Por que eu detesto estereótipos?

Luiz Valério P. Trindade
6 min readDec 6, 2022
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A vida é normalmente complexa, multifacetada e repleta de nuances ou, como muitas pessoas dizem como figura de linguagem, permeada por diversos tons de cinza entre o branco e o preto. No entanto, como isso dá muito trabalho e muitas pessoas têm dificuldades de enfrentar ou encarar estas complexidades, elas recorrem a estereótipos para darem conta.

Mas, afinal de contas, o que é exatamente um estereótipo?

Pois bem, ele é definido como conceito ou imagem pré-concebida, padronizada e generalizada estabelecida pelo senso comum, desprovido de conhecimento profundo, sobre algo ou alguém.

Em outras palavras, um estereótipo compreende a criação de modelos simplificados da realidade, de tal forma que as pessoas possam processar aquele contexto e lhe atribua um significado que faça senso pra ela. Inclusive, muitas produções cinematográficas fazem uso de tais modelos com grande frequência.

Neste sentido, basta prestar atenção nos seguintes exemplos ilustrativos: a) imigrantes ilegais nos EUA são frequentemente retratados como sendo de origem latino-americana, b) membros de gangs de bairros perigosos tendem a ser jovens negros vestindo calças largas e camisetas regatas brancas mostrando os músculos, tatuagens e adereços, c) mafiosos são geralmente italianos, russos ou chineses, d) mulheres latinas são retratadas como sendo muito sensuais enquanto mulheres anglo-saxãs são elegantes, sofisticadas e inteligentes, e assim por diante.

Além disso, na propaganda, crianças negras africanas (geralmente em condição de má nutrição) são sempre usadas para representar fome extrema em campanhas para arrecadação de fundos e doações para entidades internacionais de ajuda humanitária.

No entanto, qual o grande problema com os estereótipos?

Bem, um dos aspectos mais problemáticos é que eles não contam toda a história sobre uma pessoa, um lugar, um país, uma cultura, e assim por diante. Eles criam sérias limitações e reduzem o valor das pessoas ao compartimentá-las em caixinhas muito específicas e, invariavelmente, de caráter negativo ou depreciativo.

Me recordo, por exemplo, de uma situação bastante pitoresca que testemunhei em uma empresa em que trabalhei há muitos anos. Havia um colega que, entre suas diversas atribuições, ele tinha a tarefa de testar e inspecionar diariamente as hélices de algumas bombas de gás. Para realizar esta tarefa, ele precisava inserir uma mangueira com ar comprimido em uma extremidade da bomba de gás e observar atentamente por alguns minutos se as hélices rotacionavam livremente ou se havia algum tipo de obstrução ao seu movimento.

Por mera coincidência, todas as vezes em que ele executava esta tarefa, calhava de um dos gerentes do departamento estar chegando pra trabalhar. Como este gerente não tinha pleno conhecimento das especificidades daquela tarefa, ele a simplificou e criou a imagem em sua mente de que aquele profissional não fazia nada de muito produtivo e “enrolava” no trabalho.

Este estereótipo de, digamos, “desocupado”, só foi descoberto e desconstruído vários meses depois em uma reunião de departamento, onde o gerente expôs sua percepção negativa e o profissional teve a chance de descrever o quadro completo. Ou seja, o gerente havia se habituado a ver apenas e tão somente um fragmento do quadro e acreditava ter visto toda a pintura, mas estava enganado.

Em outra situação, estive presente a um jantar na casa de um casal de amigos, sendo a esposa uma mulher branca europeia e seu marido negro oriundo de um país africano. Eles se conheceram no país africano, quando a moça trabalhou por lá por alguns anos, e a casa deles (muito charmosa, por sinal) tem diversos itens de decoração provenientes de diferentes partes do continente africano.

A certo ponto da conversa, os pais da moça, que também estavam presentes no jantar, me dirigem a palavra quase que em uníssono e me perguntam: “na sua casa também tem muitos itens de decoração africanos?”

Respondi que adoraria tê-los, mas que não os tenho e, apesar de ser negro, sou nascido no Brasil e não em um país africano. Eles ficaram momentaneamente desconcertados com a gafe, mas não se intimidaram e emendaram com a seguinte pérola: “Ah, brasileiro. Então, você deve ser um ótimo dançarino de samba!”

Ou seja, esta situação evidencia como o casal idoso branco recorreu a duas cadeias de estereótipos para me descrever: negro = África e brasileiro = samba. Neste contexto, eu fui primeiramente reduzido a um lugar de origem (África) e como eu não coube naquela caixinha que eles imaginaram, me colocaram em outra imediatamente na sequência (samba). Em contrapartida, toda a multiplicidade de minhas experiências de vida foi simplesmente ignorada e descartada. Elas não cabiam em nenhuma das duas caixinhas. Na verdade, elas nem sequer foram consideradas ou trazidas à superfície. Permaneceram ocultas nas sombras.

Eles haviam visto apenas um fragmento do que achavam ser o quadro completo (negro, brasileiro e sambista) e aquilo lhes bastou. Acreditaram que já sabiam o suficiente a meu respeito.

Os estereótipos funcionam desta forma e é por isso que eu os detesto.

Para aquele casal de idosos, o estereótipo que criaram a meu respeito é o que ficou registrado em suas mentes e mais nenhuma outra informação.

Me questiono também, se eu fosse uma pessoa branca, qual teria sido o estereótipo que teriam construído, se é que o teriam feito. Seguramente não associariam com procedência africana (embora sabemos que existem também pessoas brancas nascidas no continente) e, muito provavelmente, não me considerariam um sambista.

Sendo assim, diante deste cenário, penso ser inevitável não se recordar da escritora nigeriana Chamamanda Ngozi Adiche que fala com muita propriedade sobre o que ela chama de “o perigo da hitória única”.

Segundo sua argumentação, a adoção de estereótipos está no centro da história única e isso é catastrófico não apenas por ser inverídica, mas sobretudo por ser incompleta. Os estereótipos fazem com que a história única seja a única narrativa a respeito de uma pessoa, um lugar, uma comunidade, uma cultura, um país e todo o resto que a compõe seja negligenciado, ignorado, desvalorizado e diminuído em sua relevância.

Ademais, quando se intersecciona estereótipos com outras dimensões como, por exemplo, raça, etnia, lugar de origem, gênero, etc., se observa que a história única pode muito bem assumir contornos ainda mais perversos.

Neste sentido, basta observar o que acontece com mulheres brasileiras no exterior (sobretudo negras e mestiças). Os estereótipos são comumente entrecruzados com muito sexismo e machismo. Muitos homens estrangeiros as posicionam na caixinha “objeto de desejo e satisfação sexual”, enquanto as mulheres as colocam no pacote de “inveja do seu corpo sensual e ameaça”.

Voltando ao exemplo ilustrativo do casal branco de idosos, para eles, pessoas negras são todas sinônimo de procedência africana e todos(as) os negros(as) brasileiros(as) são exímios(as) sambistas. Para eles (e seguramente para muitos outros estrangeiros), não existem outras possibilidades de existência para pessoas negras que não seja dentro de uma das duas caixinhas. E é nesta limitação que reside o problema com os estereótipos. Não é o fato de achar que a pessoa é africana ou sambista, mas sim ter em mente unicamente estas possibilidades.

Em contrapartida, para pessoas brancas, invariavelmente, lhe são concedidas múltiplas possibilidades de histórias e vivências não restritivas e não confinadas em caixinhas que representam histórias únicas.

Na verdade, enquanto no meu caso, ao dizer que sou brasileiro, fui colocado na caixinha de sambista, se eu fosse uma pessoa branca, seguramente teriam me perguntado, por exemplo: a) de que cidade ou parte do Brasil eu venho, b) o que fazia por lá, c) qual minha profissão, d) o que faço no exterior, e) com que trabalho, f) quanto tempo estou fora do meu país, e por aí afora.

Em outras palavras, o quadro teria uma composição completamente diversa do fragmento que pintaram a meu respeito. Poderia não ser completa, é verdade. Mas seria muito mais abrangente, bem menos restritiva e mais próxima de minhas reais experiências de vida.

Portanto, os estereótipos criam e acentuam situações deste gênero, conforme relatados no presente artigo, onde na ânsia em simplificar um contexto que parece complexo (ou indesejado), muitas pessoas recorrem a estereótipos, e estes, por sua vez, acabam por reforçar, naturalizar e externar preconceitos profundamente enraizados e não abertamente verbalizados.

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