Racismo, Futebol e Redes Sociais

Luiz Valério P. Trindade
6 min readSep 1, 2021
© Pexels, Kelly Lacy

Para quem acompanha futebol, provavelmente já ouviu a crônica esportiva brasileira definindo a Eurocopa como “uma espécie de Copa do Mundo de Futebol, porém, sem a presença de outras tradicionais forças do esporte como, principalmente Brasil e Argentina. No entanto, não saberia dizer se os jornalistas esportivos europeus compartilham desta visão, pois não localizei comentários atualizados desta natureza.

Contudo, independentemente deste fator, trouxe esta consideração à tona unicamente com o objetivo de nos ajudar a ter uma perspectiva de ordem de magnitude e da importância global de um evento esportivo como a Eurocopa, sobretudo para o leitor não plenamente familiarizado com o universo futebolístico.

Pois bem, a final de edição de 2020 deste torneio (disputado em 2021 em virtude da pandemia de corona vírus), reuniu a Itália contra a Inglaterra no domingo 11 de julho no tradicional estádio de Wembley em Londres. Após empate de 1x1 no tempo normal e prorrogação, a vitória foi dos italianos por 3x2 em cobranças de pênaltis, sendo que os ingleses erraram três cobranças, todas elas executadas por jovens jogadores negros.

Como vivemos na era da informação digital e instantânea, imediatamente após sacramentada a vitória da Itália, tomamos conhecimento de que as redes sociais foram tomadas de assalto com incontáveis conteúdos profundamente racistas e altamente agressivos direcionados contra os três jovens jogadores negros ingleses (estes com idades entre 19 e 23 anos).

Pelo que foi possível observar, a maioria dos ataques foi promovida no Instagram, porém, isso não significa que este tipo de conteúdo não tenha migrado e circulado livremente através de outras plataformas como Facebook, Twitter e WhatsApp. Afinal de contas, basta um simples clique no mouse para que tal coisa aconteça muito facilmente.

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Como explicado nos parágrafos iniciais deste artigo (por isso fiz questão de trazer à tona aquela breve contextualização), a Eurocopa é um evento esportivo de proporções equivalentes à Copa do Mundo e, ambas acontecem em intervalos de quatro anos. Sendo assim, o impacto negativo destas manifestações racistas também correu o mundo em manchetes de jornais, revistas e programas televisivos, atingindo repercussão global.

Diante desse cenário de manifestações profundamente racistas, uma das reflexões que lhes convido a fazer consiste em questionar o que este episódio nos revela? Qual o significado embutido em tudo isso? Bem, em primeiro lugar, considero que ele evidencia muito claramente a interseccionalidade de dimensões como raça, gênero, masculinidade e percepção de lugar de origem.

A perda da partida pelos ingleses, que desde 1966 anseiam fervorosamente por conquistar um título de expressão mundial para o futebol profissional masculino, despertou (ou seria melhor dizer, aflorou) sentimentos racistas e xenófobos profundamente enraizados. Ou seja, estas manifestações não foram nutridas durante os 120 minutos de partida (incluindo a prorrogação) e logo após o apito do árbitro. Elas já estavam latentes e momentaneamente adormecidas nas pessoas que se engajaram nos atos de violência física e verbal. Bastou uma simples fagulha, como a perda do título tão aguardado, e dado como praticamente certo, para que tais sentimentos emergissem como um vulcão.

Não por acaso, inclusive, diversos ataques verbais transmitiam não somente desprezo pelos jovens jogadores negros, como também afirmavam que eles deveriam voltar para o lugar de onde vieram”. Porém, este tipo de comentário ou afirmação de caráter racista e xenófobo desconsidera que os três jovens são ingleses e não imigrantes. Por isso disse há pouco que uma das dimensões da interseccionalidade consiste na percepção de lugar de origem.

Ademais, isso representa, na verdade, a expressão de rejeição dos negros como membros daquela sociedade e mais ainda, a negação de sua legitimidade como cidadãos. Inclusive, neste contexto, entre os incontáveis posts depreciativos que circularam no dia, um que chamou bastante atenção e causou grande controvérsia dizia o seguinte: quando eles marcam gols, eles são ingleses. Quando eles perdem gols, são todos pretos”. Ou seja, enquanto eles (neste caso, os jogadores negros) “cumprem seu papel”, não se observam tensões ou motivos para desarmonia. Contudo, basta “pisar fora da linha” para que sua falha seja imediatamente racializada e agressivamente exposta como inexorável e imperdoável causa do problema.

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Além disso, o episódio revela também o quanto as redes sociais podem potencializar e amplificar vozes raivosas e conteúdos extremamente tóxicos e perturbadores direcionados contra grupos sociais vulneráveis. E não só isso. Evidencia também o quanto ainda há de ser feito pelas gigantescas corporações proprietárias destas plataformas no sentido de implementarem mecanismos mais eficientes para bloquear e/ou eliminar rapidamente conteúdos desta natureza.

Cabe ressaltar também que todos (ou a maioria de nós, pelo menos) nos solidarizamos com a dor dos três jovens negros por terem de passar por uma situação tão aviltante como esta a que foram submetidos. Contudo, não podemos perder de perspectiva um outro aspecto importante. Quantas outras centenas (senão milhares) de jovens negros e negras anônimos não passam por situações análogas diariamente no Brasil e em diversos outros países? Ou seja, dada a repercussão mundial alcançada por este episódio em particular, acabou lançando luzes mais fortes sobre o fenômeno de discursos de ódio nas redes sociais mas, lamentavelmente, ele continua acometendo milhares de vítimas diariamente.

Na esteira deste evento, é possível observar que a corporação Twitter emitiu um comunicado informando haver apagado ou eliminado mais de 1.000 comentários postados em sua rede social. Sem sombra de dúvidas, este tipo de postura é o que a sociedade espera e demanda destas corporações. Contudo, pergunto, e com relação às pessoas anônimas que passam por situações análogas ou até piores, mas que não são objeto de matérias jornalísticas de repercussão nacional ou internacional? Será que a empresa reage na mesma velocidade? O que você acha leitor?

Agora expandindo um pouco esta reflexão, quero trazer à tona uma outra análise crítica diretamente relacionada a este tema. No artigo O silêncio conveniente em torno da polêmica do Oscar, publicado em fevereiro de 2016, eu chamava atenção para uma tendência na grande imprensa brasileira em retratar e noticiar casos de racismo ocorridos no exterior com tons muito distintos de quando eles ocorrem no Brasil.

Minha argumentação é que o perigo embutido neste tipo de abordagem jornalística consiste no fomento de uma falaciosa percepção coletiva de que “eles” lá fora são racistas (ou muito mais racistas), enquanto que “nós” brasileiros não temos problemas desta magnitude. Ou ainda, que somos incapazes de cometer atos daquela natureza. No entanto, separei somente dois simples exemplos ilustrativos que contribuem para desmistificar esta percepção errônea.

Post 1: “It had to be black to miss the penalty shootouts” [Tinha que ser preto para perder cobranças de pênaltis] (Inglaterra, julho 2021)

Post 2: “Tinha que ser preto pra fazer um gol contra” (Brasil, junho de 2014)

Inicialmente, pode até dar a impressão de que o Post 2 é praticamente a tradução do Post 1 (ou vice-versa), tamanha a semelhança, mas não é isso. O Post 2 publicado no Brasil em 2014 foi direcionado a um jogador da seleção brasileira que, acidentalmente, havia marcado um gol contra em um jogo da Copa do Mundo. E este é apenas um entre dezenas de outros do mesmo gênero que foram publicados nas redes sociais naquela ocasião contra o mesmo jogador.

Enquanto isso, o Post 2, como já debatido neste artigo, consiste em apenas uma amostra entre as dezenas de outros direcionados contra os três jovens jogadores negros ingleses. Sendo assim, não obstante muitas vezes a grande imprensa brasileira tende a adotar tons diferentes para noticiar eventos desta natureza, não significa que por aqui a situação seja mais “branda” e que “eles” lá fora são racistas, enquanto “nós” aqui somos mais tolerantes e inclusivos.

Portanto, para concluir este artigo, argumento primeiramente que, lamentavelmente, o tipo de manifestação racista testemunhado na Inglaterra também ocorre no Brasil e com bastante frequência. Ocorre não somente contra jogadores de futebol, celebridades e figuras públicas, mas também contra inúmeros e anônimos jovens negros e negras. Segundo, fica cada vez mais evidente como as redes sociais se tornaram palco e palanque francos para que os defensores da supremacia branca destilem todo seu ódio de forma irrefreada e sem nenhum filtro, constrangimento ou temor de sofrerem sanções legais. Por fim, este tipo de situação nos faz perceber com ainda mais clareza a dimensão dos desafios enfrentados pela comunidade negra não só inglesa, mas também a brasileira, de tal forma a revelar que a linha que separa a aceitação social da rejeição é bem mais tênue do que se pode imaginar. Na verdade, como vimos, basta uma falha sutil como, por exemplo, a perda de uma simples cobrança de pênalti ou um gol contra involuntário, para que ódios latentes emerjam com força descomunal e as redes sociais sejam usadas como poderosos megafones virtuais.

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