A soma de todos nós, e como desfrutar da mesma piscina

Luiz Valério P. Trindade
6 min readDec 20, 2021
© Pexels, Kindel Media

Recentemente tomei conhecimento do livro The sum of us: what racism costs everyone and how we can prosper together (A soma de todos nós: quanto nos custa o racismo e como podemos prosperar juntos, em tradução livre) de autoria da ativista negra norte-americana Heather McGhee.

A autora é bem conhecida nos EUA, passou sua infância no sul de Chicago, graduou-se em direito pela prestigiosa University of California, Berkeley e também estudou teatro na Yale University.

O livro de 448 páginas e 10 capítulos foi publicado em fevereiro deste ano nos EUA pela editora One World e ainda não possui uma versão traduzida para o português.

Eu o descobri por acaso ao ler um artigo da jornalista Alana Semuels, publicado na revista Time de agosto deste ano, o qual me despertou a atenção e resolvi adquiri-lo para entender melhor o que Heather McGhee tem a dizer e compartilhar minhas reflexões com vocês.

De forma sucinta, a autora defende que, com o passar dos anos, a população norte-americana tem sido estimulada a acreditar no que ela chama de zero-sum story (ou seja, uma espécie de relação de soma zero, onde um ganha e o outro perde). Segundo ela, esta relação ganha-perde preconiza que progressos sociais de indivíduos Afro-Americanos remove conquistas que os norte-americanos brancos já obtiveram.

Consequentemente, para defender suas conquistas e privilégios, a elite branca norte-americana sabota, desqualifica e desmerece conquistas dos indivíduos Afro-Americanos para impedir seus avanços sociais e assim assegurarem a consolidação de seus privilégios e hegemonia.

Neste contexto, entre os diversos relatos de episódios de racismo explícito e discriminação abordados pela autora, gostaria de trazer à tona somente dois casos bastante emblemáticos para vocês. Eles servirão de base para a posterior análise entre as reflexões que Heather MacGhee desenvolve em seu livro e o paralelo que traço com a realidade brasileira em termos de relações raciais.

O primeiro episódio relatado pela autora ocorreu em Baltimore em 1953. Um adolescente negro de apenas 13 anos, chamado Tommy Cummings, morreu afogado enquanto nadava com três outros coleguinhas (dois brancos e outro negro) em um rio da cidade.

Como naquela época nenhuma das sete piscinas públicas da cidade permitiam a presença de pessoas negras, o jovem foi obrigado a se divertir no rio e acabou perdendo sua vida. Além dele, outros três jovens negros também perderam suas vidas naquele mesmo verão em circunstâncias similares.

Diante dessas tragédias, a Associação Nacional pelo Avanço das Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês) processou a cidade e obteve ganho de causa três anos depois, de tal forma que em junho de 1956, pela primeira vez, as crianças podiam brincar e nadar nas piscinas públicas da cidade independentemente da cor de suas peles.

Contudo, o que aconteceu?

Bem. Ao invés da esperada integração entre crianças brancas e negras, as crianças brancas simplesmente deixaram de frequentar tais lugares, naturalmente, por decisão de seus pais. Além disso, seus pais também se asseguraram que crianças negras não tivessem acesso a outras piscinas públicas localizadas em bairros ocupados majoritariamente por residentes brancos.

Já o segundo episódio que me chamou atenção no livro, ocorreu também nos anos 1950, porém desta vez em Montgomery no Alabama. A cidade possuía um enorme parque público que incluía uma piscina, um zoológico e um centro comunitário. Apesar de ser uma propriedade pública, o órgão gestor do parque promovia segregação racial e impedia a entrada de frequentadores negros.

Mas, uma corte federal considerou que a segregação praticada pelo órgão gestor do parque era inconstitucional, e a partir de janeiro de 1959 as crianças negras poderiam desfrutar da piscina do Oak Park, como era chamado este amplo espaço público.

Porém, o que aconteceu?

A prefeitura de Montgomery preferiu drenar completamente a água da piscina ao invés de vê-la sendo compartilhada entre crianças brancas e negras. Não satisfeita, a prefeitura também mandou concretar a piscina e criar uma camada de grama em cima dela, fazendo-a desaparecer por completo e para sempre. Algum tempo depois, até mesmo os animais do zoológico foram vendidos e o centro comunitário foi fechado.

A esta altura, acredito que o leitor pode pensar: Ok. Estas medidas foram bastante extremas e estão inseridas em um contexto histórico de profundas segregações raciais nos EUA. Concordo plenamente.

Contudo, na verdade, o que a autora Heather McGhee almeja trazer à tona com este tipo de relato é de despertar a atenção para a ideologia embutida nestes episódios e que continua viva no imaginário coletivo da elite norte-americana até os dias atuais.

Ideologia esta que considera que avanços e conquistas sociais dos Afro-Americanos pode provocar perdas para a elite branca (o que ela chama de zero-sum story conforme já mencionado, ou a relação perde-ganha).

Ou seja, na mente desta elite, enquanto os frequentadores da piscina são meus pares, tudo bem. Mas, a partir do momento em que notam um enegrecimento do perfil de frequentadores, ou eles a abandonam e passam a frequentar outra piscina ainda mais exclusiva, ou até mesmo a fecham para todos indistintamente. Isso porque, em sua mente, antes fechada do que compartilhada.

Agora, traçando um paralelo entre as reflexões desenvolvidas pela autora Heather McGhee com a realidade das relações raciais no Brasil, penso não ser difícil encontrar pontos de convergência.

Primeiramente, em termos ideológicos, a dinâmica das piscinas públicas de Baltimore e Montgomery se assemelha bastante com a verificada em casa grande & senzala, a qual também continua a permear as relações raciais no Brasil até os dias atuais.

Esta dinâmica parte do princípio de que o “equilíbrio perfeito” nas relações raciais brasileira é atingido e mantido enquanto os negros se dão por satisfeitos em permanecer em condição de inferioridade (social, econômica, educacional e empregatícia) na senzala, ao invés de ousarem assumirem papéis relevantes na casa grande (símbolo máximo de privilégios, bem-estar social, poder patriarcal e de tomada de decisões).

Como diz um antigo e profundamente preconceituoso ditado, “no Brasil não há racismo, porque o negro sabe o ‘seu lugar’ [de inferioridade]”.

Porém, a partir do momento em que pessoas negras ousam romper este conveniente “equilíbrio perfeito” através de seus avanços, conquistas sociais, maior acesso a educação superior e engajamento em um amplo leque de profissões mais qualificadas, eles sofrem severas retaliações.

Prova inconteste neste sentido compreende os inúmeros casos de construção e disseminação de discursos de ódio de cunho racista contra pessoas negras (sobretudo mulheres) nas redes sociais.

Neste sentido, meus estudos sinalizam muito claramente que tais discursos são alimentados sobretudo por motivações ideológicas que acreditam fortemente na supremacia branca e na inata inferioridade negra. Diante disso, quem se engaja nesta prática de construção e disseminação de discursos de ódio (popularmente chamados de haters, ou odiadores em uma tradução livre) procura desqualificar e desvalorizar qualquer tipo de conquista ou avanço social obtido por pessoas negras (e repito, sobretudo mulheres).

Eles o fazem com o intuito de “reposicioná-las” de volta à senzala simbólica (isto é, posição de inferioridade social e de subserviência) e, por conseguinte, fortalecer e normalizar as posições de privilégio associados à branquitude.

Em outras palavras, este quadro das relações raciais brasileira sinaliza uma forte convergência com a reflexão desenvolvida pela autora Heather McGhee em seu livro. Isso porque a ideologia da branquitude dominante no imaginário coletivo brasileiro também nutre a crença de que avanços sociais da população negra significa perda de privilégios e conquistas dos brancos.

Na verdade, o que o livro revela através do relato envolvendo as piscinas públicas, e bem como a realidade brasileira pautada pela dinâmica casa grande & senzala, é que sociedades alicerçadas sobre tais valores são meias sociedades.

Elas são meias porque, simbolicamente falando é claro, somente “metade” prospera (na verdade sabemos que é uma parcela muito, mas muito inferior mesmo a 50%), enquanto a outra “metade”, por assim dizer, deve permanecer na senzala simbólica para garantir a manutenção do “equilíbrio perfeito” das relações raciais e sociais brasileira.

Portanto, este é o custo do racismo tanto nos EUA quanto no Brasil: meias sociedades pautadas pela crença infundada de que se você ganha, necessariamente, eu perco. Diante disso, devo lançar mão de todos os recursos disponíveis para frear os avanços dos “outros”.

No entanto, não deveria assim. As relações raciais não implicam em dinâmicas excludentes, mas de avanços coletivos onde todos podem se beneficiar. Não é preciso isolar a piscina para que somente um grupo desfrute de sua água fresca e relaxante ou cimentá-la para que ninguém mais a use. O que a autora defende, e eu compartilho da mesma reflexão, é que é possível nadarmos todos juntos na mesma piscina. Ou seja, não precisamos viver em meia sociedade, mas uma sociedade inteira que comporte a todos nós. Uma sociedade que realmente represente a soma de todos nós.

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