BALLROOM — Glamour, orgulho e resistência.

Lúcio Souza
6 min readMay 18, 2017

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O retorno dos holofotes para uma cultura que sempre lutou pela liberdade ser diferente

Na Nova York dos anos 80, a comunidade LGBT encontrava refúgio nas ballrooms. Muito além de uma simples festa, a ballroom era e ainda é um espaço de acolhimento, um lugar seguro onde essas pessoas que viviam diariamente às margens da sociedade poderiam, ao menos por uma noite, se sentirem bem consigo mesmos.

A Cultura Ballroom é uma cultura de temática LGBT que teve seu primeiro ápice na década de 80, entretanto, há relatos de que essa cena cultural existe e resiste desde antes da década de 60. De acordo com Wanderson César, drag queen, estudante de teatro na UFPE e pesquisador da área, essa cultura surgiu na periferia americana como uma válvula de escape para a comunidade LGBT que sentia necessidade de um espaço onde pudessem ser eles mesmos.

Elenco do documentário Paris is Burning, de Jennie Livingston (1990)

As ballrooms são uma espécie de baile nos quais as pessoas se reúnem para disputar em diversas categorias, os vencedores recebem troféus e a alcunha de legendary, torna-se uma figura de grande prestígio. Uma categoria importante da ballroom é a runway, um desfile temático no qual as pessoas têm de “servir a realness” do tema, ou seja, devem passar a maior verossimilhança possível com o tema definido, seja desfilando como uma supermodelo ou como um empresário branco.

A ideia por trás da realness era mostrar que mesmo estando numa situação de marginalidade social e tendo acesso negado a determinados espaços e profissões, as minorias sabiam se portar como tal,. César declara que “a ballroom é um ato político por si só, por ter surgido num contexto social norte americano no qual o fato de você ser gay já é ruim e também negro pior ainda, e esse povo todo se junta para fazer uma festa e emular essa vida de alto luxo e dizer eu estou aqui e vou alcançar esse luxo.”

Entretanto, até meados de 1972, o circuito das ballrooms era dominado pelas pessoas brancas que sempre venciam as disputas apoiados sobre o padrão de beleza eurocêntrico, até que a lendária drag queen negra Crystal Labeija criou a primeira house, a House of Labeija, e deu início a um segmento de ballrooms voltadas para as pessoas LGBTs negras e latinas.

A House é um coletivo com relações de afeto e hierarquia semelhantes a uma família que é liderado por uma mother que no caso das Labeija era a própria Crystal. Era bastante comum, principalmente no auge dos anos 80 com o surto do HIV, que as mothers adotassem em suas houses jovens gays e transsexuais que haviam sido expulsos de casa e buscavam abrigo para passar a noite nas ballrooms.

Um outro elemento de grande destaque é o Voguing, uma dança de rua inspirada nas poses das modelos na revista Vogue que era um dos únicos materiais de entretenimento a entrar nos presídios de Nova York. Como é dito no documentário Paris is Burning de Jennie Livingston, o voguing é uma versão gay das batalhas de hiphop. E no final dos anos 80 o voguing atingiu a cultura pop mainstream através do clipe Vogue da cantora Madonna que havia entrado com a cena ballroom de NY e ficou encantada com aquele cenário de resistência e orgulho.

Para Amethyst 007, estudante de dança na UFPE e mother de uma house de voguing, a ballroom é um espaço político no qual as pessoas podem performar enquanto parte de uma minoria e a própria performance em si é um ato de resistência diante das normas e convenções sociais. “Cultura Ballroom traz um empoderamento, a questão de se sentir negro, gay, mulher, ser e se afirmar como tal, é uma questão de aceitação, você aprende a se aceitar e a aceitar o outro como ele é.”

De volta à cultura mainstream

A cena ballroom está voltando a explodir, é comum em grupos de cultura pop voltados para pessoas LGBT, o compartilhamento de vídeos de batalhas de voguing ou runway. O grande pólo cultural continua sendo Nova York, lar das houses que surgiram nos anos 80 e resistem até hoje, mas no Brasil existem grupos que se movimentam em prol de uma cena ballroom genuinamente brasileira, já que, como diz Wanderson, nenhuma cultura é “importada” 100% fidedigna e um grande exemplo disso é Maria Teresa Moreira, mais conhecida pelo apelido de Tetê Moreira, que fusiona voguing com o “passinho” dançado ao som do funk nas periferias cariocas.

Tetê faz parte de um coletivo chamado Trio Lipstick, em parceria com Paula Zaydan e Raquel Parreira, que serve de referência para a cena ballroom nacional enquanto dançarinas e realizadoras do BH Vogue Fever, um evento de cultura ballroom com workshop e sua própria ball. O Lipstick já fez uma residência artística em Nova York, onde entraram em contato com as grandes houses do voguing e Tetê chegou a ser adotada por Leiomy Maldonado, uma mulher trans, negra, mother da House of Amazon e um dos maiores nomes da cena ballroom mundial atualmente. Leiomy costuma gravar vídeos para a internet e num deles proferiu a seguinte frase que demonstra que o quão viva se mantém essa cultura: “A Ballroom nos ensina a lutar pelo que acreditamos…para vivermos orgulhosos.”

RuPaul, uma lendária drag queen ficou famosa nos anos 90 como supermodelo e que hoje tem seu próprio programa chamado RuPaul’s Drag Race que resiste na televisão norte americana há nove anos, disse em entrevista à Folha de São Paulo que o drag sempre foi político. “Pessoas nesse planeta são criadas num sistema que as força a escolher uma identidade e se prender a ela. O drag é o oposto disso, ele afirma que você pode mudar e ser o que quiser a cada minuto. E isso é político e revolucionário.” O reality sempre trouxe temas polêmicos e revolucionários através das drags que falam de sua vivência, como sofreram e lutaram para se aceitarem e conquistarem o respeito da família e agora o programa se abre para a participação de mulheres cis que fazem drag.

Em meio ao crescimento de governos conservadores como o de Donald Trump, RuPaul acredita que a cultura drag, que tem em seu programa a maior visibilidade na grande mídia desde meados dos anos 90, deve se firmar cada vez mais como espécie de célula de resistência e não somente à discriminação contra homossexuais e transexuais, mas também à misoginia e à violência doméstica. Ela ainda diz que a presença do Drag Race acendeu um fogo numa juventude que não sabia o quanto de luta existiu no passado para que algo como esse programa pudesse ser exibido na televisão.

“é resistência, é chegar nas pessoas e dizer eu sou negro, eu sou gay e estou performando como tal.” Amethyst 007.

Amethyst e César fazem parte do coletivo Vogue 4 Recife que organiza treinos abertos semanais no Parque da Jaqueira onde exploram algumas das categorias de uma ballroom e repassam para os alunos o contexto dessa cultura. “Futuramente nós do coletivo pretendemos ampliar um pouco mais e explorar o lado teórico, histórico, social e político da cultura ballroom, da cultura drag que está inserida dentro da cultura ballroom, e assim, mostrar que o vogue não é só viado dando pinta, não é só se jogar num dip ou bater cabelo, é mostrar as pessoas nas entrelinhas que também é resistência, é chegar nas pessoas e dizer eu sou negro, eu sou gay e estou performando como tal”, declara Amethyst.

César complementa a fala de Amethyst dizendo que vê a comunidade LGBT recifense muito presa a um certo complexo de boates que tem foco no público branco de classe média. “O Vogue 4 Recife quer trazer a ballroom não somente como um evento, não somente como uma festa, é realmente resgatar todo esse ato e histórico político presente na cultura ballroom americana.”

A cultura ballroom está ressurgindo e voltando a ocupar espaços na cultura pop celebrando a diferença de gênero, sexualidade e raça. E dessa vez, a comunidade que faz essa cultura acontecer está munida de todo o significado político que a ball adquiriu ao longo dos anos. Eles e elas estão decididos a mostrar que o orgulho de ser uma minoria é um grande enfrentamento às convenções sociais que insistem em empurrá-los para a marginalidade.

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