Não é tão engraçado como parece: a conveniente sutileza de ideologias racistas embutidas em apelidos

Luiz Valério P. Trindade
8 min readMar 19, 2022
© Pexels, Keira Burton

O povo brasileiro é comumente considerado como muito brincalhão, irreverente e informal, em contraste com povos de muitos outros países. Na esteira desta irreverência, reside uma característica bastante peculiar, apesar de pouco analisada criticamente na literatura, que consiste em atribuir apelidos às pessoas negras. Entre os poucos estudos abordando esta temática, destaco Medeiros & Vieira e Pastoriza & Borges.

Algumas pessoas consideram esta prática como uma forma de bulismo, agressão verbal ou desrespeito, enquanto seus defensores acreditam plenamente que não há nada demais em atribuir apelidos. Afinal de contas, dizem eles, é apenas uma “brincadeirinha” e quem reclama é porque está com muito “mimimi”. Expressão esta, aliás, que se tornou uma espécie de bengala para quem se abstém de dialogar e debater ideias com argumentos, reflexão apurada e devidamente embasada.

Contudo, a análise crítica que me proponho a realizar neste artigo vai muito além desses aspectos e revela a sutileza de ideologias racistas e preconceituosas embutidas em inúmeros apelidos atribuídos a pessoas negras.

Na verdade, esta prática de atribuir apelidos se enquadra perfeitamente no contexto de humor depreciativo que abordo com profundidade em meu livro No laughing matter: race joking and resistance in Brazilian social media, o qual é derivado de minha tese de doutorado em sociologia. Neste sentido, os apelidos atribuídos a pessoas negras têm basicamente duas categorias funcionais: 1) explorar, reforçar e naturalizar contrastes raciais e, 2) servir de conveniente substituto à classificação racial. E cabe ressaltar que nesta análise estou considerando unicamente apelidos desprovidos de cunho explicitamente ofensivos, porque estes se enquadram mais na categoria de injúria racial como já analisado pelo sociólogo Antônio Sérgio Guimarães.

Na primeira categoria explorando contrastes, cito como exemplo emblemático uma série de propagandas de uma grande rede varejista de pneus que se tornou bastante popular na televisão brasileira nos anos 1980. Nesta peça de comunicação, o personagem central era um homem negro “carinhosamente” chamado de “alemão” tanto por seus colegas de trabalho como pelos clientes. Ou seja, a mensagem publicitária explorava abertamente o contraste racial ao denominar o mecânico negro como “alemão”.

O discurso embutido na mensagem publicitária partia da premissa de que a Alemanha é (ou deveria ser) um país somente de pessoas brancas. Sendo assim, o consumidor cônscio desta premissa reconheceria a incongruência imediatamente e, por consequência, acharia graça.

Além disso, como o personagem “alemão” estava sempre sorridente, com um semblante amável e sempre disposto a servir a clientela (naturalmente, sempre formada por pessoas brancas representando a classe média e, por conseguinte,“legítimos” proprieitários de carros), isso referendava a “graça” e “inocência” embutida no apelido.

Seguindo linha de raciocínio análoga, é possível identificar inúmeros outros apelidos deste gênero como, por exemplo, “branca de neve”, “loiro(a)”, “Paquita do Olodum” e por aí afora. Neste último caso, por exemplo, chama atenção a exploração jocosa do fato de que, por muito tempo, as chamadas Paquitas (ou assistentes de palco) eram todas jovens garotas brancas e loiras como a Xuxa e, depois, associa o Olodum com negritude baiana. Ou seja, apelidos desta categoria ressaltam contrastes evidentes e que marcam posições muito claras entre os sujeitos envolvidos.

Já na segunda categoria funcional, é bem curioso observar a sutileza de apelidos explorando nomes de personagens de filmes e programas de televisão nacionais e estrangeiros como, por exemplo: a) Blade, b) Tião Macalé, c) Mussum, d) Tony Tornado, e) Morpheus, f) Xica da Silva, g) Tia Nastácia, h) Saci, i) Noturno, j) Maguilla, entre inúmeros outros.

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Agora a pergunta que devemos fazer é: que mensagem estes apelidos realmente transmitem?

Em primeiro lugar, apelidos substituem o nome da pessoa e, geralmente, eles são atribuídos por associação entre alguma característica percebida na pessoa e o personagem de cinema ou TV. Embora, como dito anteriormente, este tipo de apelido não tenha ou não carregue uma conotação explicitamente pejorativa ou depreciativa, nem por isso podem ser considerados menos problemáticos.

Inclusive, os pesquisadores Priscila Medeiros & Paulo Vieira explicam que o enunciado de apelidos associados a celebridades e personagens de programas de entretenimento raramente se referem às suas qualidades artísticas. Na verdade, eles “tratam de igualar as pessoas negras, sem levar em consideração suas particularidades, seus nomes próprios, suas individualidades e trajetórias específicas”.

Observa-se também que este tipo de apelido explora o imaginário coletivo e parte do pressuposto de que as pessoas sabem perfeitamente que personagens como Blade, Morpheus, Xica da Silva, Tia Nastácia, etc., são negros. Portanto, ao atribuir tais apelidos, fica implícita a classificação racial, porém, sem a necessidade de adotar nenhuma terminologia específica como preto, pardo, negro ou Afro-descendente por exemplo. Na verdade, este tipo de apelido serve até mesmo como um conveniente substituto do termo genérico “moreno”.

Digo isso porque a literatura de estudos críticos étnicos e raciais demonstra claramente que, ao longo dos anos, a terminologia genérica “moreno” contribuiu para o desenvolvimento de percepções errôneas que reconhecer a negritude das pessoas poderia ser ofensivo e, consequentemente, deveria ser evitado.

Neste contexto, em estudo publicado em 2003, o sociólogo Rafael Osório argumentava que “o uso do termo moreno como eufemismo para evitar chamar alguém de negro, preto ou pardo, representa a expressão perfeita de etiqueta social nas relações raciais”. Ou seja, segundo esta linha de raciocínio, seria preferível designar a pessoa como “moreno” ou um apelido qualquer do que reconhecer sua negritude e menos ainda de chamá-la por seu nome. Por isso que existem expressões do gênero: “você não é negro, mas sim moreno escuro”, entre outras inúmeras variações.

Isso me faz recordar de uma passagem interessante no livro ‘Escravidão Volume 1’ do jornalista Laurentino Gomes, onde o autor explica a “morte social” dos negros escravizados através da obliteração de sua identidade antiga para a construção de uma nova. Neste processo, continua o autor, os indivíduos escravizados se tornavam objetos de seu senhor, lhes foi imposto uma nova língua, uma nova maneira de se vestir e, até mesmo lhes foram atribuídos outros nomes.

Porém, o que muita gente não se dá conta consiste no desconforto vivenciado por quem é constantemente chamado por apelidos. Isso porque a pessoa se vê diante de uma situação muito delicada e desafiadora onde mesmo não gostando, invariavelmente ela se cala para evitar desagradáveis cenas conflituosas (sobretudo diante de uma plateia). Em outras ocasiões, ela também pode ser surpreendida com um apelido que surge em uma situação ou contexto completamente inusitado ou então o apelido é proferido por uma pessoa que você jamais esperaria.

Em outras palavras, como dizem as sociólogas Christina Sue & Tanya Golash-Boza, a pessoa que se vê como objeto de gozações vivencia um dilema bastante incômodo. Se ela manifestar seu descontentamento abertamente, seguramente será taxada como mal-humorada e incapaz de absorver uma “brincadeirinha”. Por outro lado, ao silenciar, o piadista interpreta a seu bel prazer que a pessoa absorveu o gracejo e está concedendo seu endosso e aprovação.

Contudo, as ideologias racistas embutidas nestes apelidos não têm nada de engraçado. Mesmo que eventualmente nem todas os piadistas tenham a intenção explícita de serem racistas, a maior parte destes apelidos reforçam e naturalizam ideologias racistas nelas embutidas.

Os apelidos são muito incômodos e desagradáveis também porque eles têm a capacidade de suprimir a humanidade da pessoa e objetificá-la. Ao promoverem este processo, os piadistas podem se divertir à vontade com a pessoa porque, uma vez desprovida de humanidade, ela também não tem sentimentos e seria incapaz de reagir ou demonstrar descontentamento.

Nesta linha de raciocínio, aprecio a reflexão desenvolvida pelo professor Thiago Teixeira em seu artigo Consciência negra: disputa pela humanidade sequestrada, ao argumentar que “o racismo [frequentemente] opera como uma desautorização da humanidade, como uma construção amarga, objetal e descartável do outro”.

Ademais, a prática de conferir determinados apelidos às pessoas negras serve a uma lógica de controle social com profundas raízes coloniais ainda muito presentes no imaginário coletivo brasileiro. De acordo com o sociólogo Dagoberto José Fonseca, muito provavelmente, as piadas de cunho racistas emergiram após a abolição da escravidão. Isso porque, ainda de acordo com o sociólogo, na condição de escravizados, os negros já eram destituídos de humanidade e tratados como mercadoria. Desta forma, não haveria sentido e nem necessidade de fazer piadas sobre eles já que não eram elementos ativos no tecido social.

Contudo, após a emancipação dos negros escravizados, a situação mudou e as piadas contribuíram para transmitir a ideia de que eles deveriam ser reposicionados à sua condição “original” de inferioridade social, desumanidade e objetificação. Além disso, a assimilação das piadas também por pessoas negras representa a naturalização e aceitação (sejam elas conscientes ou não) do sutil discurso posicional, onde o piadista se coloca sempre em condição de superioridade em relação ao sujeito-objeto risível.

No fundo, esta prática consiste em uma das facetas do que os professores Adilson Moreira e Tarcízio Silva classificam como “microagressões” e que, geralmente, são bastante sutis e não necessariamente percebidas logo de imediato. Segundo os autores, as microagressões consistem em mensagens rotineiras que comunicam insultos e desprezo racial e podem ser manifestadas de forma verbal, comportamental, gestual ou ambientalmente contra grupos racializados.

Inclusive, para ilustrar o alcance e a seriedade destas microagressões, recentemente conduzi um levantamento online e, entre inúmeras comunidades dedicadas a divulgar piadas pejorativas, identifiquei uma que relaciona pelo menos 225 apelidos diferentes atribuídos a pessoas negras. Além disso, em 2013 no Rio de Janeiro, o professor de biologia Luiz Henrique Rosa já havia realizado trabalho análogo com seus alunos. Na ocasião, o professor conseguiu mapear 800 apelidos pejorativos, sendo que 360 deles eram direcionados a pessoas negras.

Adicionalmente, ao atribuir apelidos às pessoas negras, o piadista está desconsiderando o nome da pessoa, destituindo sua importância e significado e assumindo o papel análogo ao de um senhorio colonial. Em outras palavras, na posição privilegiada de exercer seu poder sobre o outro através da atribuição de um novo “nome”, porém jocoso, o piadista assume o controle social sobre a pessoa e confere sua “marca” pessoal sobre ela (como um stigma), sobretudo ao se glorificar dizendo: “fui eu quem deu este apelido”. Figurativamente falando, este cenário se assemelha ao ato de fincar uma bandeira para designar a quem pertence aquele território.

Portanto, da mesma forma que piadas de cunho depreciativos contra pessoas negras não são meras “brincadeirinhas inocentes”, os apelidos também não são isentos de impactos negativos sobre as pessoas. Convenientemente camuflados sob o manto da irreverência e informalidade do brasileiro, os apelidos carregam forte herança colonial e, mesmo que eventualmente nem todos os piadistas de plantão o façam de caso pensado, os apelidos objetificam o indivíduo negro, extirpam sua humanidade, reforçam e naturalizam preconceitos arraigados na sociedade brasileira.

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