Sitemap

Cleise Vidal: cores e memórias de trânsitos e deslocamentos entre Paraguai, Brasil e Indonésia.

5 min readSep 21, 2023
Press enter or click to view image in full size
Crédito: Maria Eduarda Balbinot/@mirada.fotografia.

Quem me conhece sabe que Foz do Iguaçu não é o meu lugar. Mas, eu tenho encontrado pessoas muito especiais aqui. Tive a sorte de cruzar o meu caminho com o da artista Cleise Vidal, uma das responsáveis por deixar a cidade mais viva/colorida. Transformei em texto as horas que passamos conversando em seu ateliê (essa mulher tem muita história pra contar!).

Cleise Vidal (Foz do Iguaçu/PR, 1982) é artista visual, designer e realizadora cultural. Dona de um traço fluido, inspirada nas cores e memórias de trânsitos e deslocamentos entre Paraguai, Brasil e Indonésia, cria imagens que gravitam em torno do feminino e da natureza. Em seu trabalho, investiga a relação entre arte e espiritualidade, como forma de conexão consigo mesma e com suas origens. Destacam-se em sua produção, o desenho e a pintura em diferentes escalas e suportes, sendo corriqueiro encontrar suas criações pelas ruas de Foz do Iguaçu. Para a artista, sua criação é uma ferramenta para curar feridas abertas por uma sociedade apartada da natureza. Movida pelo poder curativo da arte, Cleise se expressa sobretudo através do desenho feito à mão. Se a arte é uma prática de cura, o desenho é uma forma de reza.

A escritora Annie Ernaux (1940-) nos lembra, no livro Os anos, que “história familiar e história coletiva são uma única coisa”. Compartilhar a trajetória biográfica de Cleise ajuda a visualizar a vida de gente comum da cidade de Foz de Iguaçu, que, apesar da fama mundial, como um grande destino turístico, tem uma dimensão social menos comentada. Ela é filha de seu Éden, natural de Antonina, no litoral paranaense, e de dona Lídia, paraguaia de San General Aquino — que, quando criança, migrou com a família para Foz em busca de asilo político durante a ditadura de Stroessner (1954–1989). Cleise e seus três irmãos são a primeira geração de iguaçuenses, e cresceram durante o boom populacional de Foz, a partir da construção da usina hidrelétrica de Itaipu entre as décadas de 1970 e 1980 — empreendimento binacional desenvolvido pelo Brasil e pelo Paraguai no rio Paraná, na fronteira entre os dois países. Assim como outros migrantes transnacionais, sua família foi atravessada por discriminações e xenofobia. Cleise teve que ir muito longe para perder a vergonha de suas raízes paraguaias. Foi apenas em 2010, quando se mudou para a Indonésia, e lá construiu família e experimentou a maternidade, que percebeu semelhanças entre as pessoas locais e seu tronco materno — apenas lá viu, de forma mais evidente, a beleza de seus antepassados. Hoje percebe que o gosto pela manualidade é também uma herança paraguaia: seu avô é um alfaiate, avó e mãe, costureiras, e seus primeiros manuseios de cores foram com retalhos têxteis.

Diante da memória dos trânsitos impostos, Cleise associa a palavra fronteira, tão gasta em cidades como Foz do Iguaçu, à ideia de abismo. De fato, o sentido militarista, excessivamente eurocêntrico e masculino, das fronteiras nacionais, é limitante e violento. O incômodo da artista encontra aproximações com a cosmovisão guarani, onde fronteiras têm um sentido ligado à ecologia, memória e parentesco. Povo caminhante, os guaranis, donos ancestrais do território iguaçuense, entendem o deslocamento como prática de saúde e sociabilidade.

Cleise Vidal, “Sustenta”, 2023. Foto: site da artista.

Antes de se mudar para o país asiático, Cleise andou bastante. Diante da ausência de cursos voltados para as artes em Foz, se mudou para Curitiba no início dos anos 2000 para cursar Design Gráfico no Centro Universitário Positivo (Unicenp). Na capital, vivenciou um momento de fervor artístico em decorrência da inauguração do Museu Oscar Niemeyer, em 2002. Após concluir a faculdade, em 2006, entendeu que precisava continuar se movimentando e teimou em viver em Barcelona, na Catalunha. Permaneceu por lá por cerca de dois anos, andarilhando pelos interiores e por países vizinhos, e depois embarcou num navio, trabalhando como fotógrafa até finalmente se mudar para Bali, na Indonésia. Nesse ponto do mapa, houve uma virada de chave que possibilitou o início de sua carreira profissional como artista visual.

Em 2017, após um período de muita produção e circulação das suas obras, quando entendeu que podia viver de arte, decidiu voltar para Foz, para ficar perto dos seus mais velhos e colaborar para que a cidade fosse mais acolhedora com pessoas que sonhavam em ser artistas. Encontrou uma cidade diferente, sobretudo com a instalação, em 2013, da Universidade Federal da Integração Latino-americana, a Unila, e de seus cursos ligados a arte e cultura, que têm colaborado para ampliar as chances de moradores interessados nestas áreas permaneçam na cidade, além de criar novos intercâmbios culturais entre diversos países da América latina e Caribe.

Press enter or click to view image in full size
Cleise no quintal de seu ateliê-refúgio e residência. Crédito: Maria Eduarda Balbinot/@mirada.fotografia.

Atualmente, além de trabalhar como artista, se dedica a projetos que visam a ampliação de espaços para circulação de arte local, sempre atuando em parceria com outros agentes culturais da cidade, entre eles o marido, Hero Aditya (1985-), a jornalista Daniela Valiente (1974-) e a artista visual Debora Berté (1990-). No Paraná, teve três exposições individuais em 2022: Flotar, Perceba e Rizomática. Como realizadora cultural, destaca-se sua participação no espaço Casinha Laranja (2020–2021), os projetos Zoom — Encontro de Artes Visuais (2019), Walk in Art (2018–2019) e Musas — Papéis ressignificados (2018–2019). É integrante do coletivo Artérias e co-idealizadora do Foguete, impresso de arte e cultura de Foz do Iguaçu e região iniciado em 2021, e do podcast Fogueteando, iniciado em 2023. Em reconhecimento pelo seu trabalho, foi contemplada com o prêmio Trajetórias Culturais da Lei Aldir Blanc (2021).

Vive e trabalha no centro de Foz do Iguaçu, num ateliê-refúgio próximo aos rios Paraná, M’Boicy e Monjolo, que recebe vez ou outra a visita de tucanos e outros bichos da mata. É sobretudo neste espaço, que sonha com o dia em que os moradores de Foz desfrutarão de um equipamento voltado para artes visuais de utilização permanente para chamar de seu.

Press enter or click to view image in full size
Ateliê da artista, Foz do Iguaçu. Crédito: Maria Eduarda Balbinot/@mirada.fotografia.

Para acompanhar a artista: @cleisevidal. Para comprar suas obras e fomentar o cenário independente: https://www.cleisevidal.com.br/.

--

--

Luísa Estanislau
Luísa Estanislau

Written by Luísa Estanislau

Escrevo, pesquiso e faço projetos sobre artes, culturas e miudezas de Brasil. www.luisaestanislau.com

No responses yet