O Brasil ainda sente os efeitos do impeachment de Dilma Rousseff

Luís Francisco Prates
22 min readNov 22, 2018

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Este registro da ex-presidente Dilma Rousseff durante uma cerimônia militar, onde ela parece estar sendo transpassada por uma espada, tornou-se símbolo da crise política do Brasil e conquistou o Prêmio Internacional de Jornalismo Rei da Espanha na categoria Fotografia (Foto: Wilton Júnior/Agência Estado)

Sentenciado no dia 31 de agosto de 2016, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) continua a deixar profundas marcas na República Federativa do Brasil. O resultado do segundo turno da eleição presidencial de 2014, na qual a petista superou Aécio Neves (PSDB) por um resultado bastante apertado (52% a 48% nos votos válidos), mostrou um país bastante dividido. Os vencedores, evidentemente, saborearam o triunfo, o quarto consecutivo do Partido dos Trabalhadores nas urnas. Por outro lado, os vitoriosos aguardavam uma oposição firme e atuante. Mas eles não poderiam prever que um dos que vestiam sua própria camisa puxaria o tapete da alta cúpula e faria a oposição chegar ao poder sem passar pelo caminho natural do voto.

Antes da segunda vitória de Dilma na corrida eleitoral, a Economia brasilera já estava caindo. O “paraíso” da Era Lula não existia mais. Por sua vez, a classe política em peso era alvo constante de investigações e de acusações de diversos crimes, tais como corrupção passiva, lavagem de dinheiro e fraudes em licitações. Mesmo sendo reeleito sob a auréola de representante dos trabalhadores e dos menos favorecidos, os quais ganharam a oportunidade de ascender social e economicamente nas gestões de Luiz Inácio Lula da Silva (2003–2010), o Governo de Dilma Rousseff nomeou o economista Joaquim Levy, apelidado de “Mãos de Tesoura”, para o Ministério da Fazenda e planejou cortes com a justificativa de contenção de despesas, aprofundando o desmantelo. Sucessivas derrotas foram sofridas na tentativa de promover o chamado ajuste fiscal. A passagem de Levy na Fazenda durou menos de um ano. A oposição já falava em “estelionato eleitoral”.

E não teve só isso. Na região Norte, a polêmica inauguração da usina hidrelétrica de Belo Monte, a segunda maior do País e a terceira maior do mundo, dividiu opiniões. De um lado, a população indígena perdeu território e foi prejudicada. Do outro lado, os defensores alegavam que a usina seria importante para fortalecer a produção de energia no Brasil.

Explodiram as crises econômica e política, as quais, somadas à inversão de prioridades dos governantes, resultaram em uma profunda crise moral. A população já não se via mais representada pelas instâncias de governo. Muitos saíram às ruas clamando pela recuperação da Economia e por uma Política mais transparente, numa espécie de continuidade dos famosos protestos de 2013, cujo embrião foram as manifestações contra o aumento do preço da passagem de ônibus. Dessa vez, mais fortes, com o Governo Dilma encurralado pelas derrotas no Congresso. O que essas pessoas não imaginavam era que seriam feitas de massa de manobra.

O impeachment seguiu as etapas determinadas pela Constituição, mas a narrativa de conspiração contra a presidente eleita tem fundamento

O processo de impeachment evidenciou a relação abalada entre a presidenta Dilma Rousseff e o vice-presidente Michel Temer (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Enquanto as ruas eram tomadas de verde e amarelo, Dilma era acusada de crimes de responsabilidade fiscal, ou seja, de maquiar as contas públicas. De acordo com uma acusação, ela teria atrasado os repasses ao Banco do Brasil do Plano Safra, crédito subsidiado para agricultores familiares. O fato ficou popularmente conhecido como “pedalada fiscal”. Segundo outra acusação, a presidenta teria autorizado a publicação de quatro decretos de crédito suplementar sem a prévia avaliação do Congresso Nacional. Conforme reportagem bastante detalhada do El País Brasil, a perícia realizada no Senado Federal constatou que a petista não “pedalou”, mas autorizou decretos sem aval da casa legislativa. A realidade, no entanto, mostrou que a narrativa das “pedaladas” foi facilmente assimilada pela população, e o rito do impeachment se seguiu.

Paralelamente à abertura do processo de impeachment pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), em dezembro de 2015, esteve na berlinda a relação particular entre a presidenta Dilma Rousseff e o vice-presidente Michel Temer. Cinco dias depois do pontapé inicial do impeachment na Câmara, uma carta de Temer endereçada à Dilma vazou na Internet e abalou as estruturas da Política nacional. No texto, o então presidente nacional do PMDB (atual MDB) escreveu que fora um “vice decorativo" no primeiro mandato e havia perdido todo o “protagonismo político”. A carta pode ser lida na íntegra aqui.

Devido à instabilidade política, o Brasil perdia grau de investimento nas agências de classificação de risco. S&P, Moody’s e Fitch rebaixavam a nota do nosso país e classificavam o cenário como preocupante.

A votação do impeachment na Câmara, em 17 de abril de 2016, foi um verdadeiro show de horrores, com muita demagogia (“Pela minha família, pelo futuro e pelo meu país, eu voto 'Sim’!”, quem lembra?) e até homenagem a um torturador da Ditadura Militar (1964–1985). Ao todo, foram 367 votos a favor e 137 contra. No dia 12 de maio, com placar de 55 a 22, a maioria do Senado também aprovou o afastamento temporário da líder do Executivo. Temer, então, assumiu o cargo interinamente. A equipe da presidenta afastada teve até o final de agosto para preparar a defesa.

Entre maio e agosto de 2016, viu-se novamente o que fora evidenciado pelas urnas de 2014: um país dividido. O Brasil foi tomado por protestos favoráveis e contrários ao impedimento da presidente eleita. De um lado, “Fora, Dilma!” e “Fora, PT!”. Do outro, “Fora, Temer!” e “Não vai ter golpe!”.

Uma pesquisa muito interessante, feita pela jornalista Cileide Alves em sua página no Medium e republicada pelo também jornalista Carlos Castilho no Observatório da Imprensa, expõe o posicionamento influente da mídia tradicional na crise política brasileira. Foram tomados como base os três jornais mais famosos do nosso país, O Globo, Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo. Os veículos adotaram em 2016 o mesmo tom ríspido registrado na época do Golpe Militar de 1964 - com a Folha mais neutra, defendendo a renúncia -, apontou o estudo. Em contrapartida, o tom em 1992, ano do impeachment de Fernando Collor de Mello (PRN, atual PTC), foi muito mais brando, de respeito à normalidade democrática - em 2016, a Folha teve postura mais próxima da de 1992. Assim escreve Cileide Alves:

“A atuação da imprensa em 2016 em nada lembra a de 1992. Diferentemente, há vários elementos que a aproxima da de 1964. O contexto internacional mudou. Não há mais o fantasma do comunismo da Guerra Fria. A disputa ideológica agora acontece nas Américas, com os governos esquerdistas e populistas na Venezuela, Equador, Bolívia e Argentina, este até a posse do novo presidente em dezembro. Daí surgiram os novos ‘perigos’ a assombrar os setores conservadores da sociedade brasileira. Trocam-se as palavras comunismo e totalitarismo de 64 e por lulopetismo e bolivarianismo. Formou-se, assim, o novo quadro ideológico que novamente uniu jornais, empresários, parte da população e políticos contra esta ameaça moderna representada no governo de Dilma Rousseff.

Na comparação dos editoriais de 1992 com os de 2016, desta vez os jornais não tentaram fazer apenas a crônica dos fatos jornalísticos. Eles mesmos se tornaram porta-vozes dos setores que defendem o impeachment, tomando partido a favor de um dos lados (aqui cabe ressalvar a posição mais neutra da Folha). O escritor Bernardo Carvalho tratou desse assunto no artigo Jogando para a plateia, publicado dia 17 de abril na Folha”

(Cileide Alves, 25 de abril de 2016)

Para se defender das acusações, a então presidenta Dilma Rousseff (PT) foi interrogada no Senado Federal em 29 de agosto de 2016, dois dias antes da votação final (Foto: Evaristo Sá/AFP)

No dia 29, ao discursar para os senadores num longo interrogatório que durou quase 13 horas, Dilma negou as acusações e afirmou estar sendo vítima de um golpe de Estado. “Quem afasta o presidente pelo conjunto da obra é o povo, e só o povo, nas eleições”, sublinhou. O site oficial do Senado Federal disponibilizou o discurso da petista na íntegra. Embora tenha acontecido em um momento extremamente delicado, este foi um dos episódios onde a governante mostrou mais pulso firme. Talvez só seja superado pelas críticas à espionagem da Agência Nacional de Segurança (NSA) dos Estados Unidos da América, na abertura da Assembleia Geral da ONU de 2013.

Dois dias depois da sua defesa, no mesmo local, Dilma Vana Rousseff viu seu impeachment ser aprovado em definitivo, com 61 votos a favor e 28 votos contra. Por outro lado, mesmo com o mandato cassado, os direitos políticos da gaúcha radicada em Minas Gerais foram mantidos, fato que embaralhou a cabeça de juristas - e também a da população.

Querem mais motivos para ficar com a pulga atrás da orelha? Um levantamento da Agência Pública, publicado em 8 de junho de 2016, apontou que as contas de pelo menos 17 governadores no Brasil foram aprovadas mesmo tendo ocorrido a prática do que, em tese, derrubou Dilma da Presidência. Foram analisados votos, pareceres e manifestações dos Tribunais de Contas dos Estados (TCEs) e dos Ministérios Públicos de Contas (MPCs) de 20 unidades federativas do nosso país. “Nos documentos examinados pela Pública foram encontrados três tipos desses mecanismos: a abertura de créditos adicionais de forma irregular, a maquiagem da meta fiscal e o cancelamento de empenhos liquidados”, destaca a reportagem de Étore Medeiros.

Michel Temer tomou posse logo após o impeachment de Dilma Rousseff, em 31 de agosto de 2016 (Foto: Dida Sampaio/Agência Estado)

Mesmo com todas as controvérsias por trás do processo do seu impeachment, Dilma Rousseff respeitou o resultado e deixou a capital federal. Quase três horas após a divulgação do resultado, Michel Temer tomou posse em definitivo sob gritos de “Presidente Temer", “Viva a esperança”, “Viva o Brasil” e “Viva o Parlamento”. Não houve registro de presença de parlamentares contrários ao impeachment de Dilma na cerimônia, apontou o UOL. No evento, o paulista falou em “colocar o Brasil nos trilhos”, “respeitar a Constituição” e “unificar o País". Durante o discurso, citou uma frase que o teria inspirado: “Não fale em crise, trabalhe”. Ela foi vista no Posto Doninha, na Rodovia Castelo Branco, quilômetro 68, em Mairinque, São Paulo. Então o jornal Extra descobriu o seguinte: o dono do estabelecimento onde Temer viu a tal frase, João Mauro de Toledo Piza, o “Joca”, foi condenado a oito anos e dois meses de prisão em regime fechado por tentativa de homicídio.

No dia 21 de setembro, menos de um mês após o desfecho do desgastante processo que sacudiu o Brasil, o agora presidente deixou escapar, em discurso na sede da Sociedade Americana/Conselho das Américas (AS/COA), em Nova York, nos EUA, a real motivação por trás da saída de sua antecessora. Não foi por causa de “pedaladas fiscais”. Não foi para “retomar a Economia” nem para “reunificar” o País. Não foi para “ouvir a voz das ruas” - que, francamente, estavam bem divididas. Foi porque Dilma Rousseff havia rejeitado o “Ponte para o Futuro”, programa de governo radicalmente diferente das propostas da chapa vencedora das eleições de 2014. A recusa ao projeto do PMDB, até então o maior partido da base aliada do governo do PT, revoltou o grupo. E, assim, o partido apoiou a saída de Dilma com requintes de vingança.

"E há muitíssimos meses atrás, eu ainda vice-presidente, lançamos um documento chamado ‘Uma Ponte Para o Futuro’, porque nós verificávamos que seria impossível o governo continuar naquele rumo. E até sugerimos ao governo que adotasse as teses que nós apontávamos naquele documento chamado ‘Ponte para o Futuro’. E, como isso não deu certo, não houve adoção, instaurou-se um processo que culminou agora com a minha efetivação como Presidência da República", declarou o peemedebista em solo norte-americano.

Michel Temer e Eduardo Cunha, dois dos principais nomes por trás do impeachment de Dilma Rousseff (Foto: Milton Cruz/Agência Brasil)

As medidas do Governo Temer refletem o que é a “Ponte para o Futuro”. Corte de investimentos para a Saúde e a Educação através da “PEC do Teto de Gasts”, a qual também pode congelar o valor do salário mínimo. A “Reforma Trabalhista” recebe esse nome, mas foi proposta pelos patrões, não pela classe trabalhadora, a grande prejudicada por esta medida. Ao contrário do que os defensores da reforma estimavam, o desemprego e o subemprego contínuam alarmantes: segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estava faltando trabalho formal para 27,7 milhões de pessoas no primeiro trimestre de 2018. O número inclui os desempregados, as pessoas que gostariam de trabalhar mais e as que desistiram de buscar trabalho. Universitários recém-formados, por sua vez, vêm enfrentando muitas dificuldades para ingressar no mercado de trabalho.

Há também a “Reforma da Previdência”, que, segundo especialistas, vai prejudicar os mais pobres. O atual governo não conseguiu levar o projeto adiante, mas este é prioridade do próximo governo. Responsáveis por quase 45% do déficit previdenciário total da União, os militares podem ser poupados na proposta.

Mesmo com a nítida perda de direitos da população, o mercado financeiro mostra afinidade com as “reformas” neoliberais do Governo Temer. Agências de classificação de risco, inclusive, continuam a rebaixar a nota do País por avaliarem que tais medidas estão em ritmo lento. S&P, Fitch e Moody’s querem rapidez. Noutras palavras, o Brasil detém o selo de mau pagador por, segundo tais agências, não estar conseguindo equilibrar suas finanças públicas.

Enquanto a maioria da população tem dificuldades para pagar contas e está assombrada com os fantasmas do salário mínimo congelado, da inflação alta e do aumento da idade mínima para aposentadoria, as regalias para a elite aumentam. A primeira medida de Temer depois de sua oficialização como presidente da República foi o aumento do salário do Poder Judiciário. Neste mês de novembro, o Senado aprovou o aumento do salário dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), com impacto de R$ 4 bilhões nos cofres públicos, e cortou pela metade uma das fontes dos recursos da comercialização do petróleo do pré-sal destinada à Saúde e à Educação. As prioridades no nosso país infelizmente estão invertidas: tira-se dos pobres e se dá mais aos ricos. Por que não taxam as grandes fortunas? Por que as dívidas tributárias, as quais chegam à casa dos bilhões de reais, são perdoadas? Por que querem aumentar a distância entre ricos e pobres? É assim que querem equilibrar o orçamento?

Está documentado pelo tucano Aécio Neves: agenda em vigor no nosso país é a da chapa derrotada há quatro anos, não a que venceu nas urnas (Foto: Reprodução/Twitter)

Lembram-se de Aécio Neves, o candidato superado por Dilma Rousseff em 2014? Pois é, o mineiro externou, em sua página na rede social Twitter, em 24 de agosto de 2017, a participação ativa do PSDB no atual governo. “O apoio que damos ao Governo Temer se dá em torno das reformas, agenda que foi apresentada pelo próprio PSDB​. Vamos nos empenhar para liderar no Congresso as reformas da previdência, a tributária e, a mais urgente, a reforma política”, publicou. Em suma, a agenda em vigor no nosso país é a da chapa derrotada há quatro anos, não a vencedora nas urnas.

Por isto, senhoras e senhores, mesmo que Dilma e Temer tenham composto a mesma chapa em 2010 e 2014, é uma grande falácia apontar atualmente que “Quem votou em Dilma, votou em Temer". Ainda que o rito do impeachment tenha seguido todo o protocolo estabelecido pela Constituição Federal, as evidências sustentam os argumentos que asseguram a realização de um golpe de Estado.

Dois pesos, duas medidas

Romero Jucá (ao centro) ao lado de Eduardo Cunha (à esquerda) em bancada do PMDB, atual MDB (Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

Se contra Dilma Rousseff os poderes Legislativo e Judiciário agiram rapidamente, o tratamento dado a Michel Temer não seguiu a mesma linha.

No dia 18 de maio de 2017, um dos donos da JBS, Joesley Batista, entregou à Procuradoria Geral da República (PGR) gravações como provas de sua delação premiada. Nos arquivos, Temer defende o pagamento de propina a Eduardo Cunha, um dos “pais" do impeachment de Dilma Rousseff, em troca do silêncio dele, e o incentivo à obstrução de investigações.

Um ano antes, em maio de 2016 - antes da saída de Dilma, portanto -, uma gravação veiculada pelo jornal Folha de S.Paulo mostra o senador Romero Jucá (PMDB-RR), um dos braços fortes do Governo Temer, e o ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado, defendendo o impeachment como a chance de “estancar a sangria” em “um grande acordo nacional com o Supremo, com tudo”. Que “sangria” seria essa? A Operação Lava-Jato.

Bastidores do impeachment: trecho da conversa entre Sérgio Machado e Romero Jucá, que também queriam barrar a Lava-Jato (Foto: Reprodução/Twitter)

Delações mostraram que a ex-presidente havia se oposto a um esquema de corrupção, e isto fortaleceu o impeachment. Em julho de 2015, ela vetou um reajuste de até 78,6% nos salários do Judiciário.

Retornando ao ponto onde estávamos: a PGR denunciou o presidente Michel Temer pelo crime de corrupção passiva. Coube à Câmara dos Deputados aprovar ou impedir o prosseguimento da denúncia. Mesmo com as evidências contrárias ao peemedebista, o Parlamento rejeitou a investigação. Um relatório da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, de autoria do deputado Paulo Abi-Ackel (PSDB-MG), que recomendava a rejeição à denúncia, foi aprovado pela maioria da casa legislativa, com 263 votos a favor, 227 contra, duas abstenções e 19 ausências, no dia 2 de agosto de 2017. Mas por que Michel Temer se livrou de responder a processo no STF se estava tão “na cara” que ele deveria ser julgado? Simples: porque "comprou” deputados. As negociações, de acordo com o jornal O Globo, giraram em torno de R$ 12 bilhões e envolveram cargos, emendas parlamentares e até mudanças no combate ao trabalho escravo.

Esta não foi a única vitória inacreditável do Governo Temer. Em 9 de junho de 2017, numa votação apertada (4 a 3), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) absolveu a chapa Dilma-Temer da acusação de abuso de poder político e econômico na campanha de 2014. A maioria dos ministros considerou que não houve desequilíbrio na disputa eleitoral e livrou Michel Temer da perda do mandato e Dilma Rousseff da inelegibilidade por oito anos - caso o paulista fosse cassado, assumiria a Presidência o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). A ação fora apontada pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) logo após a vitória de Dilma nas urnas. Mesmo assim, os tucanos não acharam a absolvição ruim, pois, como já foi comprovado, eles fazem parte do Governo Temer.

Tanto a maioria da Câmara dos Deputados quanto a maioria do TSE alegaram que a instabilidade política e econômica do Brasil aumentaria caso Temer fosse afastado. Não que o País tenha melhorado com o novo velho governo… Conforme pesquisa do instituto Datafolha para o mês de junho deste ano, o governo do PMDB (atual MDB) é considerado ruim ou péssimo por 82% dos brasileiros, enquanto apenas 3% o aprovam. Em abril, o índice de reprovação era de 70%. Os números transformam Michel Temer no presidente da República mais impopular da história da nova democracia brasileira.

Dois anos depois do impeachment…

Jair Bolsonaro (PSL) se desvinculou da imagem de Michel Temer (MDB) durante toda a campanha eleitoral, mas 10 dias depois da vitória nas urnas bastaram para ele se encontrar com o presidente e afirmar que “muita coisa” do atual governo será mantida (Foto: Evaristo Sá/AFP)

Com a presidente eleita de 2014 impeachmada, com o presidente em exercício afundado em denúncias e na mira da Polícia Federal e com a cassação do mandato e prisão do responsável pela abertura do impedimento, a expectativa em torno da eleição presidencial de 2018 era enorme.

O maior beneficiado, sem dúvida alguma, foi o presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL). Viajando pelo País desde 2014, o pesselista pegou carona na crise econômica, política e moral do Brasil e surfou na onda do antipetismo. Entusiasta da Ditadura Militar brasileira e capitão da reserva, o candidato de Extrema Direita se vendeu como “mudança" mesmo fazendo parte do sistema presidencialista de coalizão há quase três décadas. Escondeu sua proximidade com o impopular Michel Temer - pois é, essa história de “mudança” era tudo mentira - e teve ao seu lado o norte-americano Steve Bannon, estrategista da vitoriosa campanha de Donald Trump nos EUA, e um império de notícias falsas. Deixou para trás Fernando Haddad (PT), Ciro Gomes (PDT), Geraldo Alckmin (PSDB), João Amoêdo (Novo), Guilherme Boulos (PSOL), Cabo Daciolo (Patriota), Marina Silva (Rede), Henrique Meirelles (MDB), Álvaro Dias (Podemos), José Maria Eymael (Democracia Cristã), Vera Lúcia (PSTU) e João Goulart Filho (PPL).

Figuras públicas favoráveis ao impeachment de Dilma Rousseff saíram vitoriosas nas urnas. Exemplos: o líder do MBL (Movimento Brasil Livre) Kim Kataguiri (DEM-SP, eleito deputado federal), o ex-ator pornô Alexandre Frota (PSL-SP, eleito deputado federal), o deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP, reeleito), o humorista Tiririca (PR-SP, reeleito deputado federal), a jornalista Joice Hasselmann (PSL-SP, eleita deputada federal), o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP, eleito senador), a jurista Janaína Paschoal (PSL-SP, advogada do impeachment de Dilma e eleita deputada estadual), os empresários Luciano Bivar (PSL-PE, ex-presidente do Sport Club do Recife e eleito deputado federal) e João Doria Júnior (PSDB-SP, eleito governador de São Paulo) e o senador Aécio Neves (PSDB-MG, eleito deputado federal), entre outros. O mesmo não se pode dizer dos senadores não reeleitos Eunício Oliveira (MDB-CE), Cristóvam Buarque (PPS-DF) e Romero Jucá (MDB-RR), dos deputados federais não reeleitos Cristiane Brasil (PTB-RJ), Antônio Imbassahy (PSDB-BA), Lúcio Vieira Lima (MDB-BA), Leonardo Picciani (MDB-RJ), Ronaldo Nogueira (PTB-RS), Pauderney Avelino (DEM-AM) e Osmar Serraglio (PP-RS), do ministro da Educação Mendonça Filho (DEM-PE, terceiro colocado na disputa para o Senado) e do deputado federal Bruno Araújo (PSDB-PE, quarto colocado na disputa para o Senado), entre outros.

A ex-presidente Dilma Rousseff (PT) ficou apenas em quarto lugar na eleição para o Senado Federal e não foi eleita. Preso por ter sido acusado de receber propina para a reforma de um sítio em Atibaia/SP, o ex-presidente Lula (PT), favorito nas pesquisas de intenção de voto, teve sua candidatura impedida com base na Lei da Ficha Limpa, mesmo com o comitê de Direitos Humanos da ONU tendo recomendado sua presença na disputa. Entre figuras públicas contrárias ao impeachment, os senadores Humberto Costa (PT-PE, reeleito para o cargo) e Gleisi Hoffmann (PT-PR, presidente do partido e eleita deputada federal), a vereadora recifense Marília Arraes (PT-PE, eleita deputada federal), os deputados federais Ivan Valente (PSOL-SP, reeleito) e Luiza Erundina (PSOL-SP, reeleita), Jandira Feghali (PCdoB-RJ, reeleita), Arlindo Chinaglia (PT-SP, reeleito) e Luciana Santos (PCdoB-PE, eleita vice-governadora de Pernambuco) e a deputada estadual Teresa Leitão (PT-PE, reeleita), entre outros, conquistaram o eleitorado. Eduardo Suplicy (PT-SP, senador não reeleito) Lindbergh Farias (PT-RJ, senador não reeleito), Angelim (PT-AC, deputado federal não reeleito) e Chico Alencar (PSOL-RJ, deputado federal não reeleito), entre outros, não tiveram o mesmo sucesso.

O portal Congresso em Foco disponibilizou a relação de todos os deputados federais e senadores eleitos em 2018. Dos 32 parlamentares que tentaram a reeleição ao Senado Federal, apenas oito venceram, apontou o Nexo Jornal. Segundo o Congresso em Foco, 157 deputados federais em exercício deixarão o Congresso ao final do ano.

No novo mapa da Câmara dos Deputados, 513 deputados federais estarão distribuídos entre 30 partidos diferentes - na atual conjuntura, são 25 legendas. Mesmo amargando um recente impeachment e perdendo 13 cadeiras, o PT continua liderando a lista, agora com 56 legisladores, enquanto o PSL de Bolsonaro saltou de um para 52 e está em segundo lugar. O portal G1 disponibilizou a lista e o quantitativo completos.

Os partidos articuladores do impeachment de Dilma Rousseff, MDB e PSDB, enfraqueceram-se bastante nas eleições legislativas: além de não terem ido ao segundo turno da corrida presidencial, perderam muitas cadeiras na Câmara. Os emedebistas despencaram de 51 para 34, enquanto os tucanos caíram de 49 para 32. O MDB estará fora da base do Governo Federal pela primeira vez desde a redemocratização do Brasil. Já o PSDB pagou caro por não ter aceitado o resultado de quatro anos atrás. Em caso de confirmações do prognóstico negativo da gestão de Dilma, poderia estar comemorando agora o retorno à Presidência. A realidade atual mostra um herdeiro da elite escravocrata crescendo no ambiente tucano. Trata-se de um grande baque para um grupo que já teve o ex-governador paulista Mário Covas e tem o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

“Bolsodoria”: o ex-prefeito da cidade de São Paulo, João Doria Júnior (PSDB), contrariou o próprio partido ao abraçar Jair Bolsonaro (PSL) e, mesmo assim, elegeu-se governador do Estado de São Paulo (Foto: Reprodução/Twitter)

O PSDB continua no Governo do Estado de São Paulo, onde já está há mais de duas décadas, é verdade. Mas o novo governador, João Doria Júnior, é mais próximo de Jair Bolsonaro (PSL) do que dos ideais da Social Democracia. Tais ideais, inclusive, foram perdidos há muito tempo pelo partido, o qual contestou o resultado de quatro anos atrás e se aliou à agenda neoliberal de Michel Temer (MDB) na conspiração contra Dilma Rousseff (PT). Pois é. Depois de puxarem o tapete, os tucanos tiveram o tapete puxado.

Este texto do historiador Bertone Sousa, que menciona o político alemão Edward Bernstein (1850–1932), o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925–2017) e o sociólogo brasileiro Octavio Ianni (1926–2004), coloca Social Democracia e Neoliberalismo frente a frente e atribui ao Neoliberalismo as condições para a recriação do nazifascismo, é muito interessante. Em entrevista ao El País Brasil, o então presidenciável Fernando Haddad (PT), que foi ministro da Educação no Governo Lula e é professor universitário, disse: “Estamos vivendo a crise do neoliberalismo. Eu escrevi um texto no final dos anos 1990, auge do neoliberalismo, em que eu dizia que quando viesse a crise, que seria financeira, o mundo se dividiria, mas buscando soluções conservadoras. Quando viesse a crise financeira, o mundo desenvolvido protegeria sua riqueza e deixaria a periferia à deriva e à base da violência. Estamos vivendo esse momento, de desagregação pelo fim do neoliberalismo”.

Voltando às eleições brasileiras: no Senado, por outro lado, MDB e PSDB mantêm a liderança, com 12 (tinha 19) e oito (tinha 11) representantes, respectivamente. Ainda assim, portanto, perderam cadeiras. O PT foi o que mais perdeu gente na Casa: eram 13 e agora serão seis. Já o PSD registrou o maior crescimento: eram quatro e agora serão sete senadores no grupo. Ao todo, 81 parlamentares estarão distribuídos entre 21 legendas na nova conjuntura - atualmente são 15 partidos.

Entre os governadores eleitos, o PT é maioria, com quatro Estados. Entretanto, é seguido de perto por PSL, PSB, PSDB e MDB, que têm três cada. PSD, DEM e PSC estão em duas unidades federativas. PCdoB, PDT, PP, PHS e Novo compartilham um governador.

E o que esperar do próximo Governo Federal? Na área trabalhista, o futuro presidente já disse que é preciso escolher entre direitos trabalhistas e emprego. No âmbito da Segurança, ele é pró-armamento - no país com mais mortes por armas de fogo no mundo - e defensor de mudanças no que diz respeito à excludente de ilicitude, fato preocupante para juristas - entenda aqui. Na Educação, a proposta de ensino à distância para a Educação Básica ameaça a socialização dos alunos e o trabalho de professores, enquanto o projeto “Escola Sem Partido” incentiva a perseguição a professores que queiram estimular o debate e o senso crítico em sala de aula. Já teve até bilhete em tom ameaçador circulando em universidade.

Nas Relações Internacionais, Bolsonaro é fã declarado de Donald Trump e não esconde sua intenção de mudar a Embaixada do Brasil em Israel de Tel Aviv para Jerusalém. Esta transferência toca numa questão deveras sensível: o conflito entre israelenses e palestinos, que já dura 70 anos. Além disso, pode prejudicar a balança comercial brasileira. Por sua vez, o novo chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, representa a tendência do Governo Bolsonaro de falar manso com os Estados Unidos e ser brabo com os vizinhos e com as nações economicamente mais próximas.

Mesmo com o viés autoritário do militar, o mercado financeiro reagiu positivamente à sua vitória na eleição por conta da proximidade com o economista Paulo Guedes, futuro ministro da Fazenda. A possibilidade de as riquezas do nosso país serem entregues às multinacionais ameaça a soberania nacional. Seria a continuidade do “entreguismo” de Temer e Cia. Ltda. E não é de hoje que o mundo do dinheiro simpatiza com o autoritarismo e deixa de lado os mais necessitados e os mais ameaçados. Empresas gigantes como Volkswagen, BMW e Hugo Boss, por exemplo, beneficiaram-se com a política nazista de Adolf Hitler. Agências de classificação de risco, inclusive, já estão cobrando de Bolsonaro agilidade para aprovar a temida reforma da Previdência.

O juiz federal Sérgio Moro, que ganhou projeção nacional ao sentenciar a prisão do ex-presidente Lula, será ministro da Justiça. Embora a alta cúpula afirme que a nomeação segue critérios técnicos, boa parte da imprensa internacional avaliou que a escolha de Moro para a pasta foi um prêmio por ele ter tirado o principal adversário de Bolsonaro da disputa eleitoral. E, por falar em imprensa, é necessário tomar cuidado com as informações relacionadas ao futuro governo.

A alta cúpula planta a notícia. A imprensa repercute. A repercussão é negativa. O presidente "desmente", ridiculariza as mídias, surge como o dono absoluto da verdade e joga seus devotos contra os profissionais de imprensa (Foto: Reprodução/Twitter)

Enfim… Será que valeu a pena tirar Dilma da Presidência para chegar aonde chegamos hoje?

O PT traiu ideologicamente os eleitores ao se aliar a setores da elite e ao se envolver em escândalos com empreiteiras, é fato. Também é verdade que a então presidente não se mostrou uma boa gestora, tampouco boa política. Nicolau Maquiavel (1469–1527) já dizia, em O Príncipe, que o pior tipo de principado é o herdado, pois o eventual herdeiro não teve a virtù, ou seja, as qualidades necessárias para conquistá-lo. Lula preparou o terreno para Dilma, mas a ex-chefe da Casa Civil - muito próxima a ele, conclui-se - não cuidou tão bem do terreno quanto o seu antecessor, ou seja, não mostrou as mesmas virtudes políticas dele. Ela mesma, economista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), já admitiu arrependimento pelas desonerações - diminuição de impostos para empresários - praticadas no primeiro mandato.

Porém, nada exclui que Michel Temer puxou o tapete de Dilma Rousseff “com o Supremo, com tudo”. Nada exclui o fato de o impeachment ter sido um projeto de poder da elite, aquele setor que se sentiu “ameaçado” pela mobilidade social registrada em nosso país na década passada. A elite brasileira é mesquinha, acha que “ricos e pobres têm que manter os seus lugares" e não está preocupada com o desenvolvimento econômico, social e intelectual da população. Nunca se viu no Brasil um governo tão ameaçador à produção científica e a setores essenciais como Agricultura, Saúde, Energia e Economia quanto o vigente. Esse tal projeto terminou por aprontar o tapete para a Extrema Direita passar e chegar ao Executivo nacional. O projeto de poder vencedor das eleições 2018 se diz “contra tudo que está aí”, mas faz parte desse “tudo que está aí”. E lamentavelmente enganou quem busca a luz no fim do túnel para sair da crise, está farto dos partidos políticos tradicionais e se encontra perdido em meio à polarização do País.

Meu professor de História na oitava série e no Ensino Médio do Colégio Regina Coeli, Nelsinho Oliveira, já dizia em sala de aula: “Quem tem o poder econômico e o poder político domina a sociedade”. É isso que a elite raivosa quer: dominar a sociedade. Os efeitos do impeachment continuarão a ser sentidos. “E o motivo todo mundo já conhece. É que o de cima sobe e o de baixo desce”.

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Luís Francisco Prates

Eterno aprendiz da vida. Cristão católico, pernambucano, jornalista e especialista em Ciência Política. “Ame o futebol e odeie o fascismo.”