema do presente por meio de uma regra que terá efeitos complexos apenas no futuro.

Por isso, nosso sistema ideal também não terá como objetivo realizar redistribuição de renda. Mas ele será desenhado para funcionar em contra-partida com um modo muito eficiente de lidar com a desigualdade de renda: a tributação progressiva.

O sistema de tributação brasileiro é regressivo: ele pesa mais sobre os mais pobres. Um modo de aliviar a desigualdade de renda e, ao mesmo tempo, diminuir o peso do estado sobre a população é reformar o sistema tributário para torná-lo mais progressivo (cobrar a mesma quantidade de impostos, ou até menos, mas aliviando o peso do sistema nos mais pobres).

O sistema previdenciário que apresentaremos a seguir irá funcionar bem em paralelo a um sistema tributário progressivo, mas ele mesmo não terá qualquer componente distributivo — ele não é a ferramenta adequada para isso.

1.3. Assistência social

Eu acredito que prover assistência social — entendida com políticas públicas destinadas a melhorar a situação de vida de populações vulneráveis — é um objetivo muito válido. Porém, ele não possui relação alguma com previdência: previdência é baseada em poupar o excesso de recursos no presente para o futuro, enquanto populações vulneráveis possuem um déficit de recursos no presente — e, portanto, pela própria definição, não podem poupar nada.

Logo, a assistência social deve estar totalmente separada do sistema de previdência social — o que não nos impede de desenharmos um sistema previdenciário que funcionará em paralelo às políticas sociais (voltaremos a esse ponto depois).

O melhor modo de ajudar alguém é não atrapalhar. O governo pode seguir esse princípio ao oferecer isenção tributária às populações vulneráveis. Afinal, um programa social é basicamente o que sobra depois que o governo retira dinheiro da sociedade e gasta uma parte dele com recursos administrativos. Por isso, o ideal seria antes mesmo de criar o programa, deixar mais dinheiro com a sociedade. O que nos leva ao desenho do sistema tributário: devemos criar um taxa de isenção para as pessoas de baixa renda e facilitar a entrada delas no mercado de trabalho.

O sistema previdenciário atual faz exatamente o contrário disso. As várias contribuições sociais que os empregadores precisam pagar diminuem a quantidade de dinheiro que chega ao bolso dos empregados e tornam o mercado de trabalho menos dinâmico e, portanto, com menos oportunidades.

Eis uma estratégia melhor: cancelar todo o sistema complicado e ineficiente de arrecadação tributária que atualmente serve para alimentar o sistema de seguridade social e financiar os programas sociais a partir do orçamento comum. Isso nos permite desenhar um sistema tributário que seja o menos nocivo possível e o mais progressivo possível, evitando criar um trambolho contra-producente.

Depois de ter feito isso, é perfeitamente possível criar programas sociais adicionais. Porém, em vez de fazê-los enquanto "direitos" misturados à previdência, é muito melhor criá-los enquanto programas específicos e restritos, que possam ser avaliados anualmente — com a opção tanto de receberem mais financiamento ou de serem cancelados, caso se mostrem ineficientes.

Isso vai contra a nossa cultura política de engessar todos os programas por meio de indexações e garantias constitucionais — o que é uma péssima prática. É muito melhor dar maior flexibilidade e eficiência aos programas sociais, o que ainda geraria benefícios fiscais que se espalhariam por toda a sociedade.

Em suma: nosso sistema previdenciário ideal não terá nenhuma política social. Ele deixará esse objetivo ao cargo de políticas específicas produzidas pelo parlamento.

1.4. A previdência, finalmente

Chegamos finalmente ao objetivo próprio de um sistema previdenciário. Se quiséssemos ser ainda mais precisos, poderíamos distinguir dois sub-objetivos: (a) criar poupança para o futuro (aposentadoria); (b) criar poupança para emergências (seguro).

Esses dois objetivos realmente cabem no mesmo sistema previdenciário, pois possuem características semelhantes: trata-se de usar um excesso de reservas no presente para lidar com problemas futuros.

E aqui podemos novamente lançar a pergunta: em que medida o governo deve intervir nessa área?

Creio que há um motivo razoável para justificar a intervenção governamental aqui: como vivemos em uma sociedade de bem-estar social, é razoável esperar que as pessoas tenham um mínimo de reservas para evitar que se tornem um peso excessivo para os outros por mera imprudência. Outro argumento (certamente mais polêmico) vem da economia comportamental: mesmo que poupar seja benéfico para o próprio indivíduo que poupa, às vezes precisamos de pequenos incentivos para irmos na direção correta.

Tendo os dois argumentos em mente, considero razoável que o governo incentive a formação de um sistema de seguridade social. Porém, não me parece de modo algum necessário que o governo administre a seguridade social.

Os sistemas privados de seguridade são mais antigos que os sistemas públicos. Além disso, o setor privado de seguros tem avançado enormemente no último século, adquirindo um nível elevadíssimo de sofisticação e produtividade. Enquanto isso, a capacidade estatal brasileira é baixíssima, tendo pouquíssima capacidade prover um serviço eficiente para a população.

Comparando as duas coisas, chego à seguinte conclusão: faz todo o sentido do mundo que o governo crie incentivos e padrões mínimos de seguridade social, mas não precisa ser o próprio governo que irá administrar o programa.

E há precedentes para isso: tanto as contas 401k nos EUA como as contas RRSP no Canadá são belos exemplos de incentivos governamentais para contas-aposentadorias administradas privadamente.

E essa será a base da nossa reforma: criar incentivos para a previdência, transferindo sua administração para a própria sociedade e retirar todos os objetivos não-previdenciários dessa equação (mas deixando que eles possam ser realizados de outro modo).

Com isso em mente, passemos à descrição de como o sistema realmente funcionaria.

2. O funcionamento do sistema

O modo mais fácil de provar a superioridade do novo sistema está na sua simplicidade: enquanto é praticamente impossível explicar todas as regras do sistema atual, o novo sistema é capaz de resumir toda a seguridade social em cinco regras.

2.1. As cinco regras

Toda a seguridade social caberá nas seguintes regras:

1. Todo brasileiro precisa, no mínimo, depositar 15% do seu salário bruto em uma conta-aposentadoria e 5% em uma conta-seguro até o máximo equivalente a uma renda máxima. Esses depósitos serão isentos de tributação.

2. Caso queira, o cidadão pode depositar mais do que o mínimo obrigatório, recebendo a isenção fiscal até o equivalente à renda máxima.

3. O dinheiro depositado na conta-seguro deve ser usado para adquirir um plano de seguro que ofereça uma cobertura mínima.

4. O dinheiro depositado na conta-aposentadoria deve ser investido até os 65 anos, quando será convertido em uma anuidade perpétua que garanta uma renda mínima, podendo sacar o restante.

5. O Ministério de Assistência Social determinará as rendas mínimas e máximas periodicamente. Quem estiver abaixo da renda mínima receberá automaticamente acesso aos programas de assistência social. Quem estiver entre as rendas mínimas e máximas recebe direito à isenção tributária. Quem estiver acima da renda máxima recebe isenção apenas na porção da renda abaixo da renda máxima.

2.2. Como seriam feitos os depósitos

Os depósitos seriam feitos diretamente pelo empregador automaticamente nas contas privadas, sob controle direto dos titulares em uma instituição financeira à escolha dos trabalhadores (eles poderiam também migrar para uma instituição diferente quando quisessem).

Em princípio, a conta-aposentadoria ficaria automaticamente aplicada em títulos do tesouro de longo-prazo. Porém, os titulares poderiam requisitar que a aplicação fosse feito em outros tipos de investimentos.

A conta-seguro ficaria aplicada em uma instituição financeira e só poderia ser usada para contratar seguros que oferecessem um mínimo de cobertura em vários áreas (seguro-desemprego, seguro de vida, seguro para casos de incapacidade profissional). A escolha da empresa ficaria também à critério do trabalhador, sendo também possível migrar para novos planos e novas empresas, também à critério do trabalhador.

As únicas determinações do governo seriam obrigar um patamar mínimo de contribuições (15% e 5%) e oferecer incentivos até um patamar de renda máxima (quem quiser ir além do máximo, pode fazê-lo, mas não receberá incentivos fiscais além desses valores). Isso geraria um sistema simples que teria uma sinergia natural com o sistema tributário e com os programas de assistência social.

Para efeitos de exemplo, digamos que a renda mínima seja 1,000 R$ por mês e a renda máxima 10,000 R$ por mês. Eis alguns exemplos do lado dos depósitos:

  • Quem recebe um salário de 900 R$ irá depositar 135 R$ na conta-aposentadoria e 45 R$ na conta-seguro. Como está abaixo do mínimo, terá automaticamente acesso a programas suplementares para completar a renda.
  • Quem recebe um salário de 2,000 R$ irá depositar 300 R$ na conta-aposentadoria e 100 R$ na conta-seguro. Não será preciso pagar Imposto de Renda sobre esse valor.
  • Quem recebe um salário de 10,000 R$ irá depositar 1,500 R$ na conta-aposentadoria e 500 R$ na conta-seguro. Não será preciso pagar Imposto de Renda sobre esse valor.
  • Quem recebe 20,000 R$ irá depositar apenas 1,500 R$ na conta-aposentadoria e 500 R$ na conta-segura (pois esse é o máximo para receber a isenção do Imposto de Renda). Caso queira investir mais do que o obrigatório, poderá fazê-lo, mas em uma conta de investimento normal, sem isenção tributária.

Vejam que o modelo é extremamente simples e intuitivo: todo mundo compreenderia exatamente quanto deveria pagar e quanto patrimônio estaria acumulando.

E esse é o grande pulo do gato: cada trabalhador estaria efetivamente acumulando patrimônio no próprio nome, longe de qualquer determinação política futura. Esse dinheiro seria do próprio trabalhador, podendo ficar de herança para seus descendentes. Seria, portanto, uma reforma chestertoniana da previdência.

2.3. Como seriam feitos os saques

O dinheiro que estiver aplicado na conta-seguro poderá sair apenas para a aquisição de planos de segurança. Porém, depois de adquirido um plano com uma cobertura mínima, o dinheiro excedente poderia ser aplicado na aquisição de planos mais sofisticados, que oferecessem possibilidade de saque parcial ao longo do tempo. Esse dinheiro também se tornaria parte do patrimônio do trabalhador, podendo ser convertido em seguro de vida e herança para seus descendentes.

O dinheiro que estiver na conta-aposentadoria poderá ser sacado apenas aos 65 anos. Nesse momento, o dinheiro deverá ser utilizado para adquirir uma anuidade perpétua, um instrumento financeiro que fará pagamentos mensais pelo restante da vida do portador. O governo irá estabelecer um nível mínimo de pagamento para garantir uma velhice com dignidade. Se o dinheiro acumulado não for suficiente para atingir esse patamar, o titular será automaticamente inscrito em um programa social.

Caso o valor acumulado seja maior do que o necessário para comprar a renda mínima, o titular terá algumas opções: ele poderá deixar o dinheiro aplicado por mais tempo, poderá sacar o excedente inteiramente ou parcialmente ou poderá comprar uma renda mensal perpétua mais elevada.

Em suma, esse sistema faz três coisas que o atual não faz: (i) garante que todo mundo irá acumular patrimônio de modo objetivo e transparente; (ii) deixará as pessoas livres para acumulá-lo em velocidades diferentes, de acordo com sua produtividade; (iii) irá permitir identificar exatamente quem está em uma situação vulnerável para que os programas sociais possam ir exatamente para quem precisa deles.

Não é coincidência que essa seção é a mais curta do texto: boas regras são regras que toda a população compreende imediatamente. Esse é um sistema intuitivo, igualitário e equitativo.

Passemos ao grande desafio: como sair da complexidade atual para a simplicidade ideal.

3. A transição

Existem dois enormes obstáculos para a transição: um é político outro é financeiro.

O obstáculo político se refere ao fato de que toda reforma será inevitavelmente mais vantajosa para uns do que para outros. Quem perder algo na transição terá um incentivo enorme para pressionar a classe política para sabotar o processo. Além disso, quem está ganhando no sistema atual geralmente é quem tem mais poder — logo, toda reforma tende naturalmente à inação.

Para sair desse impasse, é preciso mostrar que todos ganharão com um sistema mais funcional e que mesmo quem tem privilégios no sistema atual receberá alguma compensação por eles. Parte disso será um esforço de comunicação pública (o que é outro assunto) e parte desenvolver uma boa regra técnica (objetivo desse texto).

O obstáculo financeiro é, de longe, o mais difícil: o sistema atual simplesmente está quebrado. Em vez de acumular reservas no período de bonança, o governo brasileiro torrou todo o dinheiro arrecadado em investimentos duvidosos e se endividou pesadamente. Porém, uma boa regra de transição também pode suavizar esse processo.

3.1. A solução política: o algoritmo da transição

Em geral, as propostas de reforma geralmente possuem uma regra de transição, tanto por uma questão de justiça como para facilitar a adesão das pessoas ao novo sistema. Mas o problema com essas transições parciais é que acabamos com dois sistemas paralelos, aumentando os custos e gerando insatisfação em quem ficou do "lado errado" da reforma.

Por isso, minha proposta é fazer uma transição completa, instantânea e radical: todo mundo passaria imediatamente para o novo sistema de modo permanente.

Obviamente, isso gera um desafio: o novo sistema pressupõe que as pessoas teriam contas-privadas recheadas de dinheiro, enquanto o sistema atual pressupõe que o governo irá garantir pagamentos no futuro. A solução é a seguinte: o governo "pagaria" para as pessoas saírem do sistema atual — em vez de contar com os benefícios futuros, as pessoas receberiam agora mesmo um montante de dinheiro equivalente aos benefícios que o governo está lhe devendo.

Embora isso parece muito complicado, a solução técnica é quase trivial. Em finanças, é razoavelmente simples converter um fluxo de pagamento em um valor total a ser quitado em um único pagamento. Por exemplo, se soubermos que uma pessoa recebe X por mês e tem uma expectativa de Y anos, podemos calcular que o valor presente da sua aposentadoria é Z. Para dar um exemplo mais concreto (aviso: estou chutando os valores só para dar um exemplo): alguém que espera receber 4 mil por mês ao longo dos próximos 20 anos, tem uma "anuidade" que vale perto de 600 mil em valor presente.

Com base nisso, em vez de discutir se a regra atual é ou não justa, o nosso plano simplesmente calcularia toda a dívida implícita no sistema atual e pagaria imediatamente esse valor para cada contribuinte. Seria provavelmente a maior descentralização de recursos da história humana: trilhões em "direitos" vagos e incertos seriam transformados em dinheiro em espécie sob controle direto da população.

Esse pagamento pode ser tanto feito para pessoas que já se aposentaram como para quem ainda está na ativa. Digamos que alguém completou 50% do tempo de serviço necessário para receber uma poupança que terá 600 mil de reais em valor no futuro. Logo, essa pessoa irá receber imediatamente 300 mil que serão transferidos para sua conta-aposentadoria.

Obviamente, isso não será suficiente para convencer todo mundo. Algumas pessoas irão se chatear por ter que receber apenas 50% de um pensão privilegiadíssima. Porém, a maior parte da população perceberá que a decisão será justa. Além disso, isso será até bom para quem está em uma carreira com uma excelente pensão: agora que a pessoa "sacou" sua pensão, ela pode decidir se quer mudar ou não de carreira, já que todas terão as mesmas regras. Isso trará mais flexibilidade ao mercado de trabalho. As carreiras que estavam contando com pensões generosas para atrair funcionários poderão aumentar salários ou oferecer outros benefícios. O mercado se ajustará e todos receberão o que foi acumulado até o momento.

E o melhor de tudo: não será necessário entrar em disputas entre classes profissionais. Em vez de decidir qual categoria irá perder ou ganhar, todos os benefícios atuais serão mantidos e transformados em espécie. Será necessário apenas acionar um algoritmo que irá transformar toda a base de dados da previdência brasileira em dívida ativa do governo — nenhum privilégio acumulado até o momento será cortado, suavizando a tensão política.

O passo seguinte será tecnicamente simples: o governo emitirá vários títulos de dívidas e irá transferí-los diretamente para as contas-aposentadoria dos contribuintes.

3.2. A solução fiscal: a etapa redutora do algoritmo

Embora a transição seja tecnicamente simples, ela será extremamente difícil do ponto de vista fiscal. Como o governo não possuí reservas para fazer a transição, sua dívida irá disparar nas alturas.

Por isso, não será possível dar esse último passo sem uma reforma enorme do estado, economizando dinheiro em outras áreas e talvez até mesmo aumentando a arrecadação.

Essa é a parte dolorosa. Mas ela tem jeito.

3.2.1. O modelo da transição: passando de fluxo para estoque

No sistema atual, o governo possui uma dívida implícita com os contribuintes e, em troca dela, ele arrecada uma série de contribuições sociais. Ou seja, ele tem um fluxo negativo de caixa (os pagamentos de benefícios) e um fluxo positivo (a arrecadação das contribuições).

Todo esse sistema é, no entanto, extremamente ineficiente. Em primeiro lugar, as contribuições são um péssimo modo de arrecadar recursos da sociedade, pois custam tempo e dinheiro tanto para serem pagas como para serem fiscalizadas. Os tributos não são neutros: dependendo do modo como eles são desenhados, eles podem causar maiores ou menores perdas econômicas e serem mais regressivos (pesar mais nos pobres) ou mais progressivos (pesar mais nos ricos). Portanto, uma vantagem da nossa reforma é simplesmente cancelar todas as contribuições que atualmente vão para os programas sociais, liberando o governo para arrecadar mais recursos por meio de mecanismos menos destrutivos.

O segundo problema é que os pagamentos estão desconectados dos benefícios. Logo, quando a economia vai bem, o governo simplesmente não acumula o excedente. Por isso, quando há uma crise econômica ou demográfica, o governo fica sem recursos para fazer os pagamentos, sendo forçado a cortar em áreas estratégicas.

Por isso, o nosso plano irá cancelar os dois lados da equação: nem o governo irá mais fazer pagamentos (exceto para alguns pagamentos que não possam ser imediatamente transferidos para a sociedade), nem ele irá arrecadar mais recursos. Ou seja, ele vai zerar tanto o fluxo negativo quanto o fluxo positivo relacionado à previdência. Como o sistema atualmente está passando por um déficit, isso significa que se livrar dos dois lados da equação será positivo para o lado fiscal do governo: ele terá um excedente no seu fluxo de caixa a partir do mês seguinte à conclusão da reforma.

Porém, para fazer isso, ele irá emitir uma quantidade gigantesca de dívidas para quitar os compromissos com quem está saindo do sistema (uma espécie de "buy-out" geral). Como a dívida do governo irá aumentar enormemente, isso irá gerar uma pressão macroeconômica considerável na economia brasileira. Os investidores começarão a se perguntar se o país pode sustentar esse novo nível de dívida.

A resposta para esse desafio tem dois aspectos: por um lado, embora seja assustador ver toda a dívida previdenciária em circulação, não se trata de uma dívida realmente nova. É apenas a explicitação de uma dívida que já estava implícita. Logo, não é o valor que deveria nos assustador, mas o fato de que deixamos acumular tantos compromissos implícitos por tanto tempo. Teoricamente, o serviço da dívida deveria ser pago com o excedente de caixa adicional criado pela reforma da previdência.

Por outro lado, nós sabemos que esse não será o caso. Infelizmente, o sistema atual está escondendo uma situação fiscal horrível. Existem aposentadorias multi-milionárias disfarçadas no sistema. Dificilmente o governo poderá quitar todas elas integralmente.

Nesse momento, entra o aspecto doloroso: é preciso cortar benefícios em algum lugar. O governo precisará dar o exemplo, cortando na própria carne. Deverá também vender ativos, para suavizar o peso da dívida. Porém, não me parece que será possível evitar alguns cortes também nos benefícios acumulados.

O procedimento ideal seria o seguinte: o governo faria um pente fino fiscal, tentando economizar em todos os lugares antes de chegar na previdência. Depois que chegasse lá, mais uma vantagem do nosso plano se revelaria: seria bastante fácil, do ponto de vista técnico, fazer a transição "caber" no orçamento do governo.

Afinal, nós já teríamos em mãos um algoritmo que iria converter todos os pagamentos em dívida efetiva. Depois de termos o valor total, poderíamos adicionar mais uma etapa ao algoritmo: realizar um corte de benefícios para fazer a dívida "caber" em um horizonte pagável, o que pode inclusive ser feito com uma regra progressiva

Para ficar mais concreto, eis um exemplo com valores puramente fictícios: digamos que o passivo total da previdência seja de um trilhão. Porém, o governo só possui a capacidade de sustentar o serviço da dívida de 800 bilhões adicionais. Logo, é preciso fazer uma redução de 20% desse passivo. Digamos que o governo consiga arranjar 5% desse valor com venda de ativos e 5% com outros cortes. Sobra um corte de 10% a ser feito no passivo previdenciário. Pode-se estabelecer que os salários que estiverem abaixo da média não serão tocados, enquanto quem estiver na metade de cima receberá sucessivos cortes, até quem estiver no topo (digamos: os 5% com patrimônio maior) receber os cortes mais altos (digamos: 20%).

Todos esses cortes seriam dolorosos em vários sentidos (gerariam animosidade, rejeição da reforma, etc.), mas poderiam também ser calculados por meio de critérios técnicos que evitariam cortes nas populações mais vulneráveis. Além disso, eles poderiam ser feito de um modo que garantiriam a estabilidade fiscal do país — gerando efeitos positivos de longo prazo para todos os brasileiros.

Embora essa etapa seja difícil, essa dificuldade faz parte de toda reforma. A nossa reforma teria a vantagem de tornar essa dificuldade mais técnica e mais visível — o que me parece a única maneira realista de atravessar esse obstáculo.

Resumo

Como o texto ficou pouco longo, eis o resumo executivo:

i. A seguridade social seria separada de outros objetivos (como assistência social e redistribuição de renda) que seriam alcançados por outros meios.

ii. As pessoas teriam contas privadas de seguro e aposentadoria, tendo total controle sobre elas.

iii. Seria obrigatório depositar uma quantidade mínima nessas contas. Esses valores seriam utilizados para calcular quem teria direito à assistência social e isenção tributária.

iv. O governo aplicaria um algoritmo para converter todos os benefícios atuais em dívidas a serem pagas imediatamente, por meio da transferência de títulos públicos para as contas pessoais dos contribuintes.

v. O governo teria que fazer um grande saneamento fiscal para garantir que poderia pagar o serviço da nova dívida. Parte desse saneamento viria de uma etapa do próprio algoritmo, que reduziria o passivo previdenciário de modo mais agressivo em quem estivesse no topo da renda.

vi. Depois que o país atravessasse esses obstáculos, o país teria um sistema extremamente transparente e estável, o que atrairia investidores e provocaria crescimento no longo prazo, beneficiando todos os brasileiros. Seria uma solução definitiva e permanente, que lançaria o Brasil para um novo patamar de desenvolvimento.

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Lucas Mafaldo

Policy Analyst. PhD at UFRN and Postdoc at University of Ottawa. Interested in Philosophy, Politics and Economics.