Lucas Soares
16 min readSep 29, 2023

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O IMPACTO DE RUDOLF BULTMANN NA TEOLOGIA CONTEMPORÂNEA

“Se é verdade que, em certo sentido, Karl Barth foi o maior teólogo do século XX, não há dúvida de que, em certo sentido, Rudolf Bultmann (1884–1976) foi o maior estudioso do Novo Testamento.”Ed Miller e Stanley Grenz

INTRODUÇÃO

Dizer que Bultmann foi um dos maiores estudiosos do Novo Testamento no século XX, pode até ser verdade, mas não significa que todos concordavam com ele, pelo contrário, isso foi muito difícil de acontecer. Suas opiniões controversas foi o que alterou o modo de pesquisa acadêmica do Novo Testamento naquela época, nos dias de hoje, e provavelmente para sempre. Portanto, se você tem acesso a muitos materiais de pesquisa acadêmicos, e não está limitado apenas à teologia tradicional, isso aconteceu porque assim como Karl Barth, Bultmann mudou o rumo da teologia ocidental.

Assim como os outros textos que escrevo, não tenho a intenção de falar contra Bultmann. Minha intenção é apenas que você conheça os principais nomes da teologia que não são populares, a não ser no meio acadêmico. Quero mostrar através da história e de seus materiais como chegamos até aqui, nas teologias do século XXI.

Os insights de Bultmann, tanto exegeticamente como metodologicamente, não só contém implicações óbvias para o mundo da teologia em geral, como também deram à teologia muitas contribuições significativas. Bultmann foi um dos principais mentores da Teologia Existencial, que era nada menos que uma das principais vertentes teológicas do século XX.

Diferente de outros grandes teólogos do século XX, Bultmann não era um teólogo sistemático, mas um estudioso do Novo Testamento.

“Sua principal preocupação era tornar a fé cristã e bíblica compreensível à mentalidade moderna. Ele procurou alcançar esse objetivo empregando uma interpretação existencialista do Novo Testamento, que vê a mensagem do antigo documento como a Palavra de Deus dirigida ao indivíduo e pedindo uma resposta de fé individual.” – Roger Olson

Se eu concordo com esse objetivo? Não! Mas ele está errado? Não! Porém, não está completo. Claro que havia o contexto em que vivia (em outro texto falarei sobre o impacto das grandes guerras na teologia), mas existe o aspecto individual, uma resposta de fé individual, mas foi abraçando esse extremo individualista que causou os grandes problemas do cristianismo que tentamos corrigir hoje.

Mesmo não sendo um teólogo sistemático, Bultmann não separava seu método exegético da teologia sistemática, mas afirmava que ambas deveriam explicar a “existência humana em relação a Deus através de ouvir a Palavra de Deus, que se dirige ao indivíduo por meio do Novo Testamento”. Sabe aquela frase bem popular que ouvimos hoje “leia a Bíblia e veja o que Deus está falando com você hoje”? Ela vem da influência de Bultmann na teologia contemporânea, ou qualquer outra frase que tenha esse mesmo sentido. Se está errada? Tire suas próprias conclusões.

Em concordância com Karl Barth, Bultmann acreditava que a teologia do século anterior (século 19), havia tirado Deus do centro de todas as coisas e colocado o ser humano. Apesar de suas diferenças teológicas, Bultmann afirmava a ideia de Barth de que podemos conhecer a Deus apenas em resposta à revelação divina, que chega em nós como Palavra de Deus, o kerygma, dirigida a cada ser humano. Ele foi além de Barth, e teve como influência filosófica as ideias existencialistas de Martin Heidegger.

A VIDA DE RUDOLF BULTMANN

Rudolf Bultmann, nascido em Bremen, na Alemanha, seu pai era pastor luterano na província de Oldenburg, no norte da Alemanha, seus avós paternos eram missionários na África e seu avô materno era um pastor pietista no sul da Alemanha. Assim como Barth, ele frequentou as universidades de Tubingen, Berlim e Marburg. Sua carreira como professor de teologia o levou até Breslau e Giessen antes de dedicar sua carreira acadêmica na Universidade de Marburg, onde teve influência decisiva sobre todo o mundo teológico de 1921 até sua aposentadoria em 1951.

Semelhante a Barth, ele foi influenciado pelos professores liberais, Wilhelm Hermann e Adolf Harnack. Participou inicialmente da criação da teologia dialética, mas depois seguiu um caminho totalmente diferente. Bultmann também não foi forçado a deixar sua carreira como professor durante o governo de Hitler, como outros foram, pois ele não se envolvia em questões políticas e por isso não era visto como uma ameaça, mas não deixou de criticar os aspectos do programa nazista.

A teologia do século XIX estava sendo desintegrada, e esse pensamento dominou metade do século XX. Os ataques à teologia, a existência de Deus, a veracidade das escrituras colocaram os teólogos do século XX em muitos desafios, e Bultmann foi fundamental para dar as respostas a esses problemas, polêmico e controverso? Sim! Mas foi fundamental.

A CONTRIBUIÇÃO PARA OS ESTUDOS DO NOVO TESTAMENTO

A contribuição de Bultmann para a teologia foi enorme, por isso vou relatar de forma resumida algumas de suas contribuições. Meu objetivo não é ser exaustivo, mas tentar de forma simples e resumida apresentar a importância de Bultmann para a teologia. Antes de entrarmos nas contribuições teológicas, quero falar um pouco sobre sua maior área de atuação, os estudos do Novo Testamento.

A abordagem histórico-crítica da Bíblia, que insiste em aplicar à Bíblia o mesmo método a todos os tipos de literatura, remonta ao século XVIII e a Hermann Reimarus. Desde essa época, esse método passou por diversos refinamentos, mas nenhum deles foi maior do que a introdução da Formgeschichte, traduzido como “história das formas” ou “crítica das formas”. Embora esse método tenha sido aplicado inicialmente ao Antigo Testamento, ele passou a ser para muitos estudiosos a ferramenta indispensável para a interpretação do Novo Testamento.

A “crítica das formas” aplicada com maior frequência aos evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), parte do princípio de que o conteúdo de origem oral desses evangelhos sofreu alterações posteriores por meio de cada tradição religiosa. Por isso, o método procura trazer à tona o conteúdo original desses evangelhos, por meio da análise das diferentes formas linguísticas ou tipos de expressão presentes no texto e que apontam para as várias questões em desenvolvimento nas comunidades cristãs primitivas. Sendo assim, não é só possível identificar com maior precisão as autênticas falas de Jesus nos evangelhos, como também reconstruir, até certo ponto, o desenvolvimento da doutrina cristã e da igreja nos primórdios do cristianismo.

Outras ferramentas surgiram para auxiliar a “crítica das formas”. Bultmann foi um dos primeiros a aplicar o que veio a ser conhecido como o “critério da semelhança”. Aqui apareceu um problema sério, porque esse método usado por Bultmann aceita somente como verdadeiro, por um lado, os ensinos de Jesus que eram contrários aos ensinos e práticas judaicas e por outro, os ensinos e práticas cristãs.

A ideia é que só assim podemos ter certeza de que o dito ou o material não foi reinterpretado e introduzido na história de Jesus por judeus ou cristãos. Bultmann foi também um dos primeiros a enfatizar a importância dos fatores linguísticos: ritmos, fraseologia e expressões particulares, principalmente semitismos, podem revelar as características étnicas, assim saberemos a datação mais antiga do documento analisado. Depois disso outros métodos foram adotados pelas escolas, como a “crítica das fontes”, “crítica da redação”, “crítica literária”, etc. Mas nenhuma delas tiveram o mesmo impacto do que a “crítica das formas”.

A obra de Bultmann chamada The history of the synoptic tradition (A história da tradição sinótica) tornou-se paradigmática para pesquisas posteriores. A “crítica das formas”, é a interpretação baseada na história das religiões que surgiu na Alemanha. Em alemão a escola é conhecida como religionsgeschichtliche Schule (escola da história das religiões). De acordo com o que o nome sugere, trata-se de uma tentativa de vincular alguns dos materiais mais importantes do Novo Testamento ao seu ambiente religioso e cultural.

Segundo essa escola, o conteúdo do Novo Testamento procede, em grande parte, de ambientes não judeus ou estranhos à Bíblia. Assim, por exemplo, o misticismo egípcio, a especulação filosófica helenística, as religiões de mistério e os ritos religiosos romanos foram um pano de fundo importante para a compreensão das principais ideias do Novo Testamento. Se assim for, isso explica o uso de alguns títulos cristológicos pelos apóstolos. Por exemplo, quando Paulo diz “Senhor”, ele não estaria usando uma linguagem judaica, ou de alguma tradição judaica, mas uma linguagem helenística religiosa, assim como “Filho de Deus” e “salvador”. Bultmann não inventou essas análises, antes dele já haviam estudiosos que se dedicavam a isso, como Wilhelm Bossuet e Ernest Troeltsch, mas coube a Bultmann levar esse método ao primeiro plano.

“Bultmann não minimizou a contribuição da tradução judaica da Bíblia, mas que a difusão do ensino cristão primitivo levou à ruptura entre as formas palestina e helenística. Neste último caso, era inevitável que muitos elementos da tradição helenista entrassem para o evangelho original, o que, sem dúvida, fica evidente nos documentos do Novo Testamento que hoje temos à nossa disposição.”Ed. Miller e Stanley Grenz

Nesse caso, o livro Primitive christianity in its contemporary setting (Cristianismo primitivo em seu contexto contemporâneo), de Bultmann discute não só o contexto judaico, mas também a cidade-estado grega, o idealismo platônico, a astrologia, o estoicismo, as religiões de mistério e outras coisas.

O JESUS HISTÓRICO

Um primeiro problema que se apresentava diante dos estudiosos do Novo Testamento no final do século 19 era a questão do Jesus histórico. O método histórico-crítico, que durante o século 19 havia dominado os estudos bíblicos em geral e especialmente a pesquisa do Novo Testamento, eliminava completamente qualquer consenso mais antigo sobre a vida de Jesus. Essa pesquisa revelou as diferentes ênfases e representações de Jesus presentes entre os. autores dos documentos do Novo Testamento.

Os estudiosos passaram então ao que chamamos de “busca pelo Jesus histórico”, que era uma tentativa de investigar o que havia por trás dos Evangelhos para determinar exatamente o que Jesus havia dito e feito. No final do século XIX, os estudiosos começaram a questionar essa proposta. Surge então a obra de Albert Schweitzer, A Busca do Jesus Histórico (1906), em que ele conclui que essa proposta foi um grande fracasso e que o Jesus que eles construíram de Jesus não passava de uma imagem que eles mesmos inventaram. Mas não quer dizer que Schweitzer estava correto em suas conclusões sobre Jesus. Para ele, Jesus era um pregador apocalíptico que anunciava o fim do mundo e que sua mensagem não serve para nós, já que ela falhou.

Um outro estudioso chamado Martin Kahler tomou um rumo diferente. Em sua obra O Chamado Jesus Histórico e o Cristo Histórico Bíblico (1896) ele defende que a chave para o significado do Novo Testamento não surge da história que lá é apresentada, nem do método histórico de interpretação, mas sim através da pregação da igreja. “O verdadeiro Cristo é aquele que a igreja prega”. Mas eu pergunto, qual igreja? Uma tradição específica, ou a igreja universal (todos os cristãos)?

Bultmann entrou nessa discussão abraçando a ideia de kahler, e radicalizando ela. Para ele, os evangelhos apresentam um Jesus encoberto pelas formas de pensamento do contexto helenista, e que na verdade, o Novo Testamento não se preocupa com o Jesus da história, mas ele se concentra no Cristo da fé. Ele defendia que ao invés do Jesus histórico, é o kerygma, ou seja, a mensagem da igreja primitiva que é essencial à fé.

ESCATOLOGIA E MITOLOGIA

A escatologia não ficou de fora dos assuntos tratados por Bultmann. O século XIX foi uma época de muito otimismo. Para os teólogos liberais, mesmo que houvessem os elementos apocalípticos no Novo Testamento, eles consideravam aquilo um apêndice, e diziam que não fazia parte da mensagem central de Jesus. Eles afirmavam que o Novo Testamento se concentra nas novas formas religiosas e nas verdades eternas de Jesus.

O método de interpretação liberal passou a ser questionado no fim do século XIX, e os estudiosos redescobriram a centralidade apocalíptica do Novo Testamento. Dois nomes importantes nessa redescoberta foram Johannes Weiss e Albert. Schweitzer, que defenderam a centralidade escatológica na mensagem de Jesus.

Bultmann desenvolveu sua escatologia a partir das descobertas de Weiss e Schweitzer. Ele concordou que a igreja primitiva aguardava a vinda próxima do reino de Deus, uma esperança que não se realizou. Mas ao invés de usar isso para tirar conclusões negativas a respeito da mensagem central do Novo Testamento que é a escatologia, ele desenvolveu sua escatologia não pelo método temporal, ou seja, algo que acontecerá no futuro, mas ele usou a influência existencial que recebeu para afirmar que tanto Paulo como João ensinavam que a vida eterna é uma realidade existencial e presente agora, que só pode ser acessada pela fé, e não numa esperança futura.

Segundo Roger Olson, a carreira de Bultmann se desenvolveu em uma época em que os estudiosos haviam detectado influências mitológicas no Novo Testamento. Mais uma vez, por causa de seu entendimento escatologico, Bultmann faz uma conclusão a respeito disso de forma polêmica. Para ele, e vários outros teólogos, o Novo Testamento refletia o uso de religiões de mistérios, especialmente o mito da vinda de um deus redentor, para descrever a obra de Jesus. Pelo que parece, por causa de sua escatologia, nem mesmo Bultmann acreditava na segunda vinda de Jesus.

Como vimos anteriormente, Bultmann foi contra a ideia de que se for retirado das escrituras os elementos mitológicos, então encontraremos a verdadeira mensagem do Novo Testamento. Bultmann defendeu que os tais mitos deveriam ser interpretados, para que pudéssemos chegar ao verdadeiro sentido do texto. Esse processo recebeu o nome de desmitologização. O que importava para Bultmann é que nós, individualmente, fossemos conduzidos a um encontro extremamente pessoal com a história bíblica.

Em 1941, Bultmann detonou a bomba que ele mesmo fabricou, ao publicar um panfleto que em inglês recebeu o nome de Novo Testamento e mitologia: o problema da eliminação dos elementos mitológicos da proclamação do Novo Testamento. Depois disso, o universo teológico nunca mais foi o mesmo.

Para afirmar minha conclusão de que ele não acreditava na segunda vinda de Jesus por causa de sua escatologia, fica aqui um trecho de suas próprias falas na obra New Testament and Mythology:

“Ninguém que seja adulto o suficiente para pensar por conta própria imagina que Deus possa habitar num céu situado em algum lugar. Não existe mais céu algum no sentido tradicional da palavra. O mesmo se aplica ao inferno no sentido de um submundo mítico localizado debaixo dos nossos pés. Portanto, a história segundo a qual Cristo desceu ao inferno e subiu ao céu deve ser descartada. Não podemos mais esperar pelo retorno do Filho do Homem nas nuvens ou acreditar que os fiéis o encontrarão nos ares”Rudolf Bultmann (1961)

Bultmann acreditava que para o homem moderno boa parte do Novo Testamento não faz sentido algum, portanto, isso é algo irracional. Conforme o exemplo que ele mesmo dá, a cosmologia neotestamentária é obsoleta. Segundo Bultmann os apóstolos do Novo Testamento acreditavam num universo de três andares: o céu, a terra, e o inferno abaixo da terra, o que para ele é algo inconcebível, portanto não devemos crer dessa forma. Se reproduzirmos o mundo do Novo Testamento veremos que ele não fez sentido algum.

Outra coisa que Bultmann afirmou, foi que todo o edifício literal da escatologia do Novo Testamento deve ser abandonado, visto que o Filho do Homem não voltou em glória nas nuvens como os apóstolos disseram que aconteceria e nem o reino de Deus se materializou conforme eles escreveram. Para ele, o ensino neotestamentário da expiação tem como fundamento o imaginário primitivo de culpa e justiça. A ideia de um Filho de Deus preexistente que entra no mundo para salvar o homem é uma ideia gnóstica.

Segundo ele, a verdade é que o Novo Testamento está a todo instante apontando para as mitologias da escatologia judaica e do gnosticismo de inspiração grega com seus dualismos, poderes demoníacos e intervenções divinas. E que isso não faz sentido nenhum para nós, seres humanos da modernidade, cujas mentes estão encharcadas e escravizadas pela tecnologia. Uma interpretação literal do Novo Testamento para nós, com um universo de três andares, significa um sacrifício intelectual (sacrificium intellectum).

Depois dessa sequência de absurdos, Bultmann diz que o termo desmitologização não é adequado, porque a ideia não é tirar os elementos mitológicos, e sim, interpretá-los. Quem tentou fazer isso foi o liberalismo para deixar para nós apenas a ideia do evangelho social, que ele define como amar ao próximo e doar roupas usadas para os pobres.

Bultmann afirma que a desmitologização não começou nos tempos modernos, e muito menos com ele, mas que já no Novo Testamento isso aconteceu. Ele acredita que o Evangelho de João foi escrito para uma geração desamparada porque o Filho do Homem escatologico não havia voltado conforme a esperança judaica. Portanto, João escreve tentando traduzir a escatologia futurista. dos outros três evangelhos (Mateus, Marcos e Lucas) em uma “escatologia realizada”. Bultmann espiritualiza a mensagem do futuro reino de Deus e a converte em uma mensagem, uma verdade, um kerygma para o presente.

Da mesma forma, ele interpreta o juízo e a salvação em termos existenciais. O que isso quer dizer? Quer dizer que devemos ter autocompreensão de nós mesmos, devemos ser autênticos aqui e agora. Já que não há um fim do mundo como a escatologia judaica ensina, o fim do mundo representa o fim da nossa vida como indivíduo, ou seja, nossa morte, e não a morte do universo. Sendo assim, a forma como pensamos sobre nós mesmos define nossa salvação ou nosso juízo.

Fica claro nas falas de Bultmann, que ele, assim como Barth, rejeitaram os elementos da teologia reformada, e também a teologia liberal, e com isso, tomaram um caminho bem distante das duas coisas. A hermenêutica de Bultmann se baseia na existência humana, dessa forma, ele se junta à Barth no projeto de reformular a questão da transcendência de Deus.

Se formos seguir a linha de raciocínio de Bultmann sobre sua escatologia, concluiremos que não devemos interpretar o Novo Testamento da mesma forma que os apóstolos interpretaram, mas que devemos “atualizar a bíblia” para o nosso contexto e interpretar o Novo Testamento a partir da nossa realidade moderna. Sendo assim, devemos desconsiderar a ideia de transcendência neotestamentária que era algo espacial, e abordá-la de forma não-espacial. Ele argumentava que a transcendência Bíblica é uma ideia grega, o que torna Deus alguém atemporal, mas que na verdade a transcendência se refere à autoridade absoluta de Deus.

Transcendência significa que Deus está diante de nós no momento existencial de uma decisão a ser tomada, dirigindo-se a nós com uma Palavra e nos confrontando a responder pela fé. Somente assim, a verdadeira existência é criada. Dessa forma, significa que não podemos falar sobre Deus de forma objetiva, mas somente falar daquilo que ele faz em nós. Vou tentar explicar melhor essa ideia.

Seguindo essa ideia, Deus só se torna conhecido ou real a partir de nossa resposta individual à fé, caso contrário, qualquer conversa sobre os atributos de Deus, sobre a criação que esteja fora de nós não é algo real. Não podemos falar sobre Deus, não podemos falar se for algo distante de nós, algo impessoal e objetivo, só podemos falar sobre aquilo que ele faz em nós. É impossível ter uma conversa teórica sobre Deus, pois ela não será verdade. Falar sobre Deus exige que tenhamos o conhecido face a face. Devemos ter cuidado ao concluir de forma extrema as falas de bultmann. Ele não estava reduzindo a teologia a um conceito antropológico, mas tornou suas ideias sobre o indivíduo e a doutrina do Ser de Deus inseparáveis, pois é impossível para o homem ter revelações externas sobre Deus, sem antes ter tido um encontro pessoal com ele.

A INFLUÊNCIA EXISTENCIAL DO FILÓSOFO HEIDEGGER E A FÉ PRIVATIZADA

Em 1957, Bultmann lançou outra bomba no universo teológico ao publicar um artigo com o título “É possível fazer exegese sem pressupostos?” Sua conclusão é que NÃO É POSSÍVEL, mas a questão é encontrar os pressupostos corretos. E para Bultmann, o pressuposto correto era a filosofia existencialista que estava em alta na época.

Bultmann teve contato direto com Martin Heidegger, e na mesma época, Jean-Paul Sartre estava escrevendo seu livro O ser e o nada. Anos depois, a obra de Heidegger O ser e o tempo, foi publicada em alemão. A filosofia existencialista de Heidegger tinha como pressuposto que o ser humano foi “lançado” no universo num estado de angústia e desolação, e como indivíduo, cada um é responsável por buscar uma existência autêntica.

Utilizando dessa filosofia, Bultmann concluiu que a fé é uma decisão pessoal sobre o viver autêntico, e a fé só pode ser compreendida de forma extremamente individual. Sendo assim, o existencialismo de Bultmann coloca em risco a verdadeira fé cristã que consiste em um viver coletivo e social.

“Ele deu pouca ênfase à abrangência da fé sobre a vida do crente ou sobre a vida corporativa dos crentes em comunidade. Também não encontramos em sua proposta os fundamentos para um envolvimento com a sociedade em geral. Pelo contrário, sua visão existencialista incentiva uma ênfase interior que pode facilmente levar à falta de consideração para com as implicações políticas e sociais do evangelho.”Roger Olson

Essa ideia individualista é resultado da definição sobre a Justificação pela Fé dada por Lutero, mas esse é assunto para outro texto. O que fica evidente é que a proposta teológica de Bultmann ressalta a necessidade de justificação pessoal, o que não leva ninguém a santificação, à dinâmica do viver cristão em si e do crescimento espiritual como discípulos de Jesus dentro de um relacionamento comunitário uns com os outros e com o mundo.

Olhando para os frutos da teologia de Bultmann, eu, como um ser humano do século XXI, consigo identificar vários elementos dessa teologia espalhadas por todo lado. Posso concluir que essa teologia oferece uma doutrina da salvação (soteriologia) pouco útil, e nada de uma eclesiologia (vida cristã comunitária). Bultmann também oferece um Deus limitado, ou seja, um Deus que só pode ser conhecido individualmente, sendo assim, a teologia só pode ser resultado de experiências pessoais, o que é um problema enorme que já falei em outros textos.

Outro ponto problemático em utilizar a filosofia de Heidegger, é que o filósofo era humanista, que produziu uma filosofia humanista, ou seja, Heidegger buscou encontrar respostas para o dilema humano dentro do próprio indivíduo sem qualquer contribuição divina. O que levou Bultmann a criar uma cristologia (Doutrina de Cristo) existencialista. Como assim? Ele acreditava na crucificação de Cristo, mas não via Jesus como Filho de Deus que expiou os pecados do mundo. A obra de Cristo tem um significado existencial, portanto, não pode ser atribuída a um fato histórico. Jesus era uma mistura de realidade e mito, mas que o lado mitológico deve ser interpretado de forma antropológica e não cósmica; não como imagens objetivas do mundo, mas sim como expressões de nossa compreensão da existência humana.

Assim como Kahler, mencionado no início, é esse o sentido da história que Bultmann visualizava, que a teologia não está interessada em comprovar a existência de nada, mas com o significado dos relatos bíblicos para o indivíduo que se achega a ela, mesmo que os significados sejam totalmente diferentes, “se aquilo for verdade para você, é isso que importa”, a verdade do outro pode não ser a sua, mas está tudo bem. Esse é um problema enorme que enfrentamos hoje. Contra Bultmann, se levantou Oscar Cullmann, que se opôs fortemente à teologia Bultmanniana, que será assunto de outro texto.

CONCLUSÃO

A teologia de Bultmann foi motivada pela preocupação em permitir que o evangelho chegasse à mente moderna sem a cosmovisão mitológica contida na mente dos apóstolos. Em resumo, Bultmann fez uma nobre tentativa de reafirmar a transcendência de Deus diante da ênfase à imanência encontrada na teologia liberal do século 19. Mas a sua proposta radical de desmitologização dentro dos modelos existencialistas, motivada pelo desejo de proclamar a antiga mensagem para a mente moderna, o levou a uma descrição limitada justamente daquela transcendência que ele queria tanto preservar.

Tendo em vista que na teologia de Bultmann não se pode falar de Deus a não ser em relação ao ser humano, e que Deus não age no mundo a não ser na esfera privada da fé pessoal, as dimensões mais amplas da transcendência de Deus face a face com sua criação acabam sendo eliminadas do campo de atuação do teólogo. Apesar de seus esforços proveitosos de oferecer bases existenciais para a reconstrução da teologia no mundo moderno, Bultmann simplesmente não conseguiu escapar dos problemas apresentados pelo Iluminismo e que não foram solucionados pela teologia do século 19, à qual ele reagiu tão fortemente. Ele não foi capaz de reafirmar a transcendência de Deus em seu sentido pleno e bíblico.

Rudolf Bultmann mudou o campo dos estudos do Novo Testamento, o que facilitou o estudo dos documentos extrabíblicos para a compreensão do mundo do Novo Testamento. Hoje colhemos os frutos de seus erros, mas também desfrutamos de um conhecimento mais amplo da época de Jesus e dos apóstolos.

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