Como o seriado ‘Chaves’ retratou uma das maiores polêmicas da história do futebol mexicano

Luís Francisco Prates
12 min readNov 26, 2018

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Encerramento do episódio “A caricatura do Professor Girafales”, de 1977: a flâmula do Atlético Español, clube mexicano que estava em evidência na época, aparece ao lado da caricatura do “Mestre Linguiça” (Foto: Luís Francisco Prates)

Quem me conhece sabe que assisto ao seriado mexicano Chaves (El Chavo del Ocho) todos os dias, seja na TV ou no YouTube. Falar que a obra de Roberto Gómez Bolaños (1929–2014), o Chespirito, ficou conhecida a nível global por conta do seu humor simples e inocente e das lições dadas pelas histórias, além de proporcionar aos latino-americanos uma profunda identificação com a realidade retratada na série, é “chover no molhado”. Observar cada detalhe dos episódios desperta a nossa curiosidade. Na última terça-feira (20), no encerramento do episódio inédito “A caricatura do Professor Girafales”, transmitido pelo canal por assinatura Multishow, reparei a presença da flâmula de um time do qual nunca tinha ouvido falar: o Atlético Español FC. O referido episódio é uma versão de 1977, enquanto a versão que costuma passar no canal aberto SBT é do ano de 1974.

No dia seguinte, quarta-feira (21), no episódio “O disco voador”, de 1977, a tal flâmula voltou a aparecer, na sala de estar da casa do personagem Seu Madruga (Don Ramón). Afinal, que time é esse?

Fui pesquisar e constatei que o Atlético Español causou um grande alvoroço no México nas décadas de 1970 e 1980. Em 1971, o Necaxa, um dos clubes mais tradicionais e mais populares do país, fundado em 1923, estava atolado em dívidas e foi comprado por empresários espanhois. Os novos proprietários, então, decidiram fazer mudanças drásticas no clube sem consultar a torcida. O nome foi alterado de Necaxa para Atlético Español, enquanto as cores passaram de vermelho e branco para preto e branco e o apelido mudou de Los Rayos para Los Toros. O escudo era justamente o que está na flâmula da casa de Seu Madruga: um touro ao centro e uma bola de futebol acima, respectivas referências às touradas da Espanha e ao esporte praticado pela equipe. O mando de campo continuou a ser o Estádio Azteca, na capital federal.

Cena do episódio “O disco voador", de 1977: enquanto Seu Madruga tenta se esconder do dono da vila, Seu Barriga, a flâmula do Atlético Español aparece na parede (Foto: Reprodução/Fórum Chaves via Twitter)

Evidentemente, os torcedores se sentiram traídos e não foram receptivos às alterações tão bruscas. Investimento é importante, obviamente, mas a base de um time é a sua identidade. Ligado ao sindicato dos eletricistas, multicampeão na era amadora do futebol nacional e dotado de grande apelo da massa, El Campeonísimo já não existia. Havia um emblema com outro nome, outras cores e outro apelido que herdou os resultados do tradicional escrete. Mas não existia aquele emblema que conquistara tanta gente. Entre os fãs não existia mais a certeza do pertencimento ao clube e vice-versa, sentimento tão necessário numa relação entre agremiação e seguidores. Havia futebol, mas não havia alma.

Por outro lado, o time de magnatas da Espanha até colecionou resultados marcantes em campo, ainda que o início tenha sido muito difícil. Na primeira temporada em atividade, em 1971/1972, os Touros ficaram em último lugar no Grupo A com sete vitórias, sete empates e 18 derrotas, totalizando 24 pontos - vale lembrar: vitória valia dois pontos àquela época. Foi a segunda pior campanha geral da competição. Para a sorte deles, somente o último colocado era rebaixado. O azarado - ou incompetente, depende do referencial - foi o Irapuato.

O cenário começou a mudar no ano seguinte. Vice-líderes do Grupo A com 36 pontos (12 vitórias, 12 empates e 10 derrotas), os alvinegros avançaram à fase semifinal, onde fizeram duelos bastante equilibrados com o primeiro colocado da outra chave, o León. Conforme estabelecido no regulamento, os 18 participantes se enfrentavam em turno e returno, porém eram divididos em dois grupos de nove times cada. O líder de uma chave enfrentaria o vice-líder da outra nas semifinais. Los Toros ficaram pelo caminho após três empates (0 a 0 na Cidade do México, 3 a 3 em León e 1 a 1 em Puebla, ou seja, campo neutro) e a derrota por 5 a 4 na disputa de pênaltis. O adversário acabaria superado na decisão pelo Cruz Azul, que conquistou o quarto título e se sagrou bicampeão naquele tempo.

O auge do controverso clube

Registro da final da liga mexicana da temporada 1973–1974, entre Atlético Español e Cruz Azul, no Estádio Azteca. Na ocasião, Los Cimenteros foram campeões com vitória de 4 a 2 no placar agregado (Foto: Divulgação/Blog Reino Azul)

Na temporada 1973/1974, o Atlético Español chegou ao mata-mata do Campeonato Mexicano depois de uma campanha muito boa na primeira fase, com 15 vitórias, 11 empates e oito derrotas. Soberanos no Grupo B, os Touros encontraram o Monterrey, segundo colocado do A. Foram derrotados por 4 a 3 na ida, em seus domínios, mas se sobressaíram na segunda mão, em Monterrey, com um categórico triunfo de 3 a 1. No outro lado do chaveamento, o Cruz Azul, então bicampeão, dono da melhor campanha geral e o time a ser batido em território mexicano, saiu de Puebla com um valioso empate em 1 a 1 frente ao escrete homônimo e cumpriu com louvor o dever de casa: 6 a 1.

A decisão, então, colocou frente a frente a potência e a sensação do campeonato no maior palco do futebol nacional, o imponente Azteca, na Cidade do México. Los Toros prometiam jogar de igual para igual com Los Cementeros. No primeiro duelo, os “caçulas” venceram por 2 a 1. Alejandro Roman e Ricardo Brandon abriram o caminho para a vitória, e Eladio Vera descontou. Os últimos 90 minutos, contudo, justificaram todo o prestígio do Cruz Azul. Horacio Lopez Salgado, Fernando Bustos e Ignacio Flores sacramentaram o quinto título de La Máquina no certame. Para se ter ideia da qualidade daquele time: nove taças foram conquistadas entre 1970 e 1980, sendo seis campeonatos nacionais, duas Copas da Concacaf e um Supercampeonato Mexicano.

Ativo durante 11 temporadas, o Atlético Español conquistou “apenas” uma Copa dos Campeões da Concacaf (Foto: Divulgação)

Mas ao polêmico Atlético Español também foi permitido sorrir. Em 1975/1976, Los Toros ergueram o troféu da Copa dos Campeões da Concacaf, atual Liga dos Campeões da Concacaf. Nos primeiros compromissos rumo ao título, despacharam o compatriota Monterrey, com empate em 1 a 1 na ida, fora de casa, e vitória de 2 a 1 na volta, na capital. Depois a vítima foi o Deportivo Saprissa, da Costa Rica, com dois triunfos de 2 a 1. Por fim, os mexicanos superaram o Transvaal, do Suriname, com vitórias de 3 a 0 e 2 a 1, e se sagraram campeões.

O título internacional deu aos Touros o direito de disputar a Copa Interamericana com o Independiente, da Argentina, em 1976. Extinta desde 1998, a competição reunia os campeões da América do Norte, Central e Caribe e da América do Sul. A referida edição foi disputada em Caracas, na Venezuela, em sistema de ida e volta. O equilíbrio foi a tônica dos dois jogos, com empates em 2 a 2, no primeiro confronto, e sem gols, no segundo. A decisão caminhou para os pênaltis, e o Rey de Copas venceu por 4 a 2.

Procurei pelo elenco toureiro e vi que a página do Necaxa na Wikipédia em inglês listou os atletas memoráveis do Español. Lá vai. Goleiros: “Julito” Aguilar, Jan Gomola, Goyo Cortez e Enrique Vazquez del Mercado. Defensores: “El Pimienta” Rico, Juan Manuel Alvarez e Mario Trejo. Meias: Juan Carlos Rodriguez Vega, Manuel Manzo, Benito “Buen Hombre” Pardo, Alejandro Roman e Tomas Boy. Atacantes: Juan Manuel Borbolla, J.J. Muñante, Romano, Carlos Eloir Perucci, “El Cachito” Ramirez, Ricardo Brandon, Pio Tabaré Gonzalez e Juan Carlos Rossete.

Agora vamos ligar os pontos. A aparição nos episódios de Chaves em 1977 evidenciou o auge dos alvinegros, vice-campeões nacionais em 1974 e campeões continentais e vice-campeões interamericanos em 1976. Isto quer dizer que Seu Madruga, mesmo sendo Necaxa de coração, estava satisfeito com a boa fase do Atlético Español? Pode ser. Contudo, o pai de Chiquinha, padrinho de Malicha, primo de Seu Román e paixão das Donas Clotilde e Edwiges gostava mesmo era do velho Necaxa. Na versão original, em língua espanhola, “¡Yo le voy al Necaxa!” era um dos seus bordões mais conhecidos.

Chespirito e Don Ramón mantiveram o Necaxa vivo no imaginário mexicano

“¡Yo le voy al Necaxa!”: famoso bordão de Don Ramón, o Seu Madruga, personagem do saudoso ator mexicano Ramón Valdés (Foto: Divulgação/FutMKT)

Em tempos onde os Electricistas estavam órfãos do clube o qual aprenderam a amar e preferiam apoiar times amadores a torcer pelo Atlético Español, El Chavo del Ocho, através do roteirista Chespirito e do personagem de Ramón Valdés (1923–1988), tornou-se o instrumento da nostalgia e da resistência em torno do Necaxa. Liguemos os pontos novamente: o Club Necaxa se tornou Atlético Español em 1971, e o programa humorístico foi ao ar pela primeira vez em 1972. A repercussão das mudanças bruscas envolvendo o time da Cidade do México estava no auge, e o seriado foi capaz de retratá-la de maneira sutil.

Seu Madruga falava “¡Yo le voy al Necaxa!” quando queria se mostrar alternativo em uma conversa. O Club Necaxa podia não estar presente nos gramados, porém estava vivo na memória de quem o seguia. Declarar-se do Necaxa ou para o Necaxa era ser diferente dos demais e era desconcertar o que estava na moda.

Logicamente, a frase, que na versão brasileira seria algo como “Eu sou do Necaxa!”, não foi traduzida integralmente para cá. Num mundo onde não existia Google, redes sociais ou WhatsApp, seria difícil algum brasileiro compreender o contexto daquele bordão, embora o México tivesse sediado recentemente uma Copa do Mundo, em 1970, ano do terceiro título mundial da Seleção Canarinho, à época com Carlos Alberto Torres, Jairzinho, Rivelino, Tostão, Pelé, o técnico Zagallo e companhia.

Mas quem era mexicano sabia muito bem qual era a mensagem. El Campeonísimo estava vivo. Na memória e no coração de Don Ramón e de qualquer alvirrubro espalhado pelo país. Daí sublinhamos o que citei no primeiro parágrafo deste texto: a identidade entre os telespectadores e a obra - nesse caso, entre um grupo específico e a série.

O clube voltou à ativa no ano de 1982, para a alegria de Seu Madruga e de toda a nação electricista. Alternando entre campanhas boas, regulares e ruins na primeira divisão, mas sem ganhar algum título nacional e sem conquistar o afeto do público, o Atlético Español foi colocado à venda pelos investidores espanhois. E quem o comprou foi a Televisa, justamente a emissora responsável pela gravação e transmissão de El Chavo del Ocho. Não surpreende o fato de o canal ter resgatado o nome, apelido e cores originais do Campeonísimo. Talvez essa tenha sido a última grande alegria do torcedor Madruguinha, que saiu de cena em 1988, vítima de câncer de estômago. A saudade é enorme, e o legado deixado, para além das risadas que até hoje o seriado proporciona, também está nas constantes homenagens da torcida rojiblanca ao ilustre companheiro. Já teve até jogador fazendo tributo ao personagem.

A história muito louca do Necaxa

Necaxa conquistou a Liga dos Campeões da Concacaf, em 1999, ao bater a Alajuelense, da Costa Rica, na decisão (Foto: Divulgação/Pinterest)

A transformação para Atlético Español na década de 1970, todavia, não foi o único momento intenso da história do Necaxa, uma verdadeira montanha-russa. Além da falência que originou Los Toros, houve uma outra bancarrota, lá em 1943. Naquela época, a instituição formada a partir da fusão do Tranvias e do Luz y Fuerza não concordou com a profissionalização do futebol local e vendeu sua antiga casa, o Parque Asturias. A refundação se deu através do Sindicato Mexicano de Eletricistas.

Acha que parou por aí? Em 2003, com as dificuldades para competir em público com America, Cruz Azul e Pumas UNAM, a alta cúpula decidiu mudar a sede do clube da Cidade do México para Aguascalientes, município a aproximadamente 500 km de distância da capital federal. Atualmente, o escrete recebe seus adversários no Estádio Victoria, cuja capacidade é de 23.851 torcedores. Numa referência à nova casa e ao clássico apelido, veio um novo apelido: Los Hidrorrayos. A gente morre e não vê tudo, né?

E, claro, é preciso citar as conquistas. Ao todo, são sete campeonatos nacionais (quatro na era amadora e três na era profissional), seis copas (quatro na profissional e duas na amadora), três Supercopas, dois Ascensos (segunda divisão), duas Ligas dos Campeões da Concacaf (somando àquela conquistada pelo Atlético Español) e uma Recopa da Concacaf.

As décadas mais produtivas dos Rojiblancos foram as de 1930, com quatro títulos do campeonato doméstico, duas conquistas da copa nacional e o posto de agremiação mais popular do país, e 1990, com cinco troféus nacionais (três campeonatos, uma copa e uma supercopa) e dois continentais (uma Liga dos Campeões da Concacaf e uma Recopa da Concacaf).

O título da Concachampions veio em 1999, depois de triunfos contra Los Angeles Galaxy (EUA), Deportivo Saprissa (Costa Rica), D.C. United (EUA) e Alajuelense (Costa Rica) por 4 a 3 (nos pênaltis, depois de empate em 1 a 1 no tempo normal), 3 a 2, 3 a 1 e 2 a 1, respectivamente. Já a Recopa foi conquistada antes, em 1994, após vitórias sobre C.D. México (EUA), S.C. Lambada (Barbados) e Aurora (Guatemala) por 5 a 1, 4 a 1 e 3 a 0, nesta ordem.

El Campeonísimo surpreendeu o planeta ao vencer o Real Madrid nos pênaltis e conquistar a terceira colocação do Mundial de Clubes da Fifa, no Estádio do Maracanã, em 2000 (Foto: Popperfoto/Getty Images)

O grande sucesso na última década do século XX rendeu um novo apelido: El Equipo de la Década. O Necaxa ficou em evidência no Brasil graças à excelente campanha na primeira edição do Mundial de Clubes da Fifa, disputado no Brasil e conquistado pelo Corinthians, em 2000, e à boa performance na Copa Libertadores da América de 2007, cujo campeão foi o Boca Juniors.

No Mundial, El Campeonísimo deixou o poderoso Manchester United e o South Melbourne (Austrália) para trás e ficou atrás apenas do Vasco da Gama na fase de grupos. A vice-liderança do Grupo B lhe deu o direito de disputar o segundo lugar com o Real Madrid.

Em um Maracanã tomado por 35 mil pessoas, Los Rayos bateram os Merengues nos pênaltis (1 a 1 no tempo normal e prorrogação; 4 a 3 no desempate) e conquistaram a honrosa terceira colocação. Entre os grandes nomes dessa geração de ouro estão o zagueiro mexicano Sergio Almaguer, os volantes mexicanos Luís Ernesto Pérez e Salvador Cabrera, o meia equatoriano Alex Aguinaga, o meia uruguaio Sérgio Vázquez, o atacante chileno Cristián Montecinos, o atacante mexicano Ricardo Peláez Linares e o atacante equatoriano Agustín Delgado. Eles marcaram época nos cenários nacional e internacional e gravaram o nome do Necaxa na história do futebol latino-americano e mundial.

Na Libertadores, por sua vez, os mexicanos somaram 12 pontos na fase de grupos (quatro vitórias e duas derrotas) e lideraram o Grupo 2, que também tinha São Paulo, Audax Italiano (Chile) e Alianza Lima (Peru). O resultado mais expressivo foi uma vitória de 2 a 1 contra o Tricolor Paulista, em Aguascalientes. Nas oitavas de final, a equipe sucumbiu diante do Nacional do Uruguai com derrotas de 3 a 2, em Montevidéu, e 1 a 0, em seus domínios.

Ao todo, são 83 participações na primeira divisão mexicana e 12 presenças no segundo escalão. Los Rayos são os atuais campeões do Clausura da Copa MX, onde passaram por Atlas (2 a 1), Pumas (2 a 1), Santos Laguna (2 a 1) e Toluca (1 a 0), e da Supercopa, na qual venceram o Monterrey por 1 a 0. O maior goleador é Ricardo Peláez Linares, com 158 bolas na rede, e o jogador mais presente é Álex Aguinaga, com 543 partidas de raio ao peito, enquanto o torcedor mais ilustre é Seu Madruga, eternizado pelo personagem e pelo bordão “¡Yo le voy al Necaxa!”.

Fontes: Fórum Chaves, Relatos e Historias en México, FutMKT e Wikipédia (English e Español).

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Luís Francisco Prates

Eterno aprendiz da vida. Cristão católico, pernambucano, jornalista e especialista em Ciência Política. “Ame o futebol e odeie o fascismo.”