Representatividade e diversidade não são “bobagens”

Luiz Valério P. Trindade
5 min readDec 13, 2022
© Pexels, August de Richelieu

É possível constatar que, ao longo dos últimos cinco a seis anos, tem ocorrido uma enorme proliferação de canais progressistas independentes no YouTube. No meu entender, este fenômeno é bastante positivo por diversos motivos.

Estes canais têm conferido alcance e visibilidade a vozes muito mais plurais que outrora não tinham espaço algum. Elas se contrapõem à longeva prática do discurso uníssono comandado pela chamada grande mídia tradicional e detentora solitária da “verdade jornalística”.

Além disso, muitos destes grandes conglomerados de mídia tradicionais não davam muito espaço para o contraditório já que poderiam colidir com seus interesses comerciais e sua agenda política de manutenção de poder e influência.

Adicionalmente, acredito também que este fenômeno de crescimento vertiginoso de canais progressistas no YouTube se deveu a três fatores principais. Em primeiro lugar, como uma forma de resistência e denúncia contra os inúmeros retrocessos promovidos e naturalizados pela extrema direita no Brasil desde a malfadada deposição da ex-presidenta Dilma Rousseff em 2016, e cujos efeitos não estavam sendo devidamente cobertos pela mídia tradicional.

Em segundo lugar, este crescimento deve-se também aos constantes avanços tecnológicos tanto das plataformas de redes sociais quanto das conexões de internet, que têm propiciado aprimoradas experiências de consumo de vídeos em aparelhos celular seja conectado em redes sem fio ou utilizando pacotes de dados das operadoras. Por fim, em função da pandemia que forçou grande parte da população a permanecer em casa por tempo prolongado.

Pois bem, diante deste contexto, muitos desses canais progressistas independentes têm prosperado bastante e atingido marcas impressionantes em termos de número de assinantes e visualizações na casa das centenas de milhares de usuários e, em alguns casos, até de milhões.

Contudo, recentemente, em um desses canais progressistas com centenas de milhares de assinantes, assisti o apresentador (um jovem branco) desenvolver uma análise política da composição do ministério em formação do presidente eleito Luis Inácio “Lula” da Silva que me deixou profundamente incomodado, decepcionado e preocupado.

Diante de alguns comentários que tem circulado na imprensa ressaltando a ausência de diversidade no alto escalão do governo Lula, este jovem analista político classificou o tema como “bobagem”.

Como assim bobagem, eu me perguntei.

O jovem analista continuou sua argumentação dizendo que os clamores por mais mulheres, indígenas e negros(as) na composição do alto escalão do governo não passam de picuinhas desnecessárias, pois o que importa mesmo é a irrefutável “competência” dos nomes escolhidos.

Este tipo de raciocínio raso me incomoda bastante primeiramente porque navega clamorosamente na contramão de demandas levantadas pela própria sociedade brasileira que está cansada de ver sempre homens e brancos em posições de poder e decisão (leia, por exemplo, o artigo A “cor” do conhecimento na mídia brasileira). Em segundo lugar, ver um jovem (que inclusive demonstra ter uma boa formação e articulação de ideias) defender um ponto de vista tão antiquado é preocupante e decepcionante porque sugere que ele está em completo desalinho com as demandas de grupos minoritários. Como se isso não bastasse, dada sua elevada base de seguidores na casa de centenas de milhares de usuários, isso significa que suas ideias têm um alcance considerável e podem contribuir para reforçar e naturalizar pontos de vistas análogos em milhares de pessoas.

No entanto, o falacioso discurso de que o que importa é a “competência”, tem servido por inúmeras décadas no Brasil justamente para mascarar a ausência de diversidade étnica e de gênero em espaços de poder e privilégio que infelizmente ele, como jovem, homem e branco, talvez ainda não consiga perceber com total clareza (ou talvez a desconsidere conscientemente).

Esta tal “competência” defendida por ele está por trás também da ideia de “meritocracia” e do mito da “democracia racial”, que alega que no Brasil todos tem igualdade de oportunidades de ascensão social, mas ignora completamente que as condições de partida entre pessoas negras e brancas para obterem sucesso em seu processo de ascensão são completamente desiguais.

Fonte: Pinterest

O discurso da “competência” está por trás também do persistente fenômeno de menor remuneração das mulheres em relação aos homens e ambos exercendo exatamente as mesmas funções. E eu me recuso a acreditar que as mulheres achem isso uma “bobagem” ou que este debate não importa, sobretudo mulheres negras que auferem remunerações ainda menores do que qualquer outro grupo social.

Ademais, este discurso da “competência” transmite também a mensagem subliminar de que homens e brancos são mais capazes e inteligentes do que os demais, já que são sempre eles a ocuparem espaços de poder e decisão. Consequentemente, mulheres, negros e indígenas não ocupam tais espaços porque “não se esforçaram o suficiente”.

Ou seja, todo amplo leque de privilégios intrínsecos da branquitude masculina são convenientemente camuflados sob a égide da “competência” e toda a carga da culpa pela falta de diversidade é transferida para os ombros das minorias excluídas e marginalizadas. Essa postura tende a conduzir a um esvaziamento do debate em torno de maior equidade racial e de gênero e também à negação de sua legitimidade.

Sendo assim, não entendo estas circunstâncias como meras “bobagens” e sim como longevas e arraigadas desigualdades estruturais que precisam ser não somente combatidas e denunciadas, mas sobretudo modificadas na prática e desconstruídas do imaginário coletivo.

Desta forma, ao compor o alto escalão de seu novo governo, se eventualmente, o presidente Lula vier a adotar um grau maior de diversidade étnica e de gênero, isso tem sim um enorme valor simbólico e tem o poder de transmitir um sinal bastante positivo de mudança de paradigmas para a sociedade que há muito tempo vem demandando esta transformação.

Representatividade e diversidade importam sim e não são “bobagens”, picuinhas ou perfumaria. Crianças e jovens de grupos minoritários precisam de referenciais positivos ocupando os mais variados espaços sociais em quem possam se espelhar, almejarem alcançarem tais posições no futuro e, acima de tudo, acreditarem que é possível.

É importante que a sociedade brasileira se veja realmente espelhada em todas as esferas de poder e tomada de decisões. Afinal de contas, em uma sociedade tão plural quanto a nossa, já não faz mais sentido que seus líderes e representantes continuem a ser unicamente rostos e corpos caucasianos masculinos. E essa demanda está definitivamente bem distante de ser uma mera “bobagem”.

--

--