O conceito de povo

Lucas Pereira
6 min readMar 13, 2016

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O que é "Povo"? O que esta palavra significa na realidade?

O Povo Brasileiro, quadro de Trasila do Amaral

Conceito Político de Povo

O conceito de povo pode ser estabelecido do ponto de vista político, jurídico e sociológico.

A antigüidade já o conhecera, dando-nos disso testemunho a obra de Cícero. Com efeito, segundo o escritor romano, povo é “a reunião da multidão associada pelo consenso do direito e pela comunhão da utilidade” e não simplesmente todo conjunto de homens congregados de qual­quer maneira.3

A modernidade do conceito é porém afirmada por alguns autores, que vão buscar-lhe a nascente nas idéias da Revolução francesa. Fora des­conhecido à Idade Média, cuja teoria do Estado partia do território, da organização feudal, onde o poder se assentava em relações de proprieda­de. A nova teoria do Estado que começa com a implantação da sociedade liberal-burguesa, na segunda metade do século XVIII, parte do povo. No absolutismo o povo fora objeto, com a democracia ele se transforma em sujeito.

Teve início esse princípio com o Estado liberal, constitucional e re­presentativo. A história que vai do sufrágio restrito ao sufrágio universal é a própria história da implantação do princípio democrático e da forma­ção política do conceito de povo. Embora restrito, o sufrágio inaugura a participação dos governados, sua presença oficial no poder mediante o sistema representativo, elegendo representantes que intervirão na elabo­ração das leis e que exprimirão pela primeira vez na sociedade moderna uma vontade política nova e distinta da vontade dos reis absolutos.

Povo é então o quadro humano votante, que se politizou (quer dizer, que assumiu capacidade decisória), ou seja, o corpo eleitoral. O conceito de povo traduz por conseguinte uma formação histórica recente, sendo estranho ao direito público das realezas absolutas, que conhe­ciam súditos e dinastias, mas não conheciam povos e nações.

Esse conceito político de povo prende-se evidentemente a uma con­cepção ideológica: a das burguesias ocidentais que implantaram o siste­ma representativo e impuseram a participação dos governados, desenca­deando o processo que converteria estes de objeto em sujeito da ordem política.

Sem a compreensão desse confinamento do conceito às suas raízes históricas, poderia parecer absurdo o conceito de povo do professor Afon­so Arinos, povo político, porquanto, tomado fora da qualificação políti­ca, não seriam povo os menores, os analfabetos, os que por este ou aque­le motivo, de ordem particular ou de ordem geral, estivessem excluídos do direito de sufrágio, nem tampouco haveria povo nos países totalitá­rios, onde a livre participação dos governados na criação da vontade es­tatal se achasse sufocada ou interditada. Com efeito, escreveu com bri­lho e elegância o nosso Afonso Arinos: “nossa Constituição diz que todo poder emana do povo e em seu nome será exercido. Vejamos o que isto quer dizer. Em primeiro lugar, o que é povo? Os constitucionalistas não hesitam. Povo, no sentido jurídico, não é o mesmo que população, no sentido demográfico. Povo é aquela parte da população capaz de partici­par, através de eleições, do processo democrático, dentro de um sistema variável de limitações, que depende de cada país e de cada época.

Conceito Jurídico de Povo

Só o direito pode explicar plenamente o conceito de povo. Se há um traço que o caracteriza, esse traço é sobretudo jurídico e onde ele estiver presente, as objeções não prevalecerão.

Com efeito, o povo exprime o conjunto de pessoas vinculadas de for­ma institucional e estável a um determinado ordenamento jurídico, ou, segundo Raneletti, “o conjunto de indivíduos que pertencem ao Estado, isto é, o conjunto de cidadãos”.

Diz Ospitali que povo é “o conjunto de pessoas que pertencem ao Estado pela relação de cidadania”, ou no dizer de Virga “o conjunto de indivíduos vinculados pela cidadania a um determinado ordenamento jurídico”.

É semelhante vínculo de cidadania que prende os indivíduos ao Es­tado e os constitui como povo. Fazem parte do povo tanto os que se acham no território como fora deste, no estrangeiro, mas presos a um determi­nado sistema de poder ou ordenamento normativo, pelo vínculo de cida­dania.

Não basta dizer que povo é o elemento humano como sujeito de direitos e obrigações. A afirmativa não é incorreta, mas demasiado ampla. Um grupo social também pode abranger o elemento humano elevado a categoria de sujeito de direitos e obrigações e não constituir um povo. Urge por conseguinte dar ênfase ao laço de cidadania, ao vínculo particular ou específico que une o indivíduo a um certo sistema de leis, a um determinado ordenamento es­tatal.

A cidadania é a prova de identidade que mostra a relação ou vínculo do indivíduo com o Estado. É mediante essa relação que uma pessoa cons­titui fração ou parte de um povo.

O status de cidadania, segundo Chiarelli, implica numa situação ju­rídica subjetiva, consistente num complexo de direitos e deveres de cará­ter público.

O status civitatis ou estado de cidadania define basicamente a capacidade pública do indivíduo, a soma dos direitos políticos e deveres que ele tem perante o Estado.

Da cidadania, que é uma esfera de capacidade, derivam direitos, quais o direito de votar e ser votado (status activae civitatis) ou deveres, como os de fidelidade à Pátria, prestação de serviço militar e observância das leis do Estado. Sendo a cidadania um círculo de capacidade conferido pelo Estado aos cidadãos, este poderá traçar-lhe limites, caso em que o status civitatis apresentará no seu exercício certa variação ou mudança de grau. De qualquer maneira é um status que define o vínculo nacional da pesssoa seus direitos e deveres em presença do Estado e que normalmente acompanha cada indivíduo por toda a vida.

Três sistemas determinam a cidadania: o jus sanguinis (determina­ção da cidadania pelo vínculo pessoal), o jus soli (a cidadania se determi­na pelo vínculo territorial) e o sistema misto (admite ambos os vínculos). Na terminologia do direito constitucional brasileiro ao invés da palavra cidadania, que tem uma acepção mais restrita, emprega-se com o mesmo sentido o vocábulo nacionalidade.

A matéria se acha regulada no artigo 12 da Constituição federal, que define quem é brasileiro e por conseguinte, em face das nossas leis, quem constitui o nosso povo.

Conceito sociológico de Povo

Tido também como conceito naturalista ou étnico, decorre porém com muito mais freqüência de dados culturais, que uma consideração unilateralmente jurídica não poderia exprimir.

Desse ponto de vista — o sociológico — há equivalência do conceito de povo com o de nação. O povo é compreendido como toda a continui­dade do elemento humano, projetado historicamente no decurso de vá­rias gerações e dotado de valores e aspirações comuns.

Compreende vivos e mortos, as gerações presentes e as gerações pas­sadas, os que vivem e os que hão de viver. É enfim aquele mesmo povo político concebido, conforme vimos, de acordo com as características ju­rídicas que num determinado território lhe conferem a organização de Es­tado, mas ao mesmo tempo colocado numa dimensão histórica que liga o passado ao futuro e assim transcende o momento da contemporaneida­de de sua existência concreta.

O povo nesse sentido é a nação, e ainda debaixo desse aspecto pode tomar uma acepção tão lata que para sobreviver basta conservar acesa a chama da consciência nacional. Os judeus sem território e sem Estado próprio, disseminados no corpo político de sociedades que ora os aco­lhiam, ora os expeliam, nem por isso deixaram nunca de ser povo e na­ção, tendo as duas expressões aqui igual significado.

Adaptado de Paulo Bonavides

Bibliografia

Afonso Arinos de Melo Franco, Jornal do Brasil, edição de 22.8.1963.

Aurelino Leal, Teoria e Prática da Constituição Federal Brasileira, p. 18.

Oreste Raneletti, Istituzioni di Diritto Pubblico, 13ª ed., p. 18.

Giancarlo Ospitali, Istituzioni di Diritto Pubblico, 5ª ed., p. 31.

Pietro Virga, Diritto Costituzionale, 6ª ed., pp. 43–44.

V. E. Orlando, Principii di Diritto Costituzionale, 5ª. ed., p. 26.

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