Eu, Okaeri Alice e (minha) identidade.
Desde pequeno eu tenho uma relação muito estranha com meu corpo, ou melhor, minha imagem. Eu sempre chamei isso de disforia de identidade, mas é mais um termo abstrato que o conceito reside na minha cabeça do que algo real e palpável, cheguei até a comentar sobre com minha melhor amiga, que é uma mulher trans, que estranhou eu associar o conceito de disforia com questões fora do guarda-chuva da discussão de gênero e de transgeneridade, mas quando expliquei que já vi outras pessoas falarem sobre o assunto, ela começou a entender a ideia apesar de ainda parecer ficar incomodada com a definição, definição essa que realmente não é importante mas me fez duvidar bastante dos meus sentimentos, ou melhor, refletir bastante sobre o conceito de disforia.
E eu mesmo estranho esse conceito, será MESMO que não tem haver com gênero? Eu me sinto extremamente confuso sobre a questão do gênero, eu não me sinto o homem que fui ensinado a ser e tento sempre me desconstruir, mas pela criação e tratamento é impossivel não ser um homem. Eu sempre lido com essas questões com o clássico “Nah, deixa isso pro Lucas do futuro” ou “Eu já tenho problemas demais, não vou pensar nisso, vai ser só mais um problema.” e acho que muito disso vêm do meu medo de mudar, ou melhor, de descobrir que nunca fui… Exemplo: eu nunca faria uma tatuagem, eu me conheço e sei que eu nunca vou estar satisfeito com algo o suficiente pra escolher ter para sempre algo na minha pele, eu sinto que me arrependeria eventualmente e a idéia de não poder voltar atrás me assusta e bom, talvez seja isso que vêm me afastado de pensar em mim como transgênero. Minha questão com a minha identidade é simples, eu não sinto meu corpo e eu não consigo me imaginar vivendo a vida que eu vivo. Muitas vezes não sinto nem minhas palavras, parece que vivo na minha consciência e me enxergo em terceira pessoa escolhendo ações coerentes para me manter eu, como um jogo de escolhas. Me olho no espelho e não me vejo, me olho em fotos e não me reconheço, meu rosto é apenas um estranho pra mim que eu escolhi deixar aparecer na minha vida.
Isso me lembra quando uma amizade ficou revoltada comigo por me reprimir tanto, especificamente na questão de moda, eu não escolho minhas roupas, uso o que compram pra mim e não sei como eu gostaria de me vestir e até evito usar camiseta de anime por exemplo por medo de como seria percebido, não tenho confiança o suficiente para conviver com os outros.
E todas essas questões me atingem como um trem toda vez que uma relação é quebrada ou em momentos de introspectividade comigo mesmo me observando em terceira pessoa e me perguntando: O que sou eu? O que me define?
E então eu li Okaeri Alice (E antes dele Inside Mari e Aku no Hana, mas vou escrever melhor sobre eles individualmente em outro dia).
Okaeri Alice é a história de três amigos de infância, Yohei, Kei e Yui que envolve uma bifurcação amorosa: Yohei gosta de Yui, Yui gosta de Kei. Após ver o seu melhor amigo beijar a menina que gosta, Yohei se afasta de Kei e Kei acaba tendo que mudar de cidade. No Ensino Médio, os 3 se reencontram mas Kei volta diferente, agora ele performa feminilidade.
Quando eu comecei a ler Okaeri Alice, eu fui esperando ler uma história sobre pessoas trans e suas relações com o gênero, mas fui surpreendido logo no começo com o personagem Kei, que já se anuncia de forma a deixar claro que não é uma mulher trans, apenas cansou de performar masculinidade, cansou de ser homem.
As obras do autor Shuzo Oshimi sempre tiveram comentários vocais sobre papéis de gênero e até pela sua representação meio desesperada das personalidades confusas de suas personagens femininas, Oshimi sempre foi acusado por uma certa parcela dos leitores de se equivocar nas representações femininas e diria que muito disso é pelo seu male gaze, mas parte dessa representação das mulheres como figuras tão assustadoras na visão de seus personagens principais (masculinos, na maior parte) para mim, vem justamente do que mulheres representam pros self-inserts do autor, no caso, confusão. Essa mistificação das figuras vem irônicamente, de seu “male-gaze” e essa relação de gênero com o ponto de vista do autor é para mim, uma forma muito honesta dele debater os temas que tenta debater. Não que não deva se discutir a representação feminina nas obras do Oshimi, mas definitivamente não é o que quero discutir hoje e sim o que essas representações refletem na discussão do mangá.
A todo final de volume, o Oshimi escreve pequenos textos sobre sua relação com gênero e como ele se sentia incapaz de performar masculinidade, era muito frágil, muito antisocial e muito inseguro para tal. Então a sua adolescência começou a se ver preso num barco e a desejar estar em outro barco, o do corpo feminimo. Nas suas próprias análises ele se confundiu com querer ser mulher ou querer deixar de ser homem e ao que dá a entender, até pelo argumento de Okaeri Alice e Inside Mari, que a conclusão chegada foi abandonar o conceito de gênero, apesar de ainda obrigado a performar para os outros.
E eu amo como Okaeri Alice ensaia isso como uma espécie de narrativa interativa com a metáfora de sexualidade que o Oshimi explora nos posfácios de volume. Mas como assim metáfora? A história é bem direta e reta sobre o personagem Yô e muito menos abstrata que Aku no Hana ou Inside Mari (ou mesmo mangas mais antigos e menos aclamados do Oshimi) então onde está a metáfora?
Talvez seja uma visão meio distorcida e pretensiosa minha (hey, o que seria desse processo todo sem a pretensão?), mas refletindo sobre a história, eu diria que tanto o Kei quanto a Mitani, apesar de serem seus próprios personagens, são reflexos do Yô. O Kei é a por parte, o que o Yô que ser, ele é inicialmente, o homem charmoso e popular que executa e performa masculinidade, mas quando o Kei beija a Mitani ele primeiro pergunta “posso ver como me sinto?” e se decepciona. Enquanto isso, Yô corre pra casa para se masturbar pensando no amigo transando com sua amada, vira uma fantasia de desejo e repulsa (bem comum na relação com a pornografia) que o consome e afeta a auto-estima, Yô se sente sujo, ele se desagrada com o que pensa e sente, mas isso só bate como um trem quando ele consegue o que ele quer: namorar a Mitani.
Yô não sabe performar masculinidade, tanto pelo seu jeito inseguro quanto pelo desejo ansioso que tem por ela, não consegue avançar na relação e muito menos consegue o que quer e esperava de Mitani. Nisso o Kei se torna mais influente sobre ele, com o Kei ele não precisa reprimir desejos e nem se preocupar com pressões performáticas, ele pode só relaxar e gozar e se conecta com Kei por isso, mesmo que Kei esteja abusando desses sentimentos reprimidos pra colocar Yô no jogo (e não tem discussão o que o Kei faz é abuso, mas o Oshimi é muito menos preocupado com discutir a moralidade dessas ações e bem mais interessado em discutir as consequências, não tem certo ou errado nos mangas do Oshimi, todo mundo está errado).
Quando ele rejeita espiritualmente Mitani, a mesma se torna uma figura manipulativa bem comum nas obras de Oshimi, similar a Saeki de Aku no Hana, mas eu acho que essa personagem é um oshimi-bait, ela PARECE representar esse papel da mulher confusa e maldosa mas acaba sendo uma das personagens mais vítimas da situação. Isso se evidência pra mim no flashback que mostra o processo dela gostando do Kei, não foi um interesse natural, ela foi lentamente passando a desejar Kei pois ele representa esse homem popular e charmoso que todas desejam. A Mitani pra mim, é o desejo do Yô em muitos sentidos, inclusive nessa idealização da figura feminina por insatisfação com o papel masculino, a Mitani reflete todas essas questões assim como o Kei e Yô mas ao invés de refletir a si mesma, ela chega a conclusão que odeia homens e idealiza uma imagem do Yô punido e humilhado por ser um.
Isso faz parte do próprio processo do Yô, de começar a odiar ser homem e odiar o que isso representa, principalmente no aspecto de desejo sexual que o está controlando e mantendo ele numa relação abusiva apenas pra conseguir sexo fácil com alguém que ele “supostamente” é atraído, a Mitani tem essa reflexão e pelos comentários do Oshimi, ele também. E o mesmo quase beira uma idealização incel de relativizar a figura femininista como um ataque ao ego masculino mas o mesmo fala como ele meio que concorda e isso o faz odiar a si mesmo mais e por isso evita pensar no assunto, assim como o Yô literalmente mete um “morte ao pênis” pra tentar se livrar das responsabilidades e desejos designados a ele pelo vicio em pornografia e idealização feminina. A Mitani passa por esse processo e é representada, inicialmente, como alguém que quer degradar Yô e puni-lo pelos seus desejos, mas eventualmente, ela muda um pouco de foco pra ser menos relacionada ao medo do Yô e do próprio Oshimi e sim para alguém tão confusa e solitária quanto Yô.
Na segunda tentativa de transar, inclusive, ela decide agradar Yô da forma que aprendeu assistindo pornografia, já que na primeira vez conduzindo fez Yô broxar (por não ter segurança o suficiente do seu papel na situação) o que leva a Mitami ter a exata a mesma reação que Kei teve ao beija-la, que é a de insatisfação e indiferença, ilustrando sua repulsa pelo o que se conhece e espera de um homem e uma mulher numa situação ativa destas, de agradar o parceiro e não se envolver completamente.
Posterior a uma série de tentativas , Yô tenta se mutilar (morte ao pênis) e acaba entendendo que quer fugir de tudo envolvendo sua própria masculinidade, assim se tornando um com Kei, seu eu interior, que só podia ser encontrado quando aceitado por Yô. Mitani, aquilo que Yô deseja ser e ter, não consegue se conectar com os personagens e segue em rumo sua vida… Mas nunca sabemos sua conclusão, o que me intriga. O desejo de Yô mudou? A forma com ele enxerga as mulheres mudou? Nunca sabemos, além de que eles mantém contato de vez em quando.
Isso me intriga pra caralho, mas acho que no fim é parte da mensagem sobre como essa transformação que o Yô tinha que passar não deveria ter haver com o outro gênero e sim em como ele vai se despir de si mesmo. Isso tudo é representado de forma maestral pela cena de pintura nua entre Kei e Ren, onde ambos podem se despir de pressões, exitações e papéis. Aqui Kei fala algo emblemático pra mim, ao Ren elogiar seu corpo, Kei assume que não sente nada pelo mesmo e então, ambos se abraçam de forma completamente não-sexual e sentem a pele um do outro. Ao ser pintado por Ren inicialmente, Kei diz que não se enxerga no desenho, mas que ela capturou Yô de forma maestral, pois Kei consegue ver o Yô na imagem mas não a si mesma, já que apenas seu rosto está no desenho. Depois ao ser desenhado nu por Ren, despido de qualquer tipo de viés além da admiração e concentração em capturar o que está a sua frente, Kei consegue se enxergar na pintura, não é sobre o corpo nu, é sobre conseguir encarar o corpo nu sem enxergar visões pré determinadas por etiquetas como “homem” ou “mulher” que Kei tanto rejeita se encaixar.
Acho que essa cena bate em mim que nem um caminhão, porque eu também possuo um desprezo e indiferença com meu corpo, muito pouco da minha auto-estima vem dele, mesmo elogios não passam pelo escudo da autopiedade envolta a minha imagem.
A falta de identidade e de catalogação que Kei tem, me comunica um sentimento muito pessoal que tenho de não conseguir me definir como uma pessoa não-binária, parte por sindrome de impostor, parece toda uma luta que eu não consigo lutar, eu não consigo me despir dos meus desejos e papéis de gênero completamente pois não sei se é quem eu sou, eu apenas não sei o que devo ser ainda. Que bom que Kei sabe e é até simbólico que ele não aparece muito após Yô se entender, pois eles viraram um só numa linda abstração que Oshimi desenha unindo a alma de seus personagens, uma cena completamente sexual e quente mas tão delicada e sensível que pode fazer um adulto chorar ao lembrar de seus momentos mais vulneráveis e sentimentais.
Inclusive teorizo que o nome “Bem vindo de volta, Alice” é um bait pra acharmos que é sobre o Kei ser uma mulher trans e se revela pra mim, uma analogia ao conto do País das Maravilhas, Alice foi, cresceu, diminuiu, cresceu de novo, correu, viu histórias, tomou decisões mas no final, voltou a sua casa com tudo que sempre esteve lá, mas ela? A menina que voltou era a mesma, porém diferente, nunca mais seria igual, mas seria cada vez mais si mesma, bem vinda de volta Alice.
Comentários pessoais:
No fim, esse mangá, assim como outros do Oshimi, me fazem sempre questionar minha relação com a minha identidade. Admito que no minimo, me convenceu a comprar algumas roupas mais chamativas e andrógenas KKKKKKK. Esse texto tem toda uma reflexão pessoal que fico inseguro de expor, mas assim como o mangá, não é sobre uma conclusão e sim sobre iniciar um processo, então me sinto mais livre de me expor dessa forma, sem me definir como algo, apenas discutindo comigo mesmo o que passa nessa fábrica de overthinking.
Eu não escrevo nada a ANOS então esse foi mais um exercício pra tentar me fazer reforçar minha memória e praticar escrita. Eu não quero esquecer esses pensamentos e sentimentos, mesmo que eles mudem, quero lembrar do que senti aqui e agora. Aceito feedbacks!