Lucimara Letelier
8 min readSep 5, 2018
Fonte web

Independência, ou Morte!

por Lucimara Letelier

Foi morte. Sem independência, o museu morreu.

E nós? Brasileiro(a)s? A terra pede também uma morte do que somos, para deixarmos nascer algo novo em nós. O que será? Quem seremos? O que seremos, juntos?

O que você grita neste 7 de setembro? O que ecoa dentro de você? Independência, ou Morte?

O diagnóstico é claro. Só não vê quem não quer, quem não olha, quem não escuta.

São múltiplos olhares individuais e coletivos sobre o que houve e como encaminhamos soluções, enquanto refletimos sobre políticas e burocracias que permearam a tragédia. A reflexão que trago aqui tem o tamanho da complexidade com a urgência de um chamado para o despertar de toda uma nação que pode agora escolher qual o grito de independência decidirá dar.

Se me permitem, peço licença para ampliar o olhar sobre o fogo que levou o patrimônio brasileiro de volta para a terra. Levou o patrimônio sim, mas não a memória. Esta podemos cuidar para que não seja esquecida. E a identidade brasileira também podemos reconstruir, a partir do novo que brota, sem remendos ao velho que já não nos serve mais. Aliás, precisamos ter a coragem de olhar para este episódio como uma verdadeira oportunidade de construir a identidade brasileira que queremos, que precisamos, daqui em diante. Mas só acontecerá se estivermos dispostos a olhar em profundidade para o que realmente se deu aqui, nesta tragédia. E como ela ressignifica tudo quando olhamos de novo nossa própria história por um ângulo livre de lentes pré-definidas.

Quando olho para a imagem do dia seguinte, das cinzas de um ex-palácio vazio, oco, em ruínas, que em poucas horas perdeu tudo… (ou, quase tudo: não perdeu o chão… ) Vejo que pela primeira vez é possível ver a base do museu. O chão do museu visto de cima, de forma permeável, transparente, sem muros, sem teto, sem barreiras, sem o glamour do reinado que impedia esta visão. O museu vulnerável. O museu nú.

E vendo a terra que o museu habita, lembro do território do qual estamos falando. E da terra onde estamos pisando.

E ao buscar trazer uma fala conectada a este chão, sinto que este episódio foi um pedido de socorro do centro da terra manifestado em Fogo, como um grito desesperado pedindo escuta, mudança e despertar urgentes! Não nos esqueçamos, que o fogo é purificação.

Na noite de 02 de setembro, os cinco elementos da natureza sobre os quais tudo é criado no universo, Fogo, Água, Ar, Éter e Terra estiveram todos presentes juntos formando um vulcão em plena explosão manifestando o desejo da terra de paralisar algo que não pode mais seguir. Precisa parar. Retroceder. Recomeçar. Como se pudéssemos apertar a tecla “rebobinar”.

Então atenderei a este pedido da terra.

Vamos rebobinar.

Este palácio ocupado pelo Museu Nacional, foi, antes de tudo, uma propriedade de um traficante de escravos, que cedeu a melhor casa no local para Dom João quando chega ao Brasil. Neste momento princípios econômicos norteados por relações de privilégios com a corte e negociação dos interesses da família real, criaram o conceito de “amigo do rei”, quando recursos desviados como “caixinha” e em troca de propina por títulos de nobreza, são, o que historiadores mais tarde identificariam como o princípio da cultura de corrupção no Brasil, o regime do “toma lá, dá cá”, desde o Brasil Colônia. Algo que claramente podemos identificar no estado em que chegamos na política brasileira, a mesma que rege o país neste momento de total descrença dos eleitores, e a mesma que ignorou a existência do museu, até que ele morresse, quando avaliou quais benefícios eleitorais de última hora poderia usufruir.

Ao lembrar deste chão, sinto quatro pedidos da terra: o primeiro é compreender que estamos falando de um despertar para perceber um patrimônio que erguemos sob às custas de uma relação social desigual e desumana, não reconhecida, não retratada e não incluída, como a da escravidão brasileira que construiu as bases do Brasil que conhecemos e permanece até hoje. O pedido de despertar para uma nova consciência social.

O segundo, a compreensão de um sistema econômico calcado em privilégios de “poder sobre” nos quais não há qualquer perspectiva de abundância equitativa, e sim de escassez, na qual a terra pede para despertarmos para que algo muito antigo possa ser revisto, e que apenas apontar o dedo para os políticos poderosos e corruptos que trataram o museu com descaso é leviano quando não olhamos para nossos próprios privilégios individuais que estão de alguma forma inter-relacionados com o sistema econômico corrupto vigente. Um pedido para construirmos juntos uma nova economia baseada no “ganha ganha” que é colaborativa, e só serve quando todos ganham. Todos mesmo, inclusive o planeta. E, que sendo construída conjuntamente, nos imuniza contra qualquer tentativa de “toma lá, dá cá.” O pedido de despertar para um nova consciência econômica.

E então, chegamos a data do incêndio (02 de setembro) que coincide com a data em que a princesa Maria Leopoldina assinou o decreto da Independência do Brasil neste mesmo palácio. E me faz pensar. Somos independentes? De que? De quem? De quais? Conseguimos já constituir uma identidade brasileira própria nossa com espaço para sermos e nos representarmos culturalmente sendo quem realmente somos coletivamente? Me lembro de múltiplas iniciativas de decolonizar os saberes sobre tudo o que vivemos neste país, na educação, na língua, nas relações étnico-raciais, na cultura e inclusive nos museus e suas narrativas contadas em memória imaterial e objetos. Decolonização é urgente, mais do que necessária e agora caminhos se abrem para esta discussão de forma mais tangível e presente. Assim, o terceiro é o pedido da terra do despertar para uma nova visão de mundo que nos permita nos olhar como iguais. Um pedido para nos tornarmos independentes de valores que não mais servem à vida. Que não nos cabem mais como sociedade. Que nos reconhece como interdependentes, mas que não nos coloca mais como dependentes da cultura e dos valores dos colonizadores que dizimaram nossa cultura local e desvalorizaram toda e qualquer manifestação ancestral e dos povos tradicionais que habitavam (e ainda habitam) esta terra que pisamos e compartilhamos. E que estão vivos, dentro de nós. E que também queimaram e choraram ali, junto com todos.

E por último, a falta d’água. No momento de tentar apagar o fogo, todas as TVs brasileiras noticiaram a questão da água enquanto milhões de pessoas assistiam desconfortavelmente, impotentes, sua história sendo queimada e vendo que até ali, durante cerca de quase uma hora, nem água tínhamos, mesmo diante de um lago em frente ao museu. A terra nos pediu atenção à crise hídrica, a escassez da água ainda tratada como um problema para ambientalistas, sem a compreensão macro de que estamos falando de morte de uma grande parte da população, de uma crise econômica e social drástica com a desigualdade na distribuição dos recursos naturais, e que, sem água, morremos todos. Ali, diante daquele paredão vermelho do fogo, passamos todos por um momento de dor, de medo, de silêncio, até que a água chegasse por um alívio temporário… um último suspiro de esperança. Essa dor conjunta nos leva a um pedido da terra para uma nova consciência ambiental, na qual todos nós, de qualquer área de atuação, precisamos compreender e passar a agir para defender e regenerar nossos recursos naturais.

Um olhar sistêmico para o que se deu no incêndio do Museu Nacional, nos faz perceber a complexidade com a qual estamos lidando, passando a entender a representação simbólica do “Museu” como um campo de conhecimento e compartilhamento de saberes e representação da cultura de povos e nações e a do “Nacional” como um símbolo de identidade deste território brasileiro simbolizado aqui por este episódio de que somos uma nação desigual, com um sistema econômico falido com baixa consciência de nossa ancestralidade e uma visão de mundo que exclui o mundo natural de nós, o ambiente que co-habitamos e que exclui também parte de nós, índios e negros, de toda narrativa de poder possível.

E deste novo lugar, acho que o nosso grito agora, como nação, passa a ser, “Interdependência, ou Morte!”.

O momento não é de soluções simplistas e imediatistas. O momento é de união. De aprendizagem de novos caminhos, e desaprendizagem de velhos paradigmas. Um lugar de olhar para a interdependência das coisas. E, aqui, faço uma pausa para lamentar todos os danos irreparáveis ao patrimônio cultural brasileiro e me solidarizar com todos os profissionais de museus, nos quais me incluo, na tarefa de cuidar dos museus, da memória e agora, de reconstruir o que o Museu Nacional pode vir a ser.

Sinto um convite a olharmos a morte do museu pela perspectiva dos princípios básicos do budismo, do taoísmo, da hipótese de gaia de James Lovelock e da ecologia social, de que os sistemas vivos incluem a morte para evoluir. É a partir da forma como encaramos a morte, que aprendemos a viver, como um ciclo que se renova. E nosso ponto de partida para a revitalização de tudo, é aceitar isto. E é assim que espero, profundamente, que ao olharmos todos de forma ampliada, sistêmica para este episódio, possamos cuidar do que está vivo em nós, do que está vivo em nossa nação e do que está vivo neste chamado urgente da terra para nós. Para que possamos nos disponibilizar a aprendermos juntos sobre nossa capacidade de regenerar, começando por nós mesmos, nossos valores, ampliando para as terras que habitamos, incluindo os museus, os patrimônios, mas em qualquer circunstância, compreendendo que uma consciência viva transforma, recria, canaliza e permite chegar o que vem depois deste portal da morte e que já está vivo*.

  • Lucimara Letelier fundou um movimento Museu Vivo, plataforma de inovação e sustentabilidade em museus. Única palestrante brasileira em Londres na Conferência Museum Next sobre tendências para museus, junho 2018, palestrou sobre museus mortos por perda de relevância. E, três dias antes do incêndio do Museu Nacional, lançou no MAR, Museu de Arte do Rio, o Manifesto Museu Vivo, que diz que museus vivos podem morrer. Aqui um trecho: “ Museu Vivo é o museu que interage com tudo, com todos e todas. O museu que escuta, o museu permeável, que se molda, que se muda. Se está vivo, pode morrer. Está disponível e aberto para deixar morrer partes de si para renascer novos espaços, para se repensar. O Museu Vivo colabora, participa, integra, inclui. O Museu Vivo se movimenta. (www.museuvivo.com)
  • Lucimara Letelier é gestora cultural e social há 19 anos. Mestre em Administração Cultural (Boston University) e formada em Design em Sustentabilidade pelo Gaia Education/Unesco Global Action. Atuou no British Council, ActionAid, Guggenheim Museum NY, Childrens Museum Boston, Orquestra Sinfônica Brasileira. Curadora de arte & cultura no Festival ColaborAmerica. Professora de MBA em Gestão cultural e de museus e integra conselhos como ICOM Brasil, ICOM MPR e ActionAid Brasil. (Biografia completa no Linkedin)
Lucimara Letelier

Director of RegeneraMuseu, consultancy in sustainability for museums. 23 years working in the arts&culture, museums and nonprofit sectors. Change Maker!