Facebook passou a se chamar Meta: o que isso representa em relação ao fenômeno de discursos de ódio?

Luiz Valério P. Trindade
7 min readDec 20, 2021
© Pexels, Thought Catalog

Introdução

Como foi amplamente noticiado pela imprensa brasileira e internacional, a partir do final de outubro deste ano, a corporação Facebook passou a se chamar Meta. Diante dessa decisão de negócios, a questão provocativa levantada por este artigo consiste em avaliar o quanto este rebranding do Facebook pode impactar positivamente ou negativamente no crescente, e praticamente irrefreável, fenômeno de discursos de ódio nas redes sociais.

Primeiramente, é preciso explicar que o conceito de rebranding significa uma espécie de “refundação” da empresa. Suscintamente falando, o rebranding pode consistir em um processo de atualização, adaptação ou completa reformulação do nome da empresa ou de algum produto. Ademais, é uma prática conhecida já há muito tempo no mundo empresarial.

Na indústria automobilística, por exemplo, esta prática é bastante comum. Modelos de carros disponíveis em múltiplos mercados internacionais, às vezes são “batizados” com nomes distintos. Isso pode acontecer por conta de aspectos culturais, estratégia mercadológica ou até mesmo de ordem linguística. Ou seja, determinados nomes podem ser de difícil pronúncia em idiomas estrangeiros ou, eventualmente, até mesmo possuírem significados pejorativos. Assim sendo, a empresa adota nomes distintos para preservar e proteger a imagem corporativa e também do produto.

No caso de atualizações, a empresa tem por objetivos rejuvenescer a marca e torná-la mais alinhada com os tempos atuais, porém, sem perder sua essência. E, por fim, as reformulações completas do nome da empresa ou produto consiste em uma espécie de recomeço ou refundação. Geralmente, esta iniciativa mais radical é motivada por uma tentativa de se desvincular de má reputação associada com o nome anterior, crise de imagem profundamente e irreversivelmente desgastada ou algum outro problema de cunho mercadológico.

Este foi exatamente o caso da Meta, a qual procura se descolar da má reputação crescente do Facebook por conta de a plataforma ter se tornado um terreno extremamente fértil para a disseminação de discursos de ódio em âmbito global.

Agora, tendo apresentado estas breves explicações conceituais, vamos procurar compreender como esta completa reformulação do Facebook pode impactar positivamente ou negativamente no combate aos discursos de ódio nas redes sociais.

Conglomerado de mídia ou empresa de tecnologia?

Observa-se que conforme os discursos de ódio se tornaram cada vez mais presentes nas diferentes plataformas de redes sociais ao longo da última década, e mais ainda no Facebook por ser a maior delas, a empresa passou a ser fortemente cobrada por legisladores de diversos países para coibir este fenômeno.

Neste contexto, há vários anos, diversos legisladores da União Europeia têm pressionado para que empresas como Facebook, Twitter e afins sejam classificadas como conglomerados de mídia ao invés de empresas de tecnologia.

Diante disso, o leitor pode questionar: qual a diferença?

Bem, se estas empresas fossem classificadas como conglomerados de mídia (como, por exemplo, BBC, CNN, Deutsche Welle, Fox, Globo, etc.), elas passariam a ser responsáveis pelo conteúdo circulando em suas plataformas.

Os legisladores da União Europeia acreditam que ao serem responsabilizadas pelo conteúdo, empresas como Facebook, Twitter, etc., seriam forçadas a implementarem mecanismos e políticas editoriais muito mais severas e eficientes para regular o conteúdo. Consequentemente, poderia haver uma redução significativa ou até mesmo o bloqueio de conteúdos de cunho odiosos circulando por tais plataformas.

Por outro lado, ao se posicionarem comodamente como empresas de tecnologia, elas frequentemente alegam que são simplesmente provedoras de uma tecnologia digital, e o que os usuários fazem com ela está além da responsabilidade da corporação.

Agora, vamos avaliar como este debate conglomerado de mídia vs empresa de tecnologia pode ser afetado pelo rebranding do Facebook. Ou seja, o que tende a acontecer?

Bem, em primeiro lugar, a corporação Facebook deixou de existir. Com isso a plataforma homônima passou a compor uma cesta de produtos juntamente com o Instagram, Messenger, WhatsApp e qualquer outro novo futuro empreendimento tecnológico envolvendo inteligência artificial e realidade aumentada.

Diante deste cenário, é possível perceber que se tornou ainda mais improvável que a antiga corporação Facebook, e agora Meta, venha a ser classificada como conglomerado de mídia como desejavam os legisladores da União Europeia.

Na verdade, no website da Meta, diz claramente que se ela trata de uma social technology company (isto é, uma empresa de tecnologia social, em tradução livre).

Não por acaso, um artigo do jornalista Kevin Rose, publicado no influente jornal norte-americano The New York Times em 29 de outubro, classifica este movimento como uma espécie de fuga ideal para o Facebook.

E qual o impacto prático desta sagaz manobra empresarial?

Bem, isso significa que, muito provavelmente, os discursos de ódio não diminuirão ao longo dos próximos anos por dois grandes motivos.

Em primeiro lugar porque, conforme recentes depoimentos de ex-funcionários do Facebook perante comissão parlamentar de inquérito no senado norte-americano (a qual investiga a disseminação de fake news e discursos de ódio), a empresa faz a consciente escolha de priorizar o lucro em detrimento da segurança e bem-estar de seus usuários.

Além disso, como discursos de ódio geram elevados níveis de engajamento (ou seja, milhares de curtidas, visualizações, comentários e compartilhamentos), a empresa lucra muito com isso já que um número crescente de anúncios é exposto a milhares de usuários interagindo com aqueles conteúdos depreciativos.

Em segundo lugar, a corporação Meta vai se sentir ainda mais cômoda em posar como empresa de tecnologia digital (como aliás, já o faz desde o primeiro dia de sua refundação) e isentar-se de responsabilidades no tocante ao conteúdo que circula em suas plataformas.

Sendo assim, a Meta não apenas se descola da má reputação do Facebook (o qual foi reduzido a um simples produto dentro de uma cesta), mas também se blinda e se esquiva habilmente do debate conglomerado de mídia vs empresa de tecnologia, o qual poderia ter sido um importante divisor de águas.

Considerações finais

Diante do cenário apresentado, lamentavelmente, não vejo perspectivas futuras muito promissoras no tocante a iniciativas oriundas da corporação Meta para a expressiva redução e/ou bloqueio de discursos de ódio. Isso porque, como ficou evidente pelos depoimentos prestados no senado norte-americano por ex-funcionários da empresa, a maximização do lucro se sobrepõe à segurança de seus usuários (sobretudo jovens).

Além disso, é importante dizer que se engana quem pensa que as consequências deste rebranding em relação ao fenômeno de discursos de ódio restringem-se à Meta.

Em primeiro lugar, Facebook continua sendo a maior rede social do mundo em termos de número de usuários ativos mensais e faturamento. Como consequência, possui enorme capacidade de ditar tendências. Em segundo lugar, porque a Meta é proprietária também do Instagram e WhatsApp, as quais são extremamente populares no mundo todo, com exceção à China onde são todas bloqueadas.

Finalmente, todas estas plataformas de redes sociais possuem elevado grau de integração tecnológica entre elas, de tal forma que conteúdos de cunho odiosos, racistas, homofóbicos, misóginos, preconceituosos, etc. circulam livremente e muito facilmente entre elas. E não só isso. Estes conteúdos são capazes de transitar até mesmo entre outras plataformas fora do ecossistema da Meta (por exemplo, Twitter, Tik Tok, Telegram, etc.).

Inclusive, uma das consequências mais perversas deste livre trânsito de discursos de ódio através de diferentes plataformas consiste na amplificação dos danos de ordem morais e psicológicos às vítimas deste fenômeno.

Neste contexto, em meus estudos, identifiquei que discursos de ódio nas redes sociais são capazes de continuar engajando usuários (tanto novos quanto recorrentes) por até três anos após a publicação do post original para comentarem sobre aquele conteúdo depreciativo (o que chamo de “Cauda Longa do Discurso de Ódio”).

Figurativamente falando, este processo pode ser ilustrado como um martelo batendo sobre a cabeça de um prego, onde este último simbolicamente representa a vítima e o martelo os discursos de ódio. Contudo, como estes discursos continuam a atrair cada vez mais usuários por até três anos, é como se o martelo se tornasse também cada vez maior e mais pesado, causando assim danos crescentes e irreversíveis ao prego (ou seja, à vítima).

Portanto, com a promessa da Meta de dedicar elevados investimentos em inteligência artificial e realidade aumentada ao longo dos próximos anos, imagine-se a que nível de complexidade e impacto sobre as vítimas os discursos de ódio podem atingir no futuro próximo se não forem coibidos no presente. E, ao que tudo indica, este movimento não partirá de dentro da corporação já que ela acaba de se blindar ainda mais contra a responsabilização por conteúdos odiosos transitando por suas plataformas.

Por este motivo que defendo a importância de se levar conhecimento à sociedade no tocante aos inúmeros impactos negativos do fenômeno de construção e disseminação de discursos de ódio. Somente através da educação, conscientização e formação é que se pode descontruir ideologias racistas, homofóbicas, misóginas, preconceituosas, etc., que alimentam a espiral do ódio. Ou seja, o desconhecimento e a ignorância podem conduzir ao ódio, enquanto o esclarecimento e a informação devidamente embasados podem contribuir para a convivência civilizada e saudável entre as pessoas.

E digo mais. Neste processo de conscientização, educação e formação, é preciso descontruir também a crença na impunidade. Muitos usuários que se engajam na prática de construção e disseminação de discursos de ódio online ainda acreditam estarem “protegidos” pelo pseudo-anonimato do mundo virtual. Isso não existe e estas pessoas podem sim ser identificadas e responsabilizadas civilmente por suas atitudes no ambiente virtual.

Por fim, em complemento a iniciativas de cunho educativo, entendo também que o ordenamento jurídico brasileiro, e até mesmo em âmbito internacional já que estas empresas atuam globalmente, precisam acompanhar estas evoluções tecnológicas, de tal forma a conseguirem coibir que estas gigantescas corporações continuem lucrando com a disseminação de ódio.

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