Análise d’O Castelo Animado (2004)

L. Penha
20 min readFeb 26, 2018

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O Castelo Animado (ou Howl’s Moving Castle, em inglês) é um filme produzido pelos Estúdios Ghibli, dirigido por Hayao Miyazaki, lançado em 2004 e baseado num livro homônimo da escritora inglesa Diana Wynne Jones.

O filme se trata de uma jovem moça que, ao se ver amaldiçoada por uma bruxa, fica com a aparência e corpo de uma idosa de 90 anos e decide ir atrás de um mago conhecido pela sua cidade para tentar quebrar o feitiço lançado pela bruxa. Em busca do mago, ela encontra o seu castelo animado, com patas de galinha que o fazem locomover pelos campos do interior do país. A jovem-idosa se oferece para trabalhar para o mago na esperança de que ele consiga desfazer o feitiço.

Esse é um brevíssimo resumo do filme. Obviamente, o filme contém muito mais personagens e eventos importantes que fazem do enredo complexo e sutil ao mesmo tempo. Cheio de imagens e cenas deslumbrantes, com uma palheta de cores sensacional e uma fotografia de tirar o fôlego, O Castelo Animado é um daqueles novos-clássicos must watch filmes.

Este filme é o meu favorito dos Estúdios Ghibli, pois eu me vi muito na história d’O Castelo Animado e gostei muito dessa análise/interpretação que tive. É preciso dizer que parte dessa análise eu peguei de uma outra fonte — que não consegui encontrar — mas que eu desenvolvi muito mais do que li na fonte original.

Para a análise que me proponho fazer, precisarei descrever com detalhes diversas cenas do filme. Dessa forma, se você ainda assistiu ao filme e pretende um dia, NÃO LEIA O RESTANTE, POIS CONTÉM MUITOS SPOILERS.

A minha tese é: o Castelo Animado se trata da história de um relacionamento amoroso entre a Sophie e o Howl, desde o momento em que eles se conhecem, até o momento em que decidem ficar juntos depois de passar por várias crises e vários problemas. Ou seja, o filme se trata de um amor forte e correspondido, mas complicado.

Uma grande sacada do filme é dar indícios da vida passada de ambos os personagens principais desde o início do filme, mas que só fazem sentido posteriormente. Miyazaki deixa para os telespectadores diversas dicas sobre a vida de Howl antes de Sophie, que irei apontar conforme escrevo essa interpretação.

O filme começa quando Howl salva a Sophie de dois guardas que estavam dando em cima dela, insistindo para que ela ficasse com eles, mesmo a moça claramente demonstrando que não estava interessada. Howl a abraça, finge ser o acompanhante da protagonista e dispensa os guardas. Ela não luta contra esse homem misterioso porque, por algum motivo, se sente segura com ele e, mesmo não o conhecendo, confia no homem. Enquanto caminham para longe deles, Howl diz que “eles não são tão maus”. Essa cena demonstra o primeiro contato que eles tiveram, a primeira vez que se interagiram. É típica a cena de uma mulher sendo paquerada por outros homens, mas esses homens só respeitarem a rejeição dela ao ver que está acompanhada. Além disso, Howl demonstra que eles não faziam aquilo por serem pessoas ruins, mas apenas que eles não souberam reconhecer a recusa.

Na cena seguinte, Howl avisa para Sophie que está sendo perseguido e vigiado. Aparecem monstros gelatinosos com chapéus e os persegue. Howl, como um mago, faz ambos levitarem. Essa cena icônica é uma metáfora para quando nos apaixonamos pela pessoa amada, nos fazendo sentir leve, tranquilos, eletrizantes, empolgados, excitados e tudo isso sem entender muito bem o que esta acontecendo — que é bem a expressão da Sophie demonstra.

Poucos minutos depois, no final do dia, uma mulher muito bem trajada e elegante, perto dos seus 40 anos, aborda Sophie e se mostra como a Bruxa do Vale — menções a ela aconteceram no início do filme. A Bruxa lança uma maldição em Sophie, que deixa de ter uma aparência de uma jovem-adulta perto dos 25 anos para ter a aparência de uma idosa de 90 anos de idade — feia, enrugada, fraca, frágil, suscetível a dores musculares e dos ossos. Nessa cena, a Bruxa do Vale mostra que controla os monstros gelatinosos.

A minha tese é de que o filme inteiro é uma metáfora para o relacionamento entre duas pessoas, nomeadamente Howl e Sophie. Contudo, como eu também já disse, a história incorpora experiências de relacionamentos passados de ambos os personagens. Nessa cena que descrevi, fica claro que os monstros são memórias, a Bruxa do Vale é uma ex-namorada do Howl e a maldição é reflexo de autoimagem, ou seja, como a Sophie se vê frente à ex-namorada da pessoa por quem está apaixonada.

A Bruxa do Vale lança uma maldição na Sophie que deixa de ser uma jovem atraente e passa a ser uma idosa feia — e ela não poderia contar sobre a maldição para ninguém. Essa cena é uma metáfora para algo (não tenho certeza do quê) que a ex do Howl fez que fez a Sophie se enxergar de uma maneira muito ruim, com uma autoestima baixíssima e indefesa — por isso uma idosa. A Bruxa (ou ex-namorada) usa dos monstros, que são memórias, para demonstrar os bons momentos do relacionamento dela com o protagonista. Esses monstros perseguem Howl no início do filme, o que eu interpreto que existe uma dificuldade da Bruxa esquecê-lo, assim como é uma metáfora para ele estar sempre fugindo/tentando evitar suas próprias memórias. Além disso, essa obsessão com o Howl demonstra que ambos tinham um relacionamento complicado, potencialmente abusivo e tóxico, mas que, além de tudo isso, a Bruxa ainda tem sentimentos por ele e decide atacar a Sophie por ela ser uma ameaça para a Bruxa. Sophie, vendo tudo isso e ouvindo aquilo que ela não gostaria de ouvir, tem sua autoestima completamente destruída e ela se vê como uma idosa. Ela não pode contar para ninguém porque, na verdade, Sophie não quer que ninguém a veja como uma figura machucada, triste, feia. É muito importante enfatizar que a imagem de uma senhora de 90 anos é como a Sophie se vê e não como ela de fato se apresenta.

Sophie decide procurar Howl para que ele desfaça a maldição, para que ela tenha novamente o corpo e aparência de uma jovem-adulta. Do momento em que ela sai da sua cidade até o momento que reencontra Howl, ela conhece o Cabeça de Nabo, um espantalho que se mexe sozinho e não fala. Vou deixar o espantalho para o final da análise. Com muita dificuldade e com o auxílio do Cabeça de Nabo, ela entra no Castelo e se depara com Calcifer, o demônio de fogo que serve como motor do Castelo. E o que tudo isso significa? Significa que ela vê no Howl um porto seguro, um lugar que ela se sente segura, um lugar que será curada de seus males. Porém ela esconde suas marcas, seus defeitos, sua baixa autoestima — o que justifica ela entrar no Castelo e fingir ser outra pessoa… e falhar, porque o Howl a reconhece de cara, o que será explicado depois.

PARA! Dê um pause porque o Calcifer é um personagem importante. Ele, o Castelo e o quarto do Howl, mais uma casinha que será mostrada depois, são uma metáfora para o coração do Howl. Calcifer, de todos esses, é o mais importante, porque ele é o núcleo central, aquele que participa e controla — literalmente no filme — todos os assuntos pertinentes ao coração do Howl. Sophie faz um acordo com Calcifer, prometendo libertá-lo do Castelo se ele a ajudar a quebrar o feitiço. Nessa metáfora, a Sophie conquista o principal do coração de Howl sem ele nem mesmo perceber; ela já está dentro dele e o influenciando sem ele perceber que deixou ela se tornar uma pessoa importante de sua vida.

O dia amanhece e Sophie conhece Marco, um garotinho aprendiz do Howl que o ajuda e cuida do castelo quando Howl não está presente. Ele estranha a presença de uma idosa no Castelo, mas não tanto assim — sinal de que ele está acostumado com desconhecidos no Castelo, o que pode ser interpretado como o Howl sendo um mulherengo. Marco, na minha interpretação, é aquele amigo que sempre está presente quando estamos mal e que nos ajuda sempre que possível. Como qualquer amigo, Marco tem suas limitações e ele não garante o sustento do Castelo por si só, porque o Castelo demanda atenção e cuidados de seu próprio dono.

Quando Howl finalmente chega depois de perambular para não se sabe onde (o que ele faz com frequência no filme), ele não estranha a presença de uma idosa e, ao contrário do que se imagina, começa a preparar café da manhã para os três — sinal de que ele quer cuidar dessas duas pessoas, sinal de que ele se importa com elas, mas ao mesmo tempo ele não demonstra sentimentos, ele fala e age de maneira fria, como se estivesse se escondendo, como se estivesse machucado demais para se abrir para um novo amor; o que é resultado do seu relacionamento abusivo e tóxico que teve com a Bruxa do Vale. Mais do que cuidar, Howl sabe que Sophie tem um segredo e algo que quer esconder. Ele pede para que ela tire o cartão que está em seu bolso e ao fazer isso o cartão pega fogo e queima uma parte da mesa de jantar. Howl reconhece imediatamente que é resquícios da maldição da Bruxa, mas que o poder dele, por si só, não seria capaz de acabar com a maldição ali e agora. Por que isso importa? Porque ele reconhece que ela tem um problema — a baixa autoestima — mas não foge dele, porque ele demonstra disposição para ajudar, mesmo que ele não consiga resolver o problema imediatamente, mesmo que ele esteja machucado demais para demonstrar algo mais explícito.

O Castelo está uma bagunça, com prateleiras vazias, restos de comida no chão, teias de aranha, sujeira acumulada, panelas sujas em cima da mesa, livros abertos e jogados pela sala, o fogão está acumulado de cinzas da madeira queimada e vários outros sinais de desatenção e descuidado se manifestam. Sophie vê aquilo e decide arrumar o local, limpar, passar pano, jogar água, organizar, tirar teias de aranha e dar uma geral mesmo. Essa ação demonstra que ela se importa com o local e, como ela pretende ficar, quer se sentir mais em casa. Metaforicamente, é como se a pessoa amada estivesse organizando a casa para que ela possa entrar de vez no coração da outra. Além disso, essa cena demonstra que, assim como a Sophie precisa da ajuda do Howl, ele também precisa da ajuda dela. O descuido do Castelo não é arbitrário, mas sim resultado de um momento de muita dificuldade e solidão para lidar com sua própria vida. A organização e limpeza de volta no Castelo traz uma mudança positiva para o humor do Howl, que se apresenta mais feliz e extrovertido e mais disposto a tomar as rédeas e passar a cuidar mais de si mesmo. Mas perceba, é a Sophie que está organizando, não o Howl, e isso terá consequências depois.

O filme segue e uma breve cena da guerra, o pano de fundo de toda essa história, é mostrada. Porém, o que eu quero destacar não é a guerra, mas sim a forma que Howl se apresenta. Nessa cena ele tem uma aparência de um pássaro preto, de um monstro, de uma fera. Nessa cena eu vejo a genialidade da Diana e do Miyazaki. A forma monstruosa de Howl é, ao mesmo tempo, uma autoimagem que ele tem de si — assim como a aparência de uma idosa é para a Sophie — e o resultado mais palpável das experiências traumáticas que teve na vida até então; a forma monstruosa é o mecanismo de autodefesa que Howl criou para lidar com sua vida, com sua realidade; afinal, ele se transforma numa fera poderosa quando se sente ameaçado e é exatamente isso que fazemos quando passamos por uma experiência traumática, criamos um mecanismo de autodefesa, seja se fechar para as pessoas, seja se tornar agressivo. É importante enfatizar que Howl NÃO gosta dessa forma monstruosa, porque consome muito de sua energia, porque o faz lembrar das cicatrizes deixadas pela Bruxa, porque ele perde parte do controle quando se transforma, porque é uma forma feia (e aparência física é uma característica importante para ele), porque ele esconde essa aparência sempre que pode e evita ao máximo de permanecer nela. Essa forma é o lado obscuro da sua personalidade, resultado de traumas anteriores, mas que é necessária para conseguir sobreviver.

Nessa mesma cena, Howl chega no Castelo, encontra Sophie dormindo e a aparência dela é de uma jovem-adulta, um indício de que a velhice é mais uma autoimagem completamente distorcida do que como ela se apresenta de fato. Quando dormimos, não estamos preocupados com nossa aparência, com como nos vestimos, como nos portamos, como estamos agindo; nós só somos nós mesmos, e é isso que essa cena demonstra. Essa cena demonstra que Howl sempre viu aquela idosa como a Sophie, mas que só foi demonstrado ao telespectador agora porque é nesse momento em que a moça não se vê como ruim, como feia, como frágil e acabada.

Na manhã do dia seguinte, Howl fica irritado porque, ao tomar banho, seus cabelos loiros trocaram de cor para um alaranjado. Ele começa a chorar e se desesperar e seus cabelos se transformam para preto. Para mim, isso significa que ele finalmente percebeu/se deu conta do que a Sophie fez em seu coração (no seu Castelo); ele finalmente toma ciência do que está acontecendo e como ele não foi o responsável por todas essas mudanças, ele não se enxerga mais. Ou seja, ele passa por uma crise de identidade que o deixa muito mal, pois ele dá uma boa olhada para si e não se reconhece mais. Howl fica depressivo, o Castelo começa a desabar e Marco e Sophie se veem carregando Howl para seu quarto.

O quarto de Howl, como eu disse anteriormente, é outra parte que representa o coração do mago. O quarto possui diversos colares, joias, brinquedos, fotografias, bugingangas, vestuários, utensílios, ferramentas e várias outras coisas sempre brilhantes, chamativas, coloridas. O quarto de Howl é onde ele guarda suas memórias mais preciosas, mais bonitas e felizes e também as mais íntimas. Sophie entrar nesse quarto e cuidar de Howl é um indicativo de que ele está se abrindo como não fizera antes para ela — e sabemos como isso é importante num relacionamento. É como se na crise existencial ou identitária que ele teve, ela teve a capacidade de fazer com que ele se abra mais e mais; que ela conheça cada centímetro da personalidade dele.

A cena seguinte é difícil de explicar dentro da lógica dessa minha interpretação, mas os acontecimentos são: Howl pede que Sophie o represente numa reunião que ele deveria ter com uma maga poderosa de um reino vizinho. A caminho do palácio, os monstros gelatinosos e a Bruxa do Vale aparecem novamente, simbolizando o retorno das memórias e a ameaça de abaixar mais ainda a autoestima da Sophie. Porém, Sophie demonstra mais empenho, mais vontade e até mesmo raiva pela Bruxa, não deixando ser afetada pela presença dela ali. Assim que chegam no Palácio, elas têm que subir um grande lance de escadas. Com muita dificuldade, Sophie consegue chegar ao topo, enquanto isso a Bruxa começa, fisicamente, a derreter e perder a aparência de uma mulher de 40 anos — passando a ficar mais velha a cada passo dado, como se a forma que ela apresentava, como ela fingia ser, ia se desfazendo e deixando de existir. Ambas conseguem chegar ao topo das escadas e entrar no Palácio, embora a Bruxa esteja completamente exausta e Sophie relativamente descansada. O que essa cena toda significa? Eu interpreto que as escadas são mais um desafio que ambas têm que passar, mas que Sophie conseguiu completa-lo com mais facilidade porque ela está mais disposta a lutar pelo Howl, ela tem mais energia, mais empenho, mais gana e mais vontade, enquanto que a Bruxa está muito mais cansada, exausta, indisposta a lutar e continuar em frente.

Após entrar no Palácio, a Bruxa se senta numa poltrona, várias lâmpadas surgem e a iluminam com luzes muito fortes, causando grande incômodo na Bruxa. Enquanto isso, Sophie é convidada para conversar com a maga em questão. A conversa é um tanto quanto um mistério para mim, mas é nesse diálogo que Sophie demonstra um grande apreço pelo Howl e uma pré-disposição a defende-lo. Nesse momento, a Bruxa é trazida para a presença das duas e ela se tornou uma idosa de mais de 100 anos, completamente dependente de outrem, completamente exausta e indisposta. Eu interpreto que as luzes que a incomodaram minutos antes é um grande momento de reflexão, de auto-clareza, que ela teve, em que ela percebeu o quão horrível ela estava sendo tanto para Sophie quanto para o Howl e o quanto ela precisa de ajuda. E isso a deixa completamente perdida, porque não é fácil reconhecer que você está agindo de maneira tóxica e mais difícil ainda é reconhecer que precisa de ajuda para melhorar. É como se ela finalmente percebesse que ela está sendo obsessiva, compulsiva, que ela está depressiva, etc.

Howl aparece na reunião e salva Sophie e a Bruxa — que, como eu disse, está completamente indefesa e dependente de outras pessoas. Para salvá-las, ele tem que assumir sua forma pássaro por um breve momento — o que significa que ele finalmente demonstrou uma parte do seu lado obscuro para a Sophie, que o medo de a assustar está controlado ou então diminuiu. Ele demonstra essa outra faceta da sua personalidade e da sua história, mas ela não tem medo nenhum, ela abraça essa forma e não age de forma repulsiva. Ou seja, ela reconhece a necessidade e o porquê do Howl ter aquela forma e ter escondido-a até então. Da mesma maneira que o Howl não a vê como uma velha, ela não o vê como um monstro. Ambas as formas são autoimagens que eles possuem de si mesmos. Ele as resgata, deixa-as no Castelo e foge novamente para despistar os policiais que estão perseguindo-os.

Quando ele volta pro Castelo, ele não consegue voltar na sua forma humana. Pra mim isso significa que ele chegou ao fundo do poço da depressão, significa que suas forças próprias para lidar com aquilo que está passando se esgotaram, que ele não consegue mais fazer nada sozinho, pois ele não acredita mais em si mesmo. Nessa cena a Sophie acorda e mantém a versão jovem dela, o que é indicativo de que sua autoestima está melhorando. Significa que a melhor versão de Sophie é quando ela o ajuda, quando ela está com a pessoa que ama, fazendo o que pode para diminuir o sofrimento dele.

Na verdade, a autoestima dela aumenta e diminui ao longo do filme, o que é brilhantemente demonstrado por traços na fisionomia da personagem. Ora ela tem rugas nos olhos, ora tem rugas nas mãos, ora não tem rugas quase que nenhuma, ora ela tem um corpo mais magro, ora tem uma coluna mais arqueada. Esses são indicativos muito sutis, mas muito poderosos, dessa inconsistência da autoestima da Sophie. Embora, é claro, a autoestima dela está sempre crescendo mais do que decaindo — lembrando que a Sophie de 90 anos é o ponto mais baixo da sua autoestima, é onde ela começou o filme, começou a sua jornada, e para onde ela não retorna ao longo do filme.

Apesar de Howl estar no fundo do poço, ele acorda na sua forma humana, com um humor melhor, porque ele teve quem cuidasse dele e o auxiliasse no passar da noite. E nos próximos minutos ele demonstra a sua entrega total para Sophie. Howl, utilizando de magia, transforma toda a arquitetura/layout interna do Castelo, criando mais quartos e banheiros, com mais móveis, para abrigar todos os habitantes de seu Castelo, de seu coração. Ao mudar o Castelo, ele finalmente mudou seu jeito de ser para se que Sophie se sinta mais confortável ali, para que ela se sinta em casa novamente. É nesse momento que Howl abraçou de fato a presença da Sophie, é nesse momento em que Howl se entrega por completo e se mostra 100% disposto a viver com a nossa protagonista. Talvez seja uma analogia para quando casais se casam, ou quando passam a morar juntos.

A cena seguinte é a última parte do coração de Howl: sua infância. Ele a leva para um campo cheio de flores com uma pequena casinha de madeira que ele diz ser seu esconderijo. Howl abre e doa seu coração por completo para Sophie, deixando que ela seja parte de todo o seu ser, de todo o seu coração. Dessa forma, a metáfora do coração de Howl está completa: o Castelo como sendo aquele lugar de abrigo, aquele porto seguro; Calcifer como sendo a parte essencial e vital dos sentimentos do mago; o campo florido como o esconderijo, o lugar mais íntimo e desconhecido, o lugar mais especial; e, por fim, o quarto dele, o lugar com suas memórias mais felizes.

Contudo, a guerra, o pano de fundo do enredo, volta a atormentar Howl e ele precisa assumir sua forma pássaro e ir lutar. Sophie fica no Castelo para cuidar da Bruxa e do Marco. Foi nessa cena que eu tive o insight de perceber que a Bruxa é a ex-namorada do Howl, porque ela oferece conselhos para a Sophie e ainda afirma que ela ainda se sente apaixonada. E o mais impressionante, é que a bondade da Sophie é tão grande que ela está disposta a cuidar da Bruxa — que necessita muito de ajuda para melhorar — cuidar da pessoa que deixou sua autoestima em estilhaços. Igualmente impressionante é o efeito daquela maldição do início do filme, porque mesmo sabendo que a Bruxa é a ex-namorada do Howl, que ela agiu por pura inveja e ciúmes, Sophie é incapaz de quebrar a maldição de vez e se ver como uma bela jovem novamente. Isso indica, pra mim, uma personalidade igualmente machucada e frágil que é resultado de sua vivência — infelizmente, eu não consegui deduzir muito da sua vida pré-Howl.

Ao mesmo tempo que Sophie cuida do Howl, da Bruxa e do Marco, Howl cuida da Sophie e do Marco, e o Marco, por sua vez, do Howl e da Sophie. É como diz aquele ditado: “gentileza gera mais gentileza”. Contudo, o auxílio prestado pelo Howl é visivelmente menor do que o da Sophie, porque ela se entrega mais, ela se esforça mais, ela luta mais pelo relacionamento. Apesar disso, Howl sempre demonstra que está disposto, que tem dificuldades, mas que o amor é recíproco.

Apenas como comentário, a irmã da Sophie (uma personagem secundária em toda essa trama) trai a protagonista a mando da maga do reino vizinho. Isso pra mim é uma analogia àqueles amigos que, visando o nosso melhor, mas discordando de nós, age de maneira que não nos agrada — e, como no filme, sabota o relacionamento.

A cidade é atacada e Sophie se vê tendo que fugir para o Castelo. Ao chegar no Castelo ela percebe que para salvar Howl, é preciso tirar Calcifer do Castelo, mesmo sabendo que isso significaria na destruição do Castelo. Ela assim o faz e quando tenta reconstruir o Castelo novamente, a Bruxa se sente atraída pelo Calcifer e começa a se queimar. Sophie joga um balde d’água em ambos e Calcifer se apaga — no filme isso significaria que o Howl morreria.

Muito se pode deduzir dessa cena, então vamos por partes. O ataque a cidade, Howl indo lutar na guerra e Sophie tendo que fugir significa uma situação em que ambos tiveram que se separar, ou então que ambos discordavam do que tinha que ser feito, um momento de complicações no relacionamento. Ela acredita que ao retirar Calcifer do Castelo irá salvar Howl porque ele seria obrigado a fugir da guerra. Eu interpreto isso como um erro, porque ao tirar o Calcifer do Castelo, ela destruiu toda a vontade que ele tinha em continuar lutando. Ou seja, ela cometeu algum erro que causou no retorno à depressão. A Bruxa, aproveitando o momento de fraqueza do Howl — afinal seu coração estava, literalmente, fora do lugar — e não conseguindo resistir à tentação de ter aquele coração para si novamente — afinal, ela ainda o ama, ele ainda tem sentimentos por ela e ele estava extremamente decepcionado com Sophie — agarra o coração, se machuca e Sophie joga um balde em ambos. Para mim, isso significa que Howl traiu Sophie com sua ex e, ao descobrir, Sophie brigou com ele quase resultando no término do relacionamento. A Bruxa se queimou porque ela sabe que o coração dele não a pertence mais, mas insiste em ficar com ele para si, mesmo que isso a mate. Por mais que a Sophie a tenha ajudado, por mais que sejam amigas, a Bruxa não consegue deixar de ter sentimentos pelo Howl, ela não consegue deixar de amá-lo.

O balde d’água apagou Calcifer, que era o motor do Castelo, e tudo começou a desmoronar e ser destruído de vez — lembrando que o Castelo é uma metáfora para o coração do Howl. Sophie percebendo o grandíssimo erro que cometeu, o quanto sente falta do Howl, o quanto o ama, o quanto precisa dele, o quanto ele precisa dela, ela entra por uma porta que a leva para o campo florido — a infância de Howl — e vê o evento que fez Howl tirar seu coração de si e criar o Calcifer (talvez por causa de um evento muito traumático. O filme não é claro nesse ponto). Ela percebe então o porquê de Howl ser da maneira que é e o que ambos precisam fazer para todos se recuperarem dessa grande crise no relacionamento.

Ela pede para que Howl a leve para onde a Bruxa e Marco está. Lá, Sophie reconhece o quão machucada a Bruxa também está, ela sente compaixão por tudo que a Bruxa passou, mas pede Calcifer (que está muito enfraquecido) de volta para que ele retorne ao seu dono original, deixando de ser tanto da Bruxa quando dela. A Bruxa também reconhece que precisa de ajuda, que ela causou muitos problemas e que ela busca redenção. Então ela entrega o coração para Sophie que, por sua vez, devolve para o corpo inanimado do Howl. Dessa forma, Howl se sente vivo novamente, Calcifer também volta à vida — mas ele não é mais necessário, enquanto demônio, porque Howl está curado do evento traumático de sua infância — e eles vivem felizes para sempre.

Os últimos segundo do filme mostram Howl com o cabelo preto — demonstrando um grandíssimo impacto que toda essa experiência teve em sua vida; Sophie com sua forma jovem-adulta original, mas com o cabelo curto e numa coloração diferente — o que significa que toda essa experiência se tornou um marco e um divisor de águas na sua vida; que a Sophie do começo do filme não é está longe de ser a Sophie do final do filme; e o Castelo novamente animado, só que voando — demonstrando que toda essa história não é somente marcante, como foi uma grande fonte de experiência e readaptação de todos os personagens.

Apenas alguns adendos: 1) eu não consegui interpretar o que a guerra significaria. Talvez seja a materialização física da luta que Howl luta todos os dias para melhorar e se tornar mais saudável, mas não tenho certeza; 2) não sei quem é a maga do reino vizinho. Talvez seja a mãe do Howl que desaprova todas as namoradas dele e que não quer que ele seja independente, quer que ele fique com ela para sempre; uma mãe superprotetora; 3) o Cabeça de Nabo tem sua maldição quebrada e ele se torna um príncipe do reino vizinho, assim acabando a guerra entre ambos. O filme dá a entender que a Bruxa finalmente conseguiu seguir em frente e viu nesse príncipe um interesse amoroso; 4) o Castelo e Howl sempre vagavam longe dos centros urbanos, sempre pelos campos e montanhas do reino, demonstrando um isolamento proposital do mago.

Essa foi a minha interpretação e minha análise do filme. Acho que é autoexplicativo o porquê de eu amar tanto esse filme. A sua complexidade, a sua sutileza e o conhecimento dos comportamentos humanos frente a um amor poderosíssimo, mas conturbado, são apenas alguns elementos que fazem esse filme estar entre os meus favoritos. O filme é lindo na questão visual, as cores são chamativas e coloridas, mas harmônicas; a trilha sonora é sutil e doce, mas precisa nos sentimentos que pretende transmitir.

Resumidamente, o filme se trata de um amor forte e correspondido, mas complicado, com personagens profundamente complexos e traumatizados por experiências passadas, mas que não desistem um do outro, que não desistem do amor que sentem, que representam a perseverança e resistência para lutar contra as intempéries e resolver os problemas psicológicos que ambos possuem de forma mútua. O filme se trata de um amor raríssimo nos dias atuais que, infelizmente, só vejo na esfera da ficção.

Espero que tenha gostado dessa análise e que eu tenha te convencido de que O Castelo Animado é uma obra-prima do cinema japonês.

L. PENHA (16/Mai/2017)

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L. Penha

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