Linguagem e relações assimétricas de poder

Luiz Valério P. Trindade
4 min readAug 2, 2022
© Pexels, Rodnae Productions

O sociólogo britânico Norman Fairclough afirma que linguagem e discurso não exercem papéis meramente descritivos, mas, na realidade, representam formas de ação social e, como tais, são passíveis de serem sistematicamente interpretados e explicados.

Além disso, tanto Fairclough como Teun van Dijk, argumentam também que linguagem tem a capacidade de manter e estabelecer relações assimétricas de poder entre indivíduos e/ou grupos sociais.

Ou seja, linguagem pode ser utilizada para exercer, reforçar e/ou naturalizar hegemonias e também pode ser utilizada como mecanismos de resistência por parte de grupos minorizados.

Neste contexto, é possível constatar que as relações étnicas e raciais, tanto no Brasil quanto em outros contextos sociais, estão repletas de manifestações linguísticas que reforçam e naturalizam relações assimétricas de poder muito bem demarcadas.

Contudo, o que é mais intrigante é o fato de elas são verbalizadas com tremenda naturalidade nos mais variados contextos e situações sociais e desprovidas de qualquer avaliação crítica a respeito de seus impactos.

Vejamos alguns exemplos ilustrativos para esclarecer melhor a linha de raciocínio adotada neste artigo:

  • A coisa está preta: Esta expressão transmite subliminarmente a ideia de uma situação difícil e de complicada solução.
  • “Cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós”: comentário proferido com o intuito de ser uma espécie de “elogio” (distorcido, naturalmente) com o objetivo de ressaltar avanços obtidos por povos originários. Além disso, transmite a ideia também de que o homem branco constitui o representante natural e universal de humanidade.
  • Denegrir a imagem: significa macular, manchar a imagem de uma pessoa e consequente perda de prestígio ou credibilidade.
  • Black Market (mercado negro): transmite a ideia de ilegalidade, contrabando, desvio de recursos, etc.
  • Dark web: esta expressão pode ser traduzida como “internet escura” e visa classificar operações, atividades e transações que ocorrem às escondidas, de forma camuflada, dissimulada e, possivelmente ou potencialmente, de formas ilícitas.
  • Ovelha negra: como as ovelhas naturalmente possuem pelos brancos, uma suposta ovelha com pelos negros destoa do grupo, salta aos olhos imediatamente e simboliza um elemento indesejado, um pária.
  • Lavoro nero: esta expressão italiana é bastante utilizada no dia a dia e significa “trabalhar em negro/escuro” para designar trabalho informal e sem pagamento de impostos.

Bom, esta é apenas uma singela amostra e existem dezenas de outras expressões do gênero, seja em português, inglês, italiano e em outros idiomas. Contudo, o que quero destacar é que grande parte deste tipo de expressão (senão todas) compartilham a mesma raiz.

Trata-se da naturalização de uma miríade de atributos de ordem negativa associados a negritude e minorias étnicas (por exemplo, ilicitude, mácula, contrabando, incivilidade, maldade, etc.).

Em contrapartida, por exclusão e contraste direto, fica implícito e, em muitos casos, sem nem mesmo ter-se a necessidade de verbalizar, atributos de ordem positiva são automaticamente associados à branquitude.

Neste sentido, fica claro, por exemplo, porque a expressão “mala branca” é interpretada como algo lícito e aceitável como uma espécie de “incentivo” para vencer uma partida de futebol (ao contrário de “mala preta” que significa suborno para perder a partida). Ou “trabalho de branco” representa algo bem feito, enquanto que “trabalho de preto” significa desleixo e imprecisão.

Estas associações contrastantes não são gratuitas e nem foram criadas ontem. Elas representam heranças coloniais profundamente enraizadas no imaginário coletivo e por este motivo são frequentemente verbalizadas de forma tão natural e sem nenhuma reflexão crítica.

O historiador Stuart B. Schwartz em seu livro Sugar plantations in the formation of Brazilian society, explica que no Brasil colonial os africanos eram retratados como sendo inerentemente brutos, estúpidos, incivilizados e bárbaros.

Em complemento a esta argumentação, George R. Andrews, em seu estudo entitulado Slavery and race relations in Brazil, explica que, em contraste, a branquitude era equiparada a inteligência, racionalidade, civilidade e virtudes.

Sendo assim, como dizia no início deste artigo, linguagem pode exercer o papel de estabelecer hierarquias de poder, pertencimento e valorização/desvalorização social, porém, acima de tudo, reforçar e naturalizar hegemonias de classe, gênero e raça.

Por fim, é muito importante esclarecer também que, ao contrário do que algumas pessoas possam apressadamente argumentar, não estamos falando aqui de uma espécie de “patrulha do politicamente correto”.

A provocação proposta neste artigo é no sentido de questionar, por exemplo, por que dizer “lavoro nero” ao invés de “trabalho informal ou não regularizado”? Por que dizer “denegrir a imagem” ao invés de “danificar ou prejudicar a imagem”? Ou ainda, por que “black market” ao invés de “mercado ilegal” e assim por diante?

Alguém pode dizer que são escolhas inconscientes e não-intencionais. Em alguns casos pode até ser. No entanto, penso também que é importante questionar.

Enfim, acredito que estas são as reflexões que as pessoas precisam se dar ao trabalho de fazer e a desconstrução de relações assimétricas de poder inevitavelmente passa pelo uso da linguagem.

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