A lira dos 30 anos

lurds
4 min readOct 3, 2018

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É completamente desolador verificar as pesquisas e descobrir que quem mais vota no candidato defensor de um projeto ampla e claramente violento é a geração que nasceu sobre a égide de um novo país.

Ou seja, a minha geração, gente que tá ali entre os seus 25–35 anos. Pessoas que tiveram a oportunidade de nascer numa época em que se finalmente pensou nos direitos à infância (ECA), a viver sem ser discriminados por suas crenças ou por seu gênero (Artigo 5º da CF88), sem sofrer racismo (Estatuto da Igualdade Racial), com a inclusão de pessoas com deficiência ao convívio social que lhes era negado (Estatuto da pessoa com deficiência). Passamos a reconhecer que todas as formas de amor e formações familiares devem ser respeitadas (Reconhecimento das Uniões Homoafetivas).

Enfim, eu poderia encher esse texto de exemplos de conquistas que fizeram com que a maior parte da população, ainda que aos trancos e barrancos, finalmente fosse vista como gente. Vivemos a maior prosperidade econômica desse país. Vimos milhares de famílias saindo de condições miseráveis, vimos o crescimento de empresas, vimos o amplo acesso à universidade pública. Tivemos o privilégio de poder nos preocupar com outras coisas.

Eu fui uma adolescente incauta que já relativizou violências históricas. Ali pelos meus 11 ou 12 anos eu cometi a pachorra de achar que nazismo era só o “oposto” de comunismo. Fiz comentários horríveis e racistas sem nem me dar conta do quanto era errado. Mas eu tive a oportunidade de ter pessoas, amigos, professores, uma família, que em termos gerais, afastaram de mim o fantasma (tão real) indefensável. Sou cria da escola pública, que minha mãe do alto dos seus 64 anos ainda abraça e defende todos os dias nos seus quase 50 anos de carreira.

Estudei no Colégio Militar de Brasília, que diferente da noção geral (ao menos na época), me deu a oportunidade de ter os professores de história que eu jamais poderia imaginar. Professores que não diminuíam a gravidade da ditadura. Convivi com militares que falavam em amplo e bom som que a premissa das suas instituições era manter o respeito às leis atuais, que as Forças Armadas existem, acima de tudo, para manter a soberania nacional sem conspirações ou conchavos de planos de poder. Hoje eu tenho que ver a cadela do fascismo latindo pra quem quiser. E usando uma instituição que em tese reforçava o caráter de assistência, que valoriza a formação do professor.

Eu e meu irmão fomos criados basicamente por nossa mãe. Mãe essa que foi a primeira feminista da minha vida. Do seu jeito ela me ensinou que tinha que me fazer sem depender de homens. Que o mundo é hostil mas que a gente não tem que baixar a cabeça. Me ensinou a ler. Me ensinou sobre política. Me ensinou que a água sempre bate na bunda de quem não é ninguém. Não vivi dificuldades mas sempre estivemos ali batalhando. Minha mãe teve meu irmão em 1974, aos 20 anos de idade, no auge da ditadura. Ela me explicou o que era censura. Me mostrou o Pasquim, me mostrou a obra de artistas que foram exilados e perseguidos.

Fiz comunicação social na UnB. Tive professores que ouviram meus dramas. Fiz os melhores amigos do mundo que me ajudaram no pior momento da minha vida. Trabalho desde os 19 anos. Não sou nenhuma estrela, mas sei que faço bem tudo que me proponho. Estou ironicamente no momento mais feliz dessa jornada profissional. Me dói pensar que seremos dos primeiros nichos profissionais que vão sentir o chute do coturno nos dentes.

Vivi relacionamentos horríveis, fui magoada e magoei pessoas. Mas isso me fez mais forte e consciente. Minha bolha me protege muito bem. Não tenho amigos nem familiares próximos que demonstrem concordar com a legitimação do discurso da barbárie, do retorno ao passado, de abrir mão da nossa existência democrática, ainda tão nova. Tão nova quanto a minha geração.

Sei que to falando pra quem entende todas as implicações da legitimação desse projeto que apaga as poucas e sofridas conquistas que tivemos nesses 30 anos. É só um desabafo. Política, na minha vida, sempre foi tão natural quanto qualquer outro assunto. E não seria diferente agora.

Eu valorizo as conquistas que tivemos nos anos 2000, critico os rumos que o partido que encabeçou essa mudança teve, mas nada justificaria me aliar com aqueles que jamais hesitariam em cortar a minha cabeça, a sua, a da minha mãe, dos meus amigos, do pobre que andou de avião, do pobre “burro”, do “esquerdista”, das “feministas que merecem comer em tigelas”, dos “negros de arrobas que nao servem nem pra procriar”, das lésbicas, dos gays, das travestis, das pessoas trans, das mulheres pobres que são “incubadoras de bandidos”, que ele e seus comparsas, que as elites magoadas preferem mortos. A lindeza da democracia vem da gente reclamar de um amigo que tenha um alinhamento divergente, mas que nós sabemos que num momento como este não vai se furtar a estar do nosso lado.

Constato com tristeza que talvez a minha geração tenha que passar por isso pra gente finalmente aprender com a história que ninguém mais tem que viver assim.

Resistamos. Estamos juntos.

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