Perspectiva histórica da arquitetura hostil e seus afluentes modernos

Lucas Clementino
8 min readMar 12, 2017

Originalmente publiquei esse texto na plataforma Arquipélago, o texto é de 2015 e a equipe do Arquipélago produziu um podcast sobre também. Pretendo revisa-lo novamente trazendo novos casos (além de possíveis auto-críticas sobre) ainda este ano. Boa leitura!

Segundo alguns, a datar da década de 90, após uma intensa mistura dos valores éticos e morais com o design urbano na gestão dos espaços públicos modernos, surge um conceito de arquitetura e urbanismo que exclui e limita, “sugerindo que somos cidadãos apenas na medida em que estamos a trabalhar ou a consumir mercadorias diretamente”. Algumas pessoas afirmam que se tratam de medidas para evitar presenças indesejadas, outros dizem que previne a marginalidade e o índice de furtos. Também acredita-se que essa forma de projetar traz mais segurança. No geral, é nomeada de arquitetura hostil e ela é mais antiga do que parece.

Guangzhou, China — Imaginechina/REX

Esse método que limita e influencia os comportamentos sociais determina o afastamento e o desgaste da fluidez da qualidade de vida. A dúvida que surge por trás disso: a quem pertence a cidade?

O conceito de pertencimento se concentra em sentir-se parte. Ao se sentir parte de um conjunto exclui-se aqueles que não estão “con-juntos”. Portanto pertencer remete tanto à inclusão como à exclusão. Um aspecto interessante dessa noção de pertencimento é que ela forma a identidade de pessoas, épocas e cidades.

São Paulo

Entre os anos de 1948 e 1994, na África do Sul, o pertencimento era bem definido. Pertencia a sociedade e desfrutava de seus benefícios aqueles que fossem “Brancos”. O outro grupo, que era excluído pelos desejos do primeiro era conhecido como “Negros”. O segundo grupo que era maioria populacional — porém minoria econômica e política — era oprimido e subjugado.

O fenômeno ficou conhecido como “apartheid” (que significa separação), trouxe violência e um protagonismo internacional do movimento de resistência interna. Uma série de revoltas populares e protestos causaram a prisão de líderes antiapartheid. Conforme a insatisfação se espalhava e se tornava mais violenta, as organizações estatais respondiam com o aumento da repressão e da violência.

Segundo Simon Unwin a arquitetura é uma questão de proposta e avaliação. Para ele arquitetos não lidam com verdades absolutas mas com fantasias (sonhos, proposições filosóficas, manifestos políticos). Para Unwin arquitetos fazem a avaliação do senso comum cotidiano e aplicam sua fantasia sobre o desenho. Traçam ali o desejo de uma sociedade ou parte dela, segundo seu ponto de vista.

Campinas — Tiago Macambira

Com isso os espaços foram modificados e criados para quem pertencia a cidade — no caso os brancos — os melhores edifícios, bairros, praias, e até banheiros. Para os negros, o oposto. Segundo os “Brancos” isso evitava a marginalidade, garantia a segurança, diminuía o índice de furtos, assassinatos e etc.

A história conhece seus ‘nichos’. No início do século XX no Rio de Janeiro, a reforma Pereira Passos e seus objetivos fiéis a modernização do Rio de Janeiro e ao embelezamento da cidade, expulsou e segregou negros antes escravizados em zonas longe dos centros e nas favelas, que tiveram seu início na favela do Valongo e da Providência. Transformações que continuaram e foram se acentuando continuamente explorando, desapropriando e segregando favelas. Todas as vezes a justificativa permaneceu inalterada: evitar a marginalidade, garantir a segurança, diminuir índices de furtos.

“O passado não conhece o seu lugar: ele teima em aparecer no presente”
Mario Quintana

A lição que o apartheid, a segregação dos RJ e tantos outros momentos é clara. Mesmo assim, não foi o suficiente.

Rotterdam

Atualmente, andando pelas cidades presenciamos com cada vez mais frequência a utilização de dispositivos que impedem as pessoas de se sentarem em algum lugar, podem ser espinhos, barras ou até mesmo floreiras. Em praças públicas algumas cidades estão optando por bancos com superfície inclinada, resistente a pichações e desenhados para afastar tanto os sem-teto como os skatistas.

“Num distrito londrino foi pedido um banco chamado Camden. Esculpido por cimento, ele é resistente a pichações e possui a superfície inclinada, a fim de distanciar skatistas. Também em Londres, em frente às Cortes Reais de Justiça, na região, bancos com assentos desiguais que afastam casais e desencorajam a permanência são vistos. Em outros locais há bancos com assentos divididos por apoios de braço. Eles inibem que usuários se deitem. Também forma adotados a pavimentação irregular e câmeras de circuito fechado com autofalantes, que emitem os chamados dispositivos mosquito — sons de alta frequência, só audíveis para um adolescente.”
Ben Quinn, The Guardian | Tradução de Maria Cristina Itokazu, Outras Palavras.

No Rio de Janeiro, em 1998, o prefeito Cesar Maia era acusado de usar creolina para afastar mendigos de zonas mais “turísticas” da cidade. Em 1960 o governador Carlos Lacerda era acusado de afogar mendigos num dos afluentes do rio Guandu.

Atualmente na capital turística do país, as principais medidas tomadas pela prefeitura são a de colocação de pedras pontiaguda sob viadutos e armações de ferro em bancos de praças, empecilho para quem pretende se deitar e para que casais de namorados possam se sentar, além de diminuir calçadas, aumentar os espaços dos automóveis e diminuir os caminhos a pé. O Rio de Janeiro tem uma política muito criticada de “ordem pública”, que prende e agride violentamente ambulantes tradicionais do centro e dos transportes coletivos e pretende ampliar essas medidas para garantir mais uma vez “o combate a marginalidade, a segurança, combater os índices de furtos”.

Londres

Espetos, pedras pontiagudas, tudo parece sair das páginas de um livro de história sobre fortalezas medievais. Mas na verdade trata-se de uma série de atitudes para evitar a permanência dos problemas sociais, excluir cada vez mais e torna a cidade mais “agradável” de ser vista. Com pessoas “seguras” para se olhar e interagir. Sem moradores de rua, sem afetivos namorados, sem subversivos skatistas, sem incomodantes pedintes.

Essa ação não é nova. Segue modelos de gestão do espaço público que retira, pelos princípios morais que a regem, as “feiuras” da sociedade e garante, mais uma vez a segurança, evita a marginalidade e etc.

O maior problema é que, as medidas não trazem soluções efetivas, são paliativos que acabam por gerar mais violência nas cidades.

A escritora Jane Jacobs — que não é arquiteta, urbanista ou jornalista — conseguiu descrever impressionantemente a relação interpessoal das cidades com seus habitantes. Para ela a cidade tem “olhos” e as interações entre a rua, calçada, casas e edifícios com as pessoas tem uma conexão muito íntima.

A escritora defende a dinâmica das ruas das metrópoles, sempre cheias de desconhecidos. Defende a alta densidade e ressalta que os urbanistas tinham que tê-la à vista, estudando o objetivo de fazer as pessoas se sentirem seguras diante dos desconhecidos, pois, quanto mais olhares uma rua recebe, mais segurança ela terá. Mesmo os bairros considerados tranquilos podem se tornar perigosos e não é um guarda municipal que muda as ocorrências na rua.

Para ela, andar numa rua deserta é muito mais terrível do que uma rua movimentada, pois ninguém está olhando. Pouca iluminação, muros altos e até mesmo grandes distâncias sem pessoas causa uma sensação de imprevisibilidade, tudo pode acontecer.

“O balé da boa calçada urbana nunca se repete em outro lugar, e em qualquer lugar está sempre repleto de novas improvisações”
Jane Jacobs

Jane estuou os diferentes tipos de ruas e suas interações com a calçada, levando em conta a integração das crianças, a inclusão universal e a revitalização. Diferentemente de Le Corbusier, que na época experimentava os tipos Cidades-Jardim, com cercas e espaços próprios de recreação, situando seu ideal de cidade bucólica de baixa densidade populacional. A escritora antagonizava defendendo o movimento da rua e a interação dentro e entre os bairros, se preocupava em tornar a cidade viva. Em transformar a desorganização em ordem, ou algumas vezes em enxergar a desorganização como ordem.

Normalmente, a cidade parece impositiva a ponto de nos afastar de nós, dos laços que nos une, parece definir nossa participação nela e não deixar mudanças de fluxos. O problema disso é que as pessoas estão sendo afastadas da cidade para dentro dos prédios. Em bairros nobres como a Barra da Tijuca no Rio de Janeiro, os condomínios fechados são locais seguros afastados do mundo. Na rua os espaços vazios parecem lembrar cidades fantasmas cinematográficas. Carros passam e a rua cresce sobre os pedestres que pedem passagem para chegar a seu destino. Por medo da rua, os muros crescem, por medo do acesso universal as praças, os shoppings centers se lotam.

Circulamos e criticamos os serviços das cidades mas esquecemos de perguntar constantemente: “de quem, a quem e para que ela pertence?”. Cidades são organismos vivos bem intencionados, sabem a quem servem.

Aparentemente a história nos confirma que o caminho excludente das grandes cidades não trouxe resultados positivos. As desigualdades se acumulam e só crescem mostrando que a democracia de acesso e permanência dos espaços é uma discussão mais que necessária para uma gestão urbana democrática, segura e inclusiva. Mais do que nunca as cidades precisam expor seus donos e valores. E ter o poder de criticá-los quando necessário. Acima de tudo a cidade precisa ter um protagonismo de quem a participa, precisa ser inclusiva e discutir seus rumos com quem a circula, não com quem a segrega.

“A tarefa mais importante da vida: começar de novo a cada dia como se aquele fosse o primeiro dia — e, no entanto, reunir e ter à disposição o passado inteiro, com todos os seus resultados e suas lições esquecidas.”
George Simmel

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Lucas Clementino

Graduando de Arquitetura e Urbanismo pela PUC-Rio. 20 anos. Faz parte do Coletivo Bastardos (Coletivo de alunos bolsistas e periféricos da PUC-Rio).