Histórias extraordinárias | Resenha

Lucas Franke
10 min readNov 4, 2022

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O escritor norte-americano Edgar Allan Poe (1809–1859) foi um dos primeiros contistas de seu país. Geralmente considerado inventor do gênero policial, bem como recebendo crédito pela contribuição ao gênero de ficção científica, Poe é o retrato de um rosto definido pela genialidade, mas também pelo desequilíbrio (emocional). Autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, e integrante do movimento romântico, foi ainda o primeiro escritor americano a tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente complicadas.

Marcado pela presença da tuberculose, que afligiu sua esposa e a levou a falecer, suas histórias são repletas da presença da morte, conferindo a si o gênero do romantismo sombrio, no qual capta os efeitos da decomposição, o interesse por pessoas enterradas vivas, a reanimação dos mortos e o luto, adquirindo um tom bastante soturno e mórbido a suas narrativas. Poe também escrevera sátiras e contos de humor — usando da ironia e da extravagância tanto para efeito cômico, como para liberar o leitor da conformidade cultural.

Poe, como diz Todorov (1980, p. 156), é o escritor “do extremo, do excessivo, do superlativo”. Suas narrativas são imbuídas de suspense, chamando a atenção tanto de tradutores quanto adaptadores no mundo ao redor dos tempos — na literatura, pode-se citar Fiódor Dostoiévski, Jules Verne, Franz Kafka, Arthur Conan Doyle e Jorge Luis Borges; no cinema, há nomes como D.W. Griffith, Jean Epstein, Edgar G. Ulmer, Alfred Hitchcock, Vincent Price e Tim Burton (nota-se que desde os primórdios do cinema, as produções baseadas nas publicações do norte-americano já eram produzidas). Charles Baudelaire foi o primeiro a render-se às suas histórias macabras, lançando-se ainda na árdua tarefa de traduzir as obras para o francês, de tal maneira que o mundo europeu conhecera as obras de Poe através dessas traduções.

Nas obras literárias de Edgar Allan Poe uma certa engenhosidade estilística se une a uma imaginação criadora, resultando em obras realmente singulares. Seus enredos geralmente são enxutos e fogem do parâmetro da normalidade ou de situações tipicamente corriqueiras. Histórias extraordinárias, coletânea que reúne dezoito contos assombrosos do autor — com seleção, apresentação e tradução do poeta José Paulo Paes — , compõe a angústia e a engenhosidade de um dos maiores inventores do terror moderno. Publicadas originalmente em 1845, essas histórias trazem o medo e a loucura como traços em comum. Nenhum dos contos é narrado em terceira pessoa, evidenciando, desse modo, o caráter psicológico dessas histórias — uma vez que elas refletem a própria psiquê de seu criador — , não descartando a dimensão de subjetividade ao inserir o elemento fantástico. Fica assim exposto, então, que não existe um distanciamento com as personagens, deixando claro certo grau de pessoalidade. A edição ilustrada ainda inclui textos de Baudelaire, Borges e Julio Cortázar, que reverenciam o estilo hipnotizante do autor mais sombrio de todos os tempos.

A antologia reúne algumas de suas histórias góticas, sintetizando o estilo de um mestre da narrativa curta, de uma sensibilidade privilegiada e perturbada, o precursor do romance policial, e um exímio explorador das profundezas psicológicas do homem. Em “Ligéia” (1838) um narrador não definido — e aparentemente não confiável — parece sofrer de uma alucinação induzida pelo ópio de que a esposa ressuscitara. Ele descreve a beleza da moça como “o brilho de um sonho de ópio”, admitindo certa confiabilidade infantil nela. Pode ser lida como uma sátira da ficção gótica, uma vez que o narrador confere a Ligéia um senso de misticismo, que pode configurar como uma crítica aos transcendentalistas ao figurar a personagem de uma mortalidade inevitável. Nesse sentido, Ligéia, essa mulher misteriosa, lembra um pouco à Rebecca, personagem do livro de Daphne Du Maurier — bem como do formidável filme de Alfred Hitchcock.

Pequena palestra com uma múmia” (1845) é uma das sínteses do estilo do autor, em que o terror se configura mais no aspecto psicológico do que gráfico, manifestando-se num texto bastante sufocante ao acompanhar diálogos anacrônicos entre vivos mortos. O medo é mais intimista e introspectivo, e menos explícito e catastrófico. “A carta roubada” (1844), a última das histórias protagonizadas por Auguste Dupin — iniciada com “Os assassinatos da rua Morgue”, não contida nesta coletânea — , a personagem, modelo de todos os detetives da literatura, demonstra como utilizar a força do intelecto, ao desvendar um caso de roubo e extorsão. Aqui Poe quebra a regra da complexidade do crime no conto, que ele mesmo tinha criado alguns anos antes, através de uma solução extremamente para um crime idem. Assim como “O escaravelho de ouro” (1843), esta é uma das primeiras história da literatura policial.

O gato preto” (1843), um dos mais famosos do autor, traz a noção de anormalidade e uma metáfora para a deterioração do homem, destacada pela violência do protagonista. O gato, chamado Plutão — o deus dos mortos na Mitologia romana — , é uma provável metáfora na qual a morte vem acertar as contas com o narrador, traçando, ainda, um limiar entre a sanidade e a loucura. Outros textos também são relacionados à morte estão presentes, com a já citada Pequena Palestra com uma Múmia e “O caixão quadrangular” (1844) — no qual também nota-se a manifestação da loucura, mais perene em “O sistema do doutor Alcatrão e do professor Pena” (1845).

O barril de amontilhado” (1846) confere mais ironia e ambiguidade. É uma das narrativas mais intrigantes do escritor, onde o enredo gira em torno de duas personagens: um narrador ressentido e um amigo seu. Este narrador explora o ponto fraco de seu amigo: a vaidade e o orgulho, conduzindo-o a uma armadilha fatal ao levar a cabo uma vingança maturada há anos, anunciada ao leitor já no início. Sobre vingança silenciosa e dissimulação, narra a história sob o ponto de vista do vingador, dando enfoque aos fatos em si bem como os condicionamentos psicológicos das personagens. Há várias simbologias no texto, em que o autor demonstra o desejo incessante da personagem, o que a faz estar em uma situação de emparedamento consigo mesma. Em “O poço e o pêndulo” (1842) um indivíduo se vê aprisionado — novamente a situação de confinamento — por forças da Inquisição e, sozinho, é submetido a mais horripilante tortura psicológica. Poe evoca o tema do ódio e da tortura em meio a metáforas e alegorias. É onde o soturno autor mais demonstra seu pessimismo frente à obscuridade da ignorância humana.

A máscara da Morte Rubra” (1842) é um dos mais arrebatadores por representar um clima quase absoluto de confinamento e uma sensação de loucura bastante pertinente para os tempos atuais. Aqui, um príncipe encastela-se em uma de suas propriedades, onde a peste jamais poderia adentrar. Blindando sua fortaleza das emanações da temível epidemia, promove festas, bailes e todo o tipo de farra. Num desses bailes, no entanto, a (oni)presença da Morte chama a atenção de todos que antes julgam-se invulneráveis. É um conto que tem muito a dizer sobre nós mesmos, na medida em que dialoga com os pesadelos mais íntimos do ser humano, causando, assim, um assombro enorme em quem lê. Em “Berenice” (1835) o autor faz uma descrição cercada de suspense e terror de um sujeito que se torna obcecado pela única parte do corpo que sua noiva cadavérica ainda mantinha intacta: os dentes. Ilustra constantemente o caráter fantástico utilizando palavras sombrias (“cinzentas”, “melancólicas”, “estranho”, etc.), aguçando a atenção do leitor e o envolvendo com a história.

O conto “Sombra — uma parábola” (1835) traz um narrador-personagem vindo da Antiguidade, e que parece escrever conscientemente para leitores do futuro. Ele narra sobre uma sombra, nem divina nem humana, que surge no meio de um velório. A parábola, isto é, a narrativa alegórica, finalizam-se quando os convivas percebem que, na voz dessa sombra, há uma “multidão de seres” mortos. O fantástico reside no fato de que não há explicações sobre o que é a Sombra, apesar de que facilmente pode percebê-la como a Morte personificada. “O diabo no campanário” (1839) conta a história de um burgo holandês conhecido pela pontualidade e organização. De repente, uma criatura aparece para criar o caos no local, desesperando todos que ali moram. Parece servir como anedota ao apego material que geralmente se dá a coisas inúteis.

Durante todo um dia pesado, escuro e mudo de outono, em que nuvens baixas amontoavam-se opressivamente no céu, eu percorri a cavalo um trecho de campo de tristeza singular, e finalmente me encontrei, quando as sombras da noite se avizinhavam, à vista da melancólica Casa de Usher. Não sei como foi — mas, ao primeiro olhar que lancei à construção, uma sensação de insuportável angústia invadiu meu espírito.

A queda de casa de Usher” (1839), a história de um estranho casal de irmãos cuja corrupção moral e psíquica refletida na falência física da mansão gótica onde moram, é mais outra síntese de seu estilo, onde cada elemento e detalhe está relacionado e se faz relevante. Numa atmosfera opressiva, o autor mostra sua capacidade em criar um tom emocional a sua obra, especificamente em se tratando de sentimentos de medo, desgraça e culpa. Há uma explícita dimensão psicológica, em que a casa tem uma rachadura central que representa uma personalidade dividida. Sua desintegração simboliza a destruição do corpo, um elemento essencial nas últimas obras de Poe. É uma das mais famosas obras em prosa do autor, marcada por uma ironia dramática e um simbolismo estrutural que me fazem preferir a esta em detrimento doutras. Muito se especula de que, com este conto, Poe influenciara Herman Melville para criar o capitão Ahab, do estrambótico romance Moby Dick, no qual sua força evocativa da falhabilidade humana é altamente perceptível na ambiguidade criada por Poe.

O coração delator” (1843) conta a loucura de um sujeito que sente imenso ódio de um idoso e de seus olhos leitoso, decidindo assassiná-lo. “William Wilson” (1834) explora o tema do duplo (doppelgänger), tão caro à literatura romântica alemã, pelo qual o escritor adquiriu influência. Nele, um homem esquizofrenicamente sente-se perseguido por um sujeito de mesmo nome que tenta usurpar-lhe a vida e a identidade. O cenário é quase autobiográfico, se relacionando com a residência de Poe na Inglaterra quando menino. Ele capta uma sutileza — composta por frases equilibradas e poucas adjetivações — que é bastante pertinente na construção da ambiguidade. Curto, mas visceral, “O retrato ovalado” (1842) volta-se novamente à temática da obsessão, basicamente pela busca da perfeição artística. Nele, um cavalheiro, ao passar a noite em um castelo abandonado, descobre a pintura de uma jovem que, por causa de seu amor ao marido, permitiu-se ser pintada por ele, dando assim início a uma sucessão de fatos que cercam essa tragédia formidável. Em “O homem da multidão” (1840), ao observar o movimento da multidão na rua, um homem visualiza um senhor que lhe chama a atenção e então passa a segui-lo. É talvez o conto mais deslocado tematicamente, mas continua sendo intrigante na medida em que a obsessão — quase erótica — do olhar sobre as pessoas não leva o sujeito a lugar algum.

A iconografia que Poe usa é semelhante a de Kafka — escritor posterior a até mais realista — , compondo castelos sombrios, mesmas masmorras escuras e personagens misteriosos à beira da loucura. A profundidade e imersão são surpreendentes na medida em que estimulam e cativam o imaginário do leitor. Semelhante a autores mais contemporâneos, como José Saramago, Poe cria um mundo imaginário para eludir o mundo real. Diferentemente, porém, o autor norte-americano traduz-se numa literatura da decadência, onde revela a maldade natural do homem.

A criação formidável de um ambiente lúgubre, a tendência sádica, uma certa obsessão necrofílica, as descrições macabras e o fetichismo são outros elementos que cativam e que compõem a identidade do autor. Tal formato pode ter mexido com os medos dos leitores do século XIX e com certeza ainda penetram o nosso universo de temores reais e oníricos. É comum escritores como Poe e Kafka serem rechaçados pela abordagem descritiva, mórbida e um tanto seca de suas narrativas. Acontece que tal material não se imbui da excessividade de sangue, de convulsões tétricas que geralmente povoam o imaginário fantástico. Pelo contrário, são obras que abarcam não apenas um gênero — tão vasto quanto é o terror — , mas abarcam uma ampla gama de plurissignificação. São produtos de uma identidade literária própria, não massificada e facilmente reprodutível, formulaica. Na delirante riqueza de detalhes, o contista norte-americano deixara de lado a tendência ao moralismo, à anedota e ao realismo, enxugando seus textos e focando-se no desfecho de suas histórias macabras, na alma introspectiva dotada de profundidade psicológica, na atmosfera eletrizante, e sobretudo na sensibilidade apurada de sua obra.

Referências bibliográficas:

ALLEN, Hervey. Israfel: vida e época de Edgar Allan Poe. Tradução de Oscar Mendes. Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo: Livraria do Globo, 1945.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense S.a., 1987.

POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias. Tradução: José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

SILVA JUNIOR, Augusto Rodrigues da. Tanatografia e morte literária: decomposições biográficas e reconstruções dialógicas. Comciência, Campinas, v. 11, n. 163, p. 1–10, nov. 2014.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2017.

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