Ratos e Homens | Resenha

Lucas Franke
4 min readNov 11, 2022

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Os projetos melhor elaborados, sejam de camundongos ou sejam de homens, fracassam muitas vezes e nos fornecem só tristeza e sofrimento, em vez do prêmio prometido”.

– Robert Burns

muito de Frank Capra em John Steinbeck (ou o contrário). O realismo poético de Steinbeck, aliado a uma longa tradição filosófica estadunidense — o transcendentalismo — está presente em longa-metragens como “A Felicidade Não Se Compra” (It’s a Wonderful Wife, 1946), estando ambos artistas, escritor e cineasta, pensando na problemática social da nação, aliada a uma visão de mundo bastante romântica.

Ratos e Homens, de 1937, é um dos mais belos textos de Steinbeck, que é um dos maiores romancistas do século XX, sendo até hoje um dos livros mais lidos do autor. O livro conta a trágica história de dois trabalhadores rurais na Califórnia durante a Grande Depressão (1929–1939). A história se passa num rancho perto de Soledad, no Salinas Valley. Foi a primeira tentativa do autor de escreve um romance sob forma de peça de teatro. Estruturado em três atos, com dois capítulos cada, a obra se configura tanto como uma novela como uma peça.

Nasceu nessa mesma Salinas, em 1902, Steinbeck provém de uma família da classe baixa, e presenciava a vida de trabalhadores nos centros agrícolas, tornando este espaço palco de suas obras. No início da década de 1960, foi laureado com Prêmio Nobel e com o Pulitzer. O autor também teve dezessete de suas obras adaptadas para Hollywood, e, sendo até mesmo indicado ao Oscar de melhor roteiro original por “Um Barco e Nove Destinos” (Lifeboat, 1944), de Alfred Hitchcock.

Um Homem fica maluco se não tem ninguém, não importa quem seja, contanto que esteja com você. Vou te dizer uma coisa, se uma pessoa fica muito sozinha, ela fica doente”. (p. 74)

Em Ratos e Homens, Steinbeck evidencia sua habilidade em compor ambientes e personagens cativantes, todavia realistas, contando uma história específica de detalhes dos espaços e dos objetos que compõem aquele espaço bucólico, falando de sentimentos essencialmente humanos e atemporais (como a solidão e o desejo por dignidade). O livro possui uma narração seca e uma progressão dolorosa dos acontecimentos.

Steinbeck centra sua história num limbo econômico, dado sua origem social precária, captando a luta pela dignidade humana e a dificuldade das relações de afeto frente à crueldade de um mundo que cada vez mais preza pelo individualismo competitivo. Contudo, sua preocupação social tem inspirações bíblicas, explicitando peculiaridades de linguagem e passagens formidáveis que presentificam a dimensão dramática da obra.

O livro foi lançado dois anos antes de uma das principais obras do autor, “As Vinhas da Ira”, percorrendo um relato duro que se passa nos próprios anos 1930, época marcada pela maior crise financeira do século XX, que deixou clarividente o colapso capitalista e do liberalismo econômico compenetrado na lógica de superprodução. Faz-se como aspecto marcante, portando, a desigualdade, que remonta ao caráter social de sua literatura, consequente da radical mudança do paradigma europeu a despeito de antigas tradições das relações sociais com o desenvolvimento econômico industrial.

Steinbeck evoca um romantismo primitivo que clama pela piedade ao sofrimento humano alheio, causando um sentimento de revolta pelo estado de coisas daquela população, condenada ao ostracismo, na medida em que expõe a extremada situação de vulnerabilidade delas. Os personagens de George de Lennie, mesmo tão díspares — fisionômica e psicologicamente falando — , ainda conservam uma amizade pura, não baseada em interesses de lucratividade ou de recompensas monetárias — ou mesmo de caridade, sentimento frequentemente denunciado de um produto do vitimismo — , mas sim de um por e singelo sentimento de companheirismo, baseado no afeto e na lealdade.

As demais personagens também caracterizam a preocupação social de Steinbeck, vivendo também seus próprios sonhos em bisca de uma vida melhor (por mais ilusório que possa parecer, ainda alimentam um sentimento singelo de esperança). Questões sociais mais contemporâneas, para além da questão da desigualdade social, também se apresentam: como o racismo e segregacionismo que torna a personagem Crooks tão solitária e desprendida dos demais; ou questões de gênero, incorporadas na personagem “Mulher de Curley” (que nem ao menos tem um nome, ressaltando a objetificação do sexo minoritário frente à sanha masculina de poder dentro de tais relações sociais precarizadas).

Em última instância, Steinbeck traz construções dramáticas e psicológicas a essas personagens, tendo uma magistral capacidade de tocar em feridas sociais que até hoje desconfortam aqueles que preferem manter as atuais estruturas de dominação frente os mais necessitados. O autor desde o início, com sua linguagem seca e sua escrita crua, deixa claro suas pretensões narrativas, trabalhando esse romantismo com um choque de realidade provido pelo arremate desta esplêndida obra. A despeito da tradução, creio estar adequada ao adotar os regionalismos da língua portuguesa para emular a dimensão precária das personagens.

Referências bibliográficas:

CARPEAUX, Otto Maria. Introdução a Ratos e Homens. [S.l.]: Rio de Janeiro: Editora Bruguera, 2015.

PEREIRA, Leonardo de Atayde. O cinema de Frank Capra e a tradição romântica. Cad. de Pesq. Interdisc. em Ci-s. Hum-s., Florianópolis, Santa Catarina, v.15, n.106, p. 48–58 — jan. jun. 2014.

STEINBECK, John. Ratos e Homens. Tradução: Ana Ban. Porto Alegre: L&PM, 2013.

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