Está tudo bem não estar tudo bem neste momento!

Luiza Ferreira
10 min readJun 8, 2020

Vamos recordar um pouquinho do nosso mundo de alguns meses atrás? Cada um correndo em sua esteira da máquina da rotina, achando que estava cuidando das engrenagens que fazem o mundo girar, tentando cumprir sua interminável lista de tarefas, correndo para chegar em algum lugar, que muitas vezes nem sabíamos direito qual lugar era esse. Muitos de nós desejando por mais tempo, menos correria, menos cobranças. A ansiedade, essa sobre a qual vamos conversar aqui, já fazia parte dos nossos dias.

Até que uma ameaça invisível aos nossos olhos começou a crescer e a viajar por este mundo. Fomos ficando cada vez mais alertas, mas ainda continuávamos nas esteiras, tentando cumprir os nossos deveres normais do dia-a-dia. Então, da noite pro dia, a ameaça se concretizou e chegou aqui, no nosso país. E o nosso mundo mudou! A esteira desligou e batemos de cara no chão. Fomos forçados a parar. A olhar para os nossos medos, nossa ansiedade, nossas dores. Coisas que fazíamos espontaneamente se tornaram perigosas: abraçar quem amamos, tocar no rosto, chegar perto das pessoas. Tudo mudou de uma hora para outra e perdemos algumas das certezas que nos davam segurança antes.

Ninguém sabia e ninguém sabe direito o que fazer, o que sentir, o que buscar. A última pandemia que tivemos no mundo aconteceu há 100 anos, como alguém poderia saber o que fazer se não passamos por isso? A Ciência e a História passam a ser nossas referências mais fiéis do que é possível ser feito. Elas nos ajudam a traçar um caminho de possibilidades, mesmo que sem tantas certezas absolutas.

Mas uma certeza temos: estamos em luto! Em luto coletivo por um mundo que mudou de repente e que sentimos que ainda não conseguimos acompanhá-lo. Estamos perdidos e nos sentindo impotentes diante de tantas coisas que não conseguimos controlar. Muitos que estão aqui, lendo este texto, já devem ter perdido pessoas importantes alguma vez em suas vidas. Vocês se lembram das sensações que sentiram depois do falecimento de alguém que vocês amam? O mundo todo parece parar, nada mais faz tanto sentido. E é isso o que estamos sentindo agora, mas em um nível muito maior, coletivo.

Elizabeth Kübler-Ross, uma médica psiquiatra suíça, foi uma das maiores estudiosas sobre os processos de luto. Ela dividiu esse processo em algumas fases. A primeira delas é a NEGAÇÃO, que seria aquele momento que ainda não queremos, ou melhor, não conseguimos acreditar no que aconteceu. Ainda é muito difícil elaborar tudo o que se passou, então acabamos minimizando o sofrimento, dizendo que não é nada, que vai passar rápido. Tentamos fugir da dor.

A segunda fase seria a RAIVA. Ficamos furiosos porque teremos que passar por algo assim. Achamos injusto o que aconteceu. Tentamos colocar a culpa em algo ou alguém, até em nós mesmos, achando que poderíamos ter feito alguma coisa para aquilo não acontecer. Sentimos raiva por não podermos mais controlar o que achávamos que poderíamos controlar.

A terceira fase seria a da BARGANHA ou da NEGOCIAÇÃO, em que fazemos alguns “acordos” com o mundo: “Ah, se eu respeitar direitinho tudo o que temos que fazer no isolamento social, sairemos logo disto, né?”. Para aqueles que são religiosos: “Deus, se você me ajudar, eu juro que não vou mais fazer tal e tal coisa.”. Tentamos achar uma forma de mudar o que está acontecendo.

E, quando todas as nossas tentativas se esgotam, vem a tão temida TRISTEZA, a fase da DEPRESSÃO, em que nos sentimos completamente impotentes, desesperançosos, com medo e com saudade de um mundo que não temos mais. Esta fase faz parecer que nada poderá voltar a ser bom novamente.

Mas, com o tempo, um dia de cada vez, vamos atravessando e chegamos na última fase, a da ACEITAÇÃO, que é quando aceitamos que o mundo está sim deste jeito e conseguimos compreender melhor o que está e o que não está no nosso controle. Conseguimos, assim, olhar para as nossas possibilidades reais de lidar com o que está acontecendo. Aceitamos que não tem como passar por isso sem sentir dor, sem ficar triste, sem sentir raiva e que ninguém sabe ao certo como proceder. Mas tentamos encontrar um caminho conjunto com os recursos que temos. Paramos de olhar para aquilo que nos falta e olhamos para aquilo que possuímos, para as nossas potências. Por quantas dificuldades vocês já passaram na vida até agora e estão ai, hoje, respirando? Por quantas dores, desafios, momentos de privação suas famílias já passaram para vocês estarem aqui? Sobrevivemos, apesar da dor, apesar da tristeza, apesar das perdas. E esta aceitação nos faz olhar para a única coisa que realmente temos: o PRESENTE.

David Kessler também foi um especialista em luto, que escreveu alguns livros junto com Elizabeth Kübler-Ross. Ele adicionou uma sexta fase ao processo de luto: a fase do SIGNIFICADO. Que é quando, depois de passar por todas as fases, conseguimos dar um sentido para tudo aquilo que passamos: O que eu posso aprender com isso? O que isto veio me ensinar? Ensinar para o mundo? E acho que estas perguntas nos ajudam muito a passar por este momento tão desafiador, não acham?

Então, uma primeira coisa é esta: ACEITAR QUE ESTAMOS EM LUTO! Isso faz com que a gente consiga compreender muito melhor as variações de sentimentos que estamos sentindo. Essas fases não são lineares e podem variar até mesmo durante o dia: podemos começar o dia mais em negação, depois vamos sentindo raiva até conseguirmos aceitar que, pelo menos, naquele dia, a única coisa possível que tenho para fazer é lavar as minhas mãos e o pacote de arroz que comprei no supermercado — quem não está sentindo raiva disso, gente?!

Por isso, quando vivemos uma CRISE, neste caso, uma crise global, as variações de sentimentos são normais! As variações de sono, de apetite, de humor. As pessoas ficam mais sensíveis, com os nervos à flor da pele. Às vezes, acham uma maravilha estar em casa, sossegadas na quarentena, mas passa um segundo e já sentem que vão “surtar”, que todos vão morrer, que nada de bom pode vir disto. É normal! Não tem como passar pelo o que estamos passando sem sentir ansiedade. O nosso corpo, inclusive, acredita que está nos protegendo colocando um certo grau de ansiedade para sentirmos: ele sente que estamos em ameaça e quer nos deixar em alerta. Assim, podemos nos proteger do que está vindo.

Hoje em dia, mesmo que não percebamos, estamos sempre em alerta. Ir ao supermercado está parecendo ir para a guerra. Temos que nos fardar, andar desviando, como se estivéssemos andando por campos minados. Tudo parece perigoso e o corpo quer que a gente entre num estado em que podemos, a qualquer momento, lutar ou fugir. Ou se fingir de morto, que é uma tática que uso muitas vezes. Ainda temos um corpo pré-histórico, que acredita que um urso pode nos atacar a qualquer momento. Mas esta sensação de alerta por muitos dias seguidos, torna-se estresse e ficamos exaustos. Quantas pessoas estão reclamando que estão se sentindo mais exaustas agora do que antes, mesmo fazendo, aparentemente, menos coisas? E, em grande parte, tem a ver com esse estado constante de alerta.

Por isso, o próximo passo é aceitar que: SIM, ESTAMOS EM CRISE! E, EM UMA CRISE, ALGUMAS SENSAÇÕES QUE, ANTES, CONSIDERÁVAMOS DOENTIAS SÃO CONSIDERADAS ABSOLUTAMENTE NORMAIS. Você não está doente por estar com medo, por estar mais ansioso, por estar dormindo pior, por estar triste. São sentimentos normais! Você está HUMANO! E aceitar a nossa humanidade é uma das coisas mais importantes que podemos fazer agora. Deixe que os sentimentos venham: eles não são maiores do que você! Deixe-se sentir o que tiver que sentir: o sofrimento não vai te desmoronar, ele é humano.

Chegamos, então, em um ponto importante: a ANSIEDADE que nos visita diariamente nesta quarentena. A ansiedade é um sentimento que nos coloca no futuro. Ela parece querer nos preparar para tudo aquilo que pode acontecer e nos dar um “guia” de como controlar as situações para que não cheguemos naquele ponto. Ela nos faz projetar as piores cenas possíveis sobre nós mesmos e sobre o mundo. É a nossa roteirista de filmes de terror mais famosa! Que criatividade temos quando estamos ansiosos! Tudo que é ruim parece possível. Eu costumo falar para os meus pacientes na clínica, que cada um de nós tem uma VOZ DA ANSIEDADE, que é quase um coach às avessas: ela sempre vai te mostrar tudo o que você não conseguiu fazer; tudo o que você ainda não tem; tudo o que é falho em você e sempre vai te comparar com os outros. Ainda mais neste mundo moderno, em que temos contato com as redes sociais, em que todos estão sempre felizes, curtindo… Será? É claro que não! Todos nós somos humanos e é impossível ser feliz o tempo todo. Inclusive: seria insuportável ser feliz o tempo todo!

Vamos nos comparando com a produtividade dos outros: “Ah, mas fulano tá conseguindo estudar e eu não!”; “Fulano tá conseguindo tirar a calça do pijama nesta quarentena e eu não!”; “Eu não sei fazer nada direito e uma hora vão descobrir que eu sou uma fraude!”. Ou criamos as piores cenas possíveis: “Todos vão ficar doentes e eu vou perder todo mundo!”; “O mundo vai acabar!”; “Eu não saberei sobreviver a tantas perdas!”. Reconhecem algumas destas vozes? Sim, todos nós temos!

O primeiro desafio é reconhecer que essa é a sua voz da ansiedade falando. Reconhecendo, você pode começar a levá-la com mais leveza: “Olha ai, a minha ansiedade está falando de novo, o que posso fazer para me sentir um pouquinho melhor agora?”. Tentem escutar como uma voz e não acreditar totalmente no que ela diz. Reparem no que vocês fazem para se sentirem um pouco melhor. Escutar uma música que gosta, dançar, ver um filme, conversar e se abrir com alguém. Ela vai aparecer para te visitar quase todos os dias, mas você pode escolher como recebê-la, qual chá servir e quanto tempo ela pode ficar na sua casa ou não. E tudo bem se sentir mal de vez em quando! Aprendemos muito que temos que estar bem o tempo todo, que ser forte é estar sempre bem, aguentar tudo e não é! Ser forte é reconhecer as nossas vulnerabilidades, ter humildade para reconhecer que não temos o controle de tudo e que não precisamos saber lidar com tudo sozinhos!

E, agora, entramos em um ponto importantíssimo: PEÇAM AJUDA! Não tenham vergonha de procurar ajuda! Ninguém aqui é o Super-Homem que precisa aguentar tudo sozinho. Fomos criados em um mundo muito individualista. Aprendemos que temos que fazer tudo sozinhos, que isso é ser forte, ser maduro, ser adulto. Esta pandemia está abrindo os nossos olhos para algo essencial: somos seres coletivos! A ação de um influencia na vida de todos! Quer algo mais forte para nos ensinar isso do que um vírus altamente transmissível? Dependemos dos outros e tudo bem! Isso é ser humano! E quando conseguimos nos conectar com esta nossa vulnerabilidade, podemos ser honestos com os outros ao nosso redor sobre o que sentimos, podemos mostrar as nossas fraquezas, os nosso medos e vamos encontrar muitas pessoas sentindo as mesmas coisas.

Estamos nos sentindo mais sozinhos, mas não estamos: temos uns aos outros, mesmo que estejamos mais separados. Reparem mais nas redes de apoio que vocês têm em suas vidas: as pessoas, instituições, profissionais com quem podem contar. São muito mais do que aqueles que geralmente achamos que estão na nossa “Lista de Emergências”. Procure ajuda, converse, compartilhe o que tem sentido com aqueles mais próximos. E, se acharem que está muito difícil, procurem ajuda profissional. Juro que terapia não é um bicho de sete cabeças e que nós, psicólogos, não mordemos ninguém!

Aproveitem este momento para pensar no que é essencial na vida de vocês. Olhem para o bicho papão que está ai: a finitude da vida e o medo que temos dela. Ele não vai te engolir! Ele só quer ser olhado e escutado para que você possa focar naquilo que é realmente essencial e que não tenha que correr para sempre em uma esteira sem chegar a lugar nenhum. Vamos nos ajudar a chegar no lugar que verdadeiramente importa: a nós mesmos, ao lar que existe dentro de todos nós e que nos torna humanos. É só assim que vamos conseguir passar desta para algo melhor, com uma rotina que preze mais pela vida, pela solidariedade, pela justiça social. E tudo bem se você ainda não consegue achar que isto é possível, como escreveu o poeta Mário Quintana:

“Se as coisas são inatingíveis… ora!

Não é motivo para não querê-las…

Que tristes os caminhos, se não fora

A presença distante das estrelas!”

Das utopias, Mário Quintana.

Estamos juntos, mesmo que separados! Força e muita humanidade para todos nós neste momento tão difícil!

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Luiza Ferreira

Psicóloga e Mestre em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP).